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            Dimas Carvalho   
            Os quatro dragões azuis
 
 Aquela cidade 
            era assim; a praia não tinha mar, a praça não tinha bancos e as 
            árvores não tinham sombra. O sol castigava as ruas desertas, dia 
            após dia. Uma poeira grossa envolvia o espaço, num torvelinho 
            incessante, dificultando a visão. De noite, as casas gelavam. E 
            nunca um habitante seu conseguiu divisar, no céu indiferente, que 
            parecia fechar os horizontes, uma nesga de lua ou a luz de uma 
            estrela. Grandes 
            estátuas dominavam as esquinas: gárgulas, demônios, grifos, 
            unicórnios, sereias. Ao meio-dia, somente o vento açoitava as 
            paredes dos prédios. Não se via ninguém. E nuvens esparsas, fiapos 
            de algodão, navegavam sonolentas num oceano de fogo, que fazia as 
            pedras do calçamento cintilarem em rápidas faíscas. Um carro pesado, 
            de vidros escuros, potente e feroz, semelhando um rinoceronte, 
            circulava, obeso e carrancudo, fazendo a ronda. Sentinelas 
            taciturnas, prenhes de sono, resmungavam delírios incompreensíveis 
            num idioma remoto. De tempos em tempos, erguiam as armas para o ar e 
            disparavam, três, quatro vezes, contra alvos inexistentes. Um rio 
            intermitente, quase sempre seco, ladeava a cidade. A água era 
            salobra, as fontes e os açudes, miragens fugidias. E foi para esta 
            terra árida e pedregosa que, inexplicavelmente, os dragões decidiram 
            migrar. Pois todos sabemos que eles são animais acostumados aos 
            pântanos e aos manguezais, às montanhas úmidas e aos vales férteis. O primeiro que 
            veio chegou disfarçado de avestruz. Depois se transformou em lobo, 
            cegonha, crocodilo, hiena. Diante da indiferença que tais mutações 
            suscitavam, resolveu-se a assumir a sua verdadeira identidade. Nada 
            mais causava espanto ao secular marasmo daquela gente. E um belo 
            dragão, de asas luminosas, apareceu por fim, desfilando pelas ruas e 
            praças desertas. O segundo a vir 
            era sorumbático, dado a crises depressivas, irritadiço e dorminhoco. 
            Trazia os bolsos cheios de sementes, que lançava em qualquer parte, 
            fazendo brotar estruturas metálicas de formato inusitado. Benzia-se 
            constantemente, debulhando um terço de prata antigo. Talvez por 
            isso, era sempre visto rondando a igreja e o cemitério. O terceiro 
            apresentava borbulhas indecorosas sob a pele e pequenos chifres na 
            cabeçorra. Gostava de brincar com os cachorros e com as corujas. 
            Gritava durante a noite inteira, sem se cansar, num mesmo tom 
            monótono e estridente. Aos domingos, tomava banho de lama na camboa 
            e se banqueteava com formigas e tartarugas. Os grandes arrotos que 
            soltava davam origem a tempestades e maremotos. Com o quarto 
            chegaram à cidade os ciganos e os feiticeiros. Acamparam perto do 
            Mercado, onde negociavam poções mágicas, cavalos e armas. Sabiam ler 
            as mãos e prever o futuro. O tráfico de escravos aumentou 
            assustadoramente. Navios estranhos ancoravam no nosso porto, altas 
            horas, e iam embora antes que o dia clareasse. As prisões começaram 
            a transbordar. Mulheres e crianças foram raptadas. Fortunas eram 
            ganhas e perdidas em poucos minutos, no jogo. E ruídos 
            indecifráveis, vindos do oco da terra, aterrorizavam os incautos, 
            enquanto as pessoas desapareciam na névoa. De tudo isso só 
            se tinha conhecimento precário, impreciso. As nuvens de poeira, cada 
            vez mais densas, tornavam obrigatório o uso de óculos fornidos, de 
            lentes grossas, o que não adiantava muito. O próprio sol, até então 
            senhor absoluto daquelas paragens, enfraquecia e tornava-se opaco. E 
            os boatos de que os bárbaros estavam chegando aumentavam, 
            favorecendo a multiplicação dos muros, dos portões, dos túneis, dos 
            sótãos, dos porões. Também as ratazanas e os escorpiões começavam a 
            invadir as casas e os quintais, e as árvores começaram a sumir, 
            decerto seguindo o caminho sem retorno que as suas sombras já haviam 
            trilhado. De qualquer 
            modo, via-se que o número de carros-espiões, verdadeiros tanques, 
            havia aumentado, bem como os grupos de sentinelas. Uma seca cruel, 
            longa como nunca se vira, abateu-se sobre os campos e devorou a 
            última colheita. O vento soprava o seu costumeiro hálito de sal e 
            cal com um ímpeto crescente, derrubando pontes, arrancando 
            alicerces, afundando barcos. As derradeiras nuvens, esmaecidas, 
            desapareciam, carregando para longe as parcas gotas d’água dos seus 
            úteros rasos e estéreis. Os dragões já não davam mais espetáculo, 
            não dançavam na corda bamba, nem faziam magias pueris; seu olhar se 
            tornara agudo, cortante como o aço, frio como o gelo. Passaram a 
            andar armados de adagas e punhais, cabeça baixa, chapéus de massa 
            desabados sobre a testa. Usavam coletes à prova de bala e tocavam 
            trombetas tristíssimas, pandeiros e saxofones. Por isso ninguém se 
            surpreendeu quando, numa bela manhã, os quatro dragões apareceram 
            transformados em quatro estátuas, uma em cada canto da praça 
            principal, também chamada de Praça da Matriz, olhando uns para os 
            outros, crucificados nos altos postes de mármore, ébrios de silêncio 
            e de ausência, frios e mudos, tresandando a maresia, enquanto um 
            chuvisco ralo, tímido a princípio, e depois mais e mais encorpado, 
            caía sobre a cidade, após tantos séculos, ou talvez milênios.
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