Dori Carvalho
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Poesia
  1. O menino e os poetas
  2. Quartos vazios
  3. Corações milenares
  4. Infância
  5. As tetas do povo
Fortuna crítica 
Dori Carvalho: amazonense de São Joaquim da Barra. De 1955. Poeta, ator, promotor cultural. Finalista do Prêmio de poesia da Casa de las Américas. Publicou Desencontro das águas, em 1987 e tem no prelo Paixão tirana. (nov/2000)
 
 















 
 
 

Dori Carvalho
 
O menino e os poetas
 
A Thiago de Mello 
Quando menino ganhei não presentes caros,
mas cheios de sabedoria, delicados e raros.

Quatro livros de poesia, pura poesia
meu Deus, que descoberta que alegria.
Carlos Drummond de Andrade
ensinou-me a sentir a alma das cidades
Manuel Bandeira, mil bandeiras, 
desde aí, caminhei sem eira nem beira
Pablo, isla negra, Neruda
mostrou-me a ternura e a vida desnuda
Thiago, amazônico Thiago de Mello
cantou-me que o mundo ainda pode ser belo.

Um livro de muitas batalhas
El Che, Ernesto Guevara
que sangrou-me o quanto a vida é cara.

E uma pataca de prata de quatrocentos réis
presente de aniversário do meu padrinho.

Por isso, ando com esse sentimento do mundo
que tanto me faz sofrer e faz sonhar
por isso, o silêncio e a palavra
por isso, essa dureza e essa ternura
por isso, a sede de liberdade e as canções desesperadas
por isso, carrego em meu coração um pouco de poesia
por isso, levo em minha boca um copo de pasárgada
que tanto me faz amar e faz viver
por isso, carrego na lembrança
o fuzil que, infelizmente, nunca usei
e a pataca de prata que perdi
e nunca soube multiplicar.
 

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Dori Carvalho
 
Quartos vazios
 

ela vem chegando
quando menos se espera
vai penetrando
invadindo sem pedir licença
tomando conta
da cabeça, dos poros
dos músculos, dos ossos
nada adiantou, nada
os sorrisos forçados
as verdades, as mentiras
as conversas fiadas, as bebidas.
a noite leva as luzes
o que resta é o silêncio
os quartos vazios
as teias de aranha
o caminho das formigas
os pombos no telhado
o vento inesperadamente frio
uma barata que passa
um ratinho que foge
um desejo, um calafrio
a cama, crescendo, crescendo
ela vem chegando
e num instante
salta sobre seu corpo
aprisiona seus olhos
as pernas, os braços
inertes, o coração
acelerado e nada mais
o medo, o pânico, o pavor mesmo
invade a alma
e não tem mais saída
elas começam a cair
as malditas lágrimas
começam a cair
e não param mais
e o sono não vem
nunca mais, a solidão
o maldito império da solidão.

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Dori Carvalho
 
Corações milenares
 
Para Ana, amada
das tantas vezes
que nos encontramos
ainda recordo

estávamos aos beijos
na arena romana
enquanto os leões
trucidavam os cristãos

fazíamos amor
nos porões fenícios
enquanto eles guerreavam

tu nunca foste
bailarina egípcia
nem eu faraó
éramos servos

enquanto tu curavas feridas
eu fazia pobres versos

na santa inquisição
não éramos da resistência 
nem nazistas, fugíamos das bombas
para amar em algum paiol

tantos encontros
tantos lugares
e sempre um mistério

no império inca
no império austro-húngaro
não éramos vítimas
nem réus sanguinários
passávamos ao largo
polindo desejos e ornamentos
entre beijos e armaduras

nem vimos a guerra de tróia 
tão alucinados estávamos de sonhos

e sempre um mistério

uma vez sim, fomos deuses
dionísio e diana
numa noite de carnaval
no início do século
no mais
sempre fomos plebeus
eu sempre arteiro
tu sempre curativa

e sempre um mistério

nos cortava
nos partia
nos separava
um corte em nossas carnes
uma partida inesperada
uma separação de corpos

sempre um mistério
e estranhas cicatrizes
sempre o grande amor
e eternas guerras internas

no final do século vinte
eu era só um menino
tu eras só uma menina
perdidos e apaixonados.

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Dori Carvalho
 
Infância
 
para Dona Cilota, mãe
jamais esquecerei
o irmão que matou o irmão
e todos perguntavam
se lavaram o sangue do chão

jamais esquecerei
o pai passando susto no menino
e o medo das águas revoltas
lagrimando nos olhos pequeninos

jamais esquecerei
o pé-de-ferro, o sapato, o martelo
e o silvo do pássaro-preto
alegrando o trabalho do velho

jamais esquecerei
o menino que namorava a menina
e na distância nem sabia
estar gravada nas tímidas retinas

jamais esquecerei
a velha e boa senhora
lavando roupa, fazendo comida
pronta para os filhos a toda hora

jamais esquecerei
o papagaio cortando os ares
e aquela mão desconhecida
partindo sonhos estelares

jamais esquecerei
as pequenas mãos apavoradas
na escuridão daqueles tempos
queimando livros na madrugada
jamais esquecerei

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Dori Carvalho
 
As tetas do povo
 
Para Dulce, irmã
fiquem aí os senhores
mamando nas tetas
do povo
enquanto o povo
mama nas tetas
das pedras

cuidado muito cuidado senhores
qualquer dia
as pedras viram armas
qualquer dia
a fome vira raiva
qualquer dia
a casa cai

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