Daniel Cruz Filho


Canto do Homem no Kósmos

Canto I à pedra hei de permitir único destino: reencarnação de grão em grão, contínua salina; e tudo — resíduos de pedra — a que se destina? palmilhando o Saara sob o inclemente sol aportei — cercado de toda a gente — no meu deserto: era o inferno, a sagrada maldição — eu, em caracol, incerto a pedra avalia a minha aventura: se faço versos com gentil candura ela me mostra o avesso da brandura a pedra avalia a minha aventura: sou lânguido trânsito, a pluma no ar, ela, o nó definitivo, fogo de estrela a brilhar mais que pedra, ela somente pedra, (são tantas as cores e formas) só para rimar: desejo uma mulher Fedra inscrita na pedra a síntese da semente ao sopro de vida na chama da vela e entre uma e outra o tempo da rosa amarela ei-la pedra: toda ela me fascina, mas o que assaz a ilumina é a fenda eterna, precipício a me mergulhar pedra tibetana, pedra de corais elaborando no mar a ilha, o atol, espelhando a luz noturna de um sol outono, a folha solitária apodrece mas sei renascerá pedra: é na pedra que o tempo amanhece e esmaece é no pedra que o espaço descreve seu vôo, seu arco circunflexo: a bela íris de um tigre refletindo a imagem da caça mas tudo passa, tudo passa, até o doce murmúrio do vento afagando lá fora a folha solitária agora Canto II afagando lá fora a folha solitária o doce murmúrio do vento rege nossa orquestra: sinfonia do movimento é sentimento, assaz sentimento, o vento a me fustigar o corpo que ainda sustento, mais que isso: verso e anverso do invisível ele — puríssimo oxigênio, nobre elemento — azula a Terra e põe o cosmonauta a recitar: "Terra é azul" — Yuri sem querer fez um blue o vento aventa sempre a dor imprevisível: ao mar maremoto, ciclone, tufão, furacão, anunciando um holocausto em germinação mas se ele traz instantes de tormento, angústia sem fim ao marinheiro — vendaval, encantou-se Charles Darwin numa chuva tropical no Saara árido vento o homem cega, é névoa, oásis inatingível em imagem, o avesso do Raso da Catarina: miragem acaricia o mar, acaricia o peixinho na gaivota, o Senhor do Bonfim acaricia no sacra Galeota: ó Senhora da Conceição protegei-nos dos maus ares! acaricia o Velho e o Mar de Hemingway, molda o coqueiral de Guarajuba, Itacimirim, Praia do Forte — faz um célebre Carybé de mim! o cantor assobia uma bossa nova, um sambinha de uma nota só: por que batizei a primogênita Slanowa. Islanowa, Isla Nueva, Ilha Nova? um Leão Tolstoi me concedeu a palavra, apenas emudeci Paslowa, Maslowa dos Alpes Vollenweider metaliza White winds, minha morada no verão: eterna Guarajuba, mas o sábio índio traduz a raiz do sopro: Pituba Canto III o sábio índio traduz sopro: Pituba, o sábio índio é Tupi. Guarany, Txucarramãe, embalde repito zil vezes: mar é Guarajuba e nem me toca se no oca do Aurélio ela (enseada Guarajuba) significa árvore, ave, peixes, posto que um baiano fê-la mar, mar aberto, mar de mármore ou tudo — resíduos de pedra — não passa de uma indígena rima ricaça? o mar em março avalia a minha aventura, desenvoltura do corpo e da alma: nadar boiando no Porto da Barra (baby que loucura!) o mar avalia a minha aventura: se faço versos com gentil brandura ele é presságio, mais presságio — ágil ágil como o cão amarelo: Guarajuba, Guararruba — assim me diz o herdeiro espanhol, o cão mais belo e arisco e noturno, sem juba mas quê sei do mar se não me bronzeio ao sol? mas quê sei do mar se não ouço teu suave sopro, se não edifico castelos de mármore, oca, iglu? A desmoronar, a desmoronar, feito amar, a larga vaga traga o poema e emudece a pena, penaliza a brisa em Santanas! ao mar lacrimejam Nilos e Amazonas, Pororocas — ouça a tua soledade em foz e a recôndita fonte: placidez em silente voz o rio não é do mar espelho antes, milagres de São Francisco: se na caatinga seca, acolá revolta feito Corisco lavadeiras-de-nossa-senhora circunscrevem ondas, boiam focas marinhas em píncaros de icebergs, mas o fogo ronca e assalta nosso coração albergue Canto IV o fogo ronca e degela em primaveras icebergs (ápices de água, morada de focas e leões-marinhos) e assalta e assola meu árido coração albergue doce, salobro, marinho, num anônimo plâncton a vulcânica mão do homem viola, viola da vida a glória, de Deus luz e dádiva e fere a ferida mais ferrenha, dolorida, desafinando o cântico de Yuri Gágarin: Terra à vista, terra na Terra, Terra is blue! o fogo ronca, a água banha, a brisa sopra (não a maresia que enferruja vídeos na Pituba) e plasma-se novo (ou o mesmo?) plâncton de vida Vulcanu — eis-me aqui: vil cão a flor mulher? lavas do Vesúvio obcecado mais uma vez: cão, cão, cão enciumado infante, exclamei inocente à Santa Rita: dá-me tua benção, ó Santo, tua benção! minha mãe esfaqueando galos no quintal prepara, possessa, caruru de São Cosme e Damião o olhar silencioso, incógnito, da sacra imagem pôs-me, lúdico, a atiçar velas em chamas sobre a bela colcha bordado pela negra Aniceta, colcha de retalhos — resíduos de Carmen artesã: como arde em fogo o que a memória reclama! arde em fogo ao homem o milenar drama (no Japão hiberna, Vesúvios incendiando Pompéias): se aqueces no coração o inclemente sol — gases, coisa magmática, lama, lama, lama- incerto, no Saara deserto, à pedra declama genesis, farol, caos e Kósmos, mítico homem em caracol rima, rima e rima, mais que rima, à pedra declama em continua salina: a que se destina? a que se destina? a que se destina? Canto V meu destino está inscrito numa pedra angular, numa pirâmide — catacumba e perfeição — prismática, jogo de búzios: lindíssimas conchinhas do mar ó Destino, filho do Caos, iluminai-nos com teus olhos sem luz no imensa Noite: às Parcas ordenai nossa sorte em vossa urna! erguemos uma estátua à Liberdade na América mas na África pobres e cegos irmãos arianos aprisionam nosso coração em melancólicos apartados ó Destino erguemos estátuas como a vossa (às mãos sustentas depositário de sortilégios e flutuas qual a lua sobre a Terra nossa) o destino avalia a minha aventura: se desrazão é estar em loucura faço versos, palavreio, à árida secura a que se destina o homem e sua pedra, nauta, argonauta, cosmonauta, à Terra, à Lua, Marte — fenda infinitesimal? eterna, enigmática fenda a me mergulhar: oráculo, contemplo a tua esfinge e finges ao eclipsar meu olhar vesgo o código genético, a gravidade do sistema solar mas, resoluto, transcendo ventos e estrelas ao ungir chagas, a galopar óbices cavalgar porquanto a pedra em grão em grão refaz e desfaz e, ressurrecta, nos põe no crespusculatório a eternizar-nos no linhagem linhagem de uma raça cuja linguagem a palavra domou, mas ainda hesita entre flor e canhão plânctons em pêndulo, sim e não, sim e não, pedra, vento, mar, fogo: homem sinfonia o destino — do desatino forma sincopada síncope: o Português decifrou a charada? Canto V se desrazão é estar em loucura qual farol ilumina a sinecura? desatino em síncope: destino antes o pungente flagelo batizaram peste (um argeliano Camus celebrou-a na escritura) e mortes e almas e calamidade a este, oeste a peste silencia o homem em cólera pestilência o homem encolerizado, encaracolado, cataplasma de São Lázaro, Omolu, Obaluaiê afaga e apaga da monstruosa lepra chagas: ó Destino à desrazão — suplico-vos em desatino- aplacai o espelho da cura — avesso do avesso insano, recomeço audaz novo começo: ei-la pedra angular, pedra tibetana, piramidal mas sei agora ancorar-me na pedra fundamental inscrevo em bronze as letras e o tempo do renascedouro — parto (ou aborto?) sem parição: fazei de mim, ó Destino, meu singular templo! e contemplo e contemplo a imensa nação de uma gente que hiberna e inferna os filhos seus — do poder qual augusta razão? mirando-me em arcaico caleidoscópio vislumbro a dilacerante nostalgia no cais em que naufragava a nave dos loucos: quedou um solitário aceno, gesto pequeno, embalde, um solitário aceno, mas aceso à mão hercúlea do negro em banzo, preso hei de romper em desatino (nova razão?) grilhões, polir arestas da pedra: diamantiza-la-ei! Santanas, maremotos, Vesúvios emudecerei! descalço, choraminga um bebê negro na Jamaica e o pai do seu pai refaz no Quilombo útero-Zumbi e o louco poeta do Leste em Cuba compõe balalaicas.

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