Mais de 3.000 poetas e críticos de lusofonia!

 

 

 

 

 

Jornal do Conto

 

 

Caio Porfírio Carneiro


 


Ele



 

Ele sempre se sentava na mesma cadeira de encosto alto e se balançava, olhando o tempo através da janela. Ele não mudava de roupa, o mesmo terno amarfanhado e sujo. Ele não calçava sapatos, meias furadas e chinelos, embora engravatado. Ele nunca sorria quando contava os cúmulos-nimbos que corriam no céu. Ele não cortava as unhas. Ele só se levantava para fazer suas necessidades. Ele dormia na velha cama, vestido corno estava, mãos cruzadas ao peito, como morto ou como se rezasse. Ele só tomava a sopa chupando muito o caldo da colher, numa sonoridade de doer nos ouvidos e nos ossos. Ele chamava a criadinha, balançava-se na cadeira, e ordenava que ela se despisse. Ele a mandava embora em seguida com um gesto de mão e tédio. Ele pedia o jornal, qualquer jornal, para urna corrida ligeira pelos títulos com os óculos na ponta do nariz e jogava-o depois para o lado. Ele não se escanhoava quando fazia a barba, sentado na cadeira e a criadinha com um espelho na mão. Ele ficava com o rosto pontilhado de espuma. Ele não tomava o remédio que o médico receitara. Ele não cortava os cabelos. Ele roncava, cabeça bambeada, a saliva pingando da boca, quando o tempo ia mal e não se podia abrir a janela. Ele rezava e dizia palavrões. Ele recitava versos e os repetia até ficar rouco. Ele tossia e escarrava no chão. Ele soltava gazes, em seqüências sonoras que alcançavam a vizinhança. Ele resmungava e não dizia palavra. Ele cantarolava surdamente sempre a mesma canção. Ele me olhava com olhar neutro. Ele tossia a noite toda, sujava-se nas calças e não permitia que tocassem nele. Ele infernizava a minha vida e a vida da criadinha. Ele era o nosso pesadelo.

Ele ficou assim depois que ela se foi, entre círios e flores.

Ele então foi despachado para a companhia dela, depois que trocamos, eu e a criadinha, um olhar de cumplicidade.

Ele continuou presente com a sua ausência.

Ele me assusta quando olho para a criadinha. Ele a assusta quando ela olha para mim.

Ele aumentou enormemente a carga de nosso pesadelo.

Ele nos deixou sem remissão.