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            Cid Seixas 
                                         
                                            
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
             
            A poesia como metalinguagem 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
             
             
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            A poesia de Alberto Caeiro, apesar de reclamar o objetivismo 
            absoluto, e de questionar com irrespondível inocência o simbólico, 
            numa negação daquilo que constitui seu corpo físico e abstrato – a 
            linguagem –, é ela mesma uma linguagem sobre uma linguagem. O 
            conjunto de poemas deixado por Caeiro, na sua economia imagística, é 
            uma grande figura tentando captar o indizível sentido do universo 
            poético, pela hipóstase dos seus códigos.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O retorno à natureza, através da mais contundente crítica aos 
            fundamentos da cultura, longe de sustentar suas bases sobre o 
            silencioso universo semântico do sis-tema natural, explode a mais 
            ruidosa fala da civilização para utilizar seus sons na produção do 
            eco maior que as montanhas e planícies da natureza mandam aos 
            homens.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Do mesmo modo que o poeta Caeiro é uma figura de ficção, a natureza 
            por ele evocada, em detrimento do simbólico, é também uma natureza 
            simbólica, ou, mais precisamente, uma natureza hipostasiada: uma 
            conjectura filosófica. Não é em vão que estudiosos da filosofia se 
            acercam da obra de Fernando Pessoa, rica que é em sugestões e 
            questões filosóficas: o próprio poeta admite a presença da filosofia 
            na sua construção poemática, bem como Jacinto do Prado Coelho, no 
            sempre referido Diversidade e unidade em Fernando Pessoa, chega a 
            afirmar que, no texto de Alberto Caeiro, o pensador suplanta o poeta 
            .  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Contrariamente, António Pina Coelho observa: "Mais que filósofo, 
            Pessoa é um possesso de uma problemática filosófica. Deu-nos conta 
            dessa problemática e da impossibilidade solutória dela, mas não do 
            processo condutor a essa conclusão negativista. A sua inteligência 
            era mais intuitiva que discursiva ou matemática, pelo menos no 
            sentido de longa duração. [...] Pessoa, com toda a simplicidade, 
            procurou essa coincidência com o ser, colocando-se com Caeiro numa 
            atitude absoluta-mente oposta à kantiana e a toda forma de 
            idealismo. [...] Nesta contemplação ontológica e na fenomenologia da 
            vida, Pessoa mostrou-se sintonizado com os movimentos ideológicos 
            que pairavam sobre os espíritos e ganharam expressão nas diversas 
            correntes fenomenologistas e existencialistas. A sua atualidade 
            manifesta-se mais na poesia que na prosa, se fizermos exceção da 
            prosa de ficção, em que há uma maior liberdade de pensa-mento e, 
            portanto, menos escravidão relativamente às fontes." Mas uma das 
            vozes de Pessoa responde: eu não era um filósofo com faculdades 
            poéticas, mas um poeta estimulado pela filosofia.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Pois bem, o "único poeta da natureza" seria um poeta essencialmente 
            da cultura. A natureza em Caeiro não passaria de uma hipóstase, de 
            uma abstração tomada como real, para o desenvolvimento de uma 
            teoria. Quando ele parece fazer poesia sobre a natureza, ele não 
            fala da natureza, mas da cultura: faz uma poética que não é apenas 
            sua, mas de todo poeta moderno. "Pertenço a uma geração que ainda 
            está por vir" [PR, 42]. A aparente ingenuidade de Caeiro esconde a 
            ambição do poeta português de se apresentar como projeto modelar de 
            todo processo de criação poética. As meditações "inocentes" do 
            guarda-dor de palavras, ao pastar seus rebanhos, traduzem a melhor 
            poética de qualquer tempo. Ou, como disse Bernardo Soares: "Um dia 
            talvez compreendam que cumpri, como nenhum outro, o meu dever nato 
            de intérprete de uma parte do nosso século" .  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            A encenação de uma volta à natureza, como se vê no texto do 
            heterônimo, não encontra sustentação nos sistemas naturais, mas é um 
            desmantelamento das linguagens construídas pela civilização, um 
            questionamento dos seus fundamentos filosóficos e científicos: uma 
            metalinguagem altamente codificada, portanto.  
            Não esqueçamos que o Mestre Caeiro, ao desmontar as linguagens da 
            cultura, toma por base o conhecimento e a superação destas mesmas 
            linguagens. Assim, ele não está situado no plano aquém da linguagem, 
            mas além dela, isto é, no plano da metalinguagem. Caeiro empreende a 
            crítica da cultura e dos seus sistemas, tecendo a sua obra de uma 
            substância essencial-mente simbólica: a sua poesia é, portanto, uma 
            linguagem cujo plano do conteúdo é formado por uma outra linguagem.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Há muito, Jacinto do Prado Coelho sublinhou este aspecto singular 
            que a crítica posterior, encantada com a convincente encenação do 
            papel de mestre Zen, preferiu deixar de lado: "Por isso, apesar de 
            Caeiro, ao falar de si próprio, e Campos, ao evocar o mestre, 
            quererem convencer-nos de que o pensamento de Caeiro é o pensa-mento 
            ingênuo de um poeta, o fruto verde de uma experiência instintiva, a 
            poesia deste nos deixa uma impressão totalmente contrária. 
            Medularmente, Caeiro é um abstrator paradoxalmente inimigo de 
            abstrações; daí a secura, a pobreza lexical do seu estilo." E 
            conclui: "Em regra, ouvimo-lo argumentando, criticando, não 
            transmitindo sensações mas discorrendo sobre sensações. [...] Caeiro 
            é sobretudo inteligência. Filosofa contra a filosofia."  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Ao endossar as palavras do estudioso português, convém insistir num 
            ponto essencial deste ensaio, que pretende se constituir numa 
            sistematização da teoria do texto poético revelada por Fernando 
            Pessoa: o pensa-mento ingênuo de um poeta, conforme a expressão 
            usada por Jacinto do Prado Coelho, nada tem a ver com o pensamento 
            que assegura existência à obra de arte literária. A obra pessoana 
            demonstra, de modo inequívoco, que a ingenuidade é atributo 
            ficcional, característica do sujeito do enunciado, e nunca do 
            sujeito da enunciação. Embora seja fruto de uma experiência 
            instintiva, a poesia para que seja poesia, isto é, para que 
            atravesse a barreira da individualidade e se inscreva como 
            manifestação da sensibilidade coletiva vicariamente expressa, 
            precisa de um compromisso maior com a cultura: a reflexão madura, 
            capaz de apreender esta luminosa revelação difusa.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Pessoa evidencia que o pensamento do poeta nada tem de ingênuo, 
            salvo talvez a grande exceção em que se constituiu o romantismo. O 
            poeta romântico, ou a concepção romântica do poeta, é que podia 
            admitir o pensa-mento ingênuo como atributo da expressão lírica, mas 
            a modernidade apagou esta concepção diletante e irresponsável da 
            poesia, resgatando o papel de artífice da realidade, ou o 
            compromisso da arte com a verdade, através da razão, como queriam os 
            clássicos e os homens do re-nascimento.  
            Não percamos de vista o fato da modernidade pessoana ser resultante 
            da sua concepção do mundo clássico, ou do modo que Pessoa reescreve 
            o classicismo, tanto nas obras de Ricardo Reis, quanto de Caeiro, 
            projetando seus ecos na escrita modernista do engenheiro Álvaro de 
            Campos ou, mesmo, nos densos poemas do simbolista ortônimo.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Segundo o criador dos heterônimos, Caeiro realiza a re-construção 
            integral do paganismo, na sua essência absoluta, tal como nem os 
            gregos, que viveram nele, e por isso não o pensaram, puderam fazer. 
            Ora, se Caeiro pôde reconstruir o paganismo sem viver nele é porque 
            pensou fundamente este sistema, chegando à sua essência. Mas como 
            Caeiro não pensa, apenas vê, Caeiro não poderia ter escrito os seus 
            poemas, e, em síntese, ele também, tal como o conhecemos, não 
            poderia ter existido.  
            Alberto Caeiro é um poeta que só pode ter existência como 
            heterônimo. Para manter a sua inocência de homem da natureza, ele 
            precisa habitar, como vampiro, o corpo de um outro poeta, um poeta 
            fundamente mergulhado na cultura. Para Caeiro negar o simbólico, ele 
            precisa se nutrir da experiência do simbolista Fernando Pessoa.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Por outro lado, para quem se deixa seduzir pela prática Zen do 
            Mestre Caeiro, convém lembrar que o guardador de re-banhos viveu 
            como um iluminado. É como se ele conseguisse alcançar o nirvana sem 
            ter que silenciar, como se escutasse a Voz do Silêncio enquanto 
            fala. Buda chegou à iluminação, ao nirvana, quando, sem ter que 
            morrer, se extinguiu, contemplando a figueira, e sem dizer palavra. 
            Caeiro continua falando do seu próprio silêncio:  
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
              
              
                
                  Um dia deu-me 
                  o sono como a qualquer criança.  
                  Fechei os olhos e dormi.  
                  Além disso, fui o único poeta da Natureza.  
                  [OP, 237] | 
                 
               
              
             
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Como ultrapassar o mundo civil, cotidiano, o triste sentimento de um 
            ocidental? – em suma, como descobrir o quanto vazio é o mundo das 
            palavras, depois de ir além dele, e continuar nele, falando?  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Se a existência de Caeiro só é possível como heterônimo, isto é, 
            como o outro que manifesta uma experiência impessoal, a paz do 
            Mestre só é possível à custa da angústia e do tormento de alguém que 
            não logrou ser seu discípulo: um soturno senhor de óculos e de 
            bigode em cujo documento de identidade estava escrito o nome – 
            Fernando Antônio Nogueira Pessoa.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Mas Caeiro existe e sua obra está aí. Sua existência não é paradoxal 
            nem impossível. Porque a grande iluminação que ele anuncia é a 
            iluminação da poesia. A fuga do mundo das palavras que ele propõe, é 
            o das palavras vazias, gastas, não iluminadas pela transgressão da 
            arte. O olhar inaugural que ele ensina é aquele que vê além do que a 
            alma vestida consegue ver. Caeiro desnuda a alma, apaga dos olhos as 
            imagens gravadas para que puros, livres, os olham vejam o que o 
            pensamento conduzido pelas palavras habituais não consegue entender.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            O poeta nos ensina: as coisas estão aí, na sua plenitude de coisas. 
            E nós só vemos aquilo que nos ensinaram a ver. Não vemos as coisas 
            em si, mas a nossa própria visão tomada como coisa. O seu 
            objetivismo nos convida a ver além de nós, do individual, do 
            pessoal: ver o outro, o mundo. Enfim, Caeiro quando fala, nos fala 
            da poesia.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Esta é a sua Natureza; a natureza desautomatizada, desembrulhada das 
            representações da cultura. A natureza apreendida de forma menos 
            convencional, menos cristalizada pelas circunstâncias e limitações 
            da história do homem. A natureza selvagem, restituída à sua 
            objetividade, sem a imposição das categorias perceptivas que 
            suavizam as arestas e reduzem o alcance do olhar ao ponto 
            habitualmente mirado. A natureza onde as raízes, mesmo escondidas na 
            terra, crescem fortes e expõem seus frutos. A natureza apreendida 
            pela poesia.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Por isso, a certeza, configurada em paz, não ex-pressa somente a 
            placidez do Mestre Caeiro, mas a convicta genialidade de Pessoa, o 
            Outro, ortônimo ou anônimo. O poeta que, para o desapontamento dos 
            amigos, morreu quase inédito, desconhecido do mundo, do pequeno 
            Portugal ou mesmo da Lisboa provinciana no alvorecer do século que 
            viu os frutos da modernidade.  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Por isso, a certeza, a plácida certeza, mandada como uma mensagem na 
            garrafa jogada ao mar, para ser recolhida nas praias do amanhã:  
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
              
              
                
                  Se eu morreu 
                  novo,  
                  Sem poder publicar livro nenhum,  
                  Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,  
                  Peço que, se se quiserem ralar por minha causa,  
                  Que não se ralem.  
                  Se assim aconteceu, assim está certo.  
                  Mesmo que os meus versos nunca sejam impressos,  
                  Eles lá terão a sua beleza, se forem belos.  
                  Mas eles não podem ser belos e ficar por imprimir,  
                  Porque as raízes podem estar debaixo da terra  
                  Mas as flores florescem ao ar livre e à vista.  
                  Tem que ser assim por força. Nada o pode impedir.  
                  [OP, 235-236] | 
                 
               
              
             
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
              
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
            Como efetivamente aconteceu. Cem anos depois do nascimento do 
            obscuro menino-órfão, sua vida reluz como estrela que se avista para 
            além do outro oceano. Tão luminosa, que o mais brilhante pensador da 
            modernidade portuguesa escreve com emoção:  
  
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
            
              
              
                
                  | "Não menos 
                  mágica é, para nós, a aventura daquele que era, por fora, e 
                  para os outros, Fernando Pessoa, e que por dentro não tinha 
                  nome próprio, como todos nós. Só que ele o sabia e nós menos 
                  do que ele. Como Ulysses, sem para si existir nos bastou. Por 
                  não ter sido foi vindo e nos criou, tais que já não podemos 
                  contemplar o céu da nossa cultura sem o ver a ele no centro, 
                  convertido em mito brilhante e mudo, irradiando a sua 
                  luz enigmática. Há cinqüenta anos essa mesma luz era invisível 
                  ou obscura. Hoje é mais que visível e, aparentemente, clara. 
                  Se há enigma é o da sua universal claridade. Por detrás dela 
                  não é difícil descortinar o sorriso de Pessoa, gozando a sós, 
                  como escreveu, a ironia de o não estranharem." 
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            Leia a obra de Fernando Pessoa 
                                                                   
                                                                        
                                                                        
                                                                        
                   
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