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Cyro de Mattos




Apresentação de Cyro de Mattos

por Margarida Fahel*


 


 

Cyro de Mattos é um dos grandes escritores da minha terra, da minha cidade, Itabuna. Portanto, um irmão das mesmas águas, das mesmas sombras dos cacauais. Muitas das minhas lembranças são reavivadas nas histórias deste prosador, muitas de suas palavras falam por mim, falam de mim, também grapiúna. Autor consagrado de contos e novelas, uma natural tendência de prosador poético o levou, também, a fazer poesia. E boa, e bela. Mas como todo poeta é, antes de tudo, o menino que permanece, Cyro de Mattos incursiona pela literatura infantil. Nesta última década, publicou três livros infantis. Tem ainda organizado antologias. Em quase quatro decênios dedicados à literatura Cyro de Mattos publicou cinco livros de ficção, seis livros de poesia, três livros infantis e três antologias. É homem de letras, da inventiva ao jornalismo. Tem hoje um efetivo reconhecimento nos meios acadêmicos e literários nacionais, além de aparecer em antologias internacionais, ao lado de contistas como Jorge Luís Borges, Alejo Carpentier, Miguel Angel Asturias, Júlio Cortazar, Mário Vargas Llosa, Mário de Andrade e Clarice Lispector. É uma trajetória rica e seus livros estão aí oferecendo-se às leituras mais variadas. Dos pragmaticistas de textos, aos leitores ingênuos, a todos a obra de Cyro de Mattos seduz, com certeza.

Em falando de Cyro, disse Jorge Amado: “Paga a pena ressaltar mais uma vez a força e a originalidade da literatura nascida na região do cacau, no sul da Bahia.” O mestre Jorge insere o nosso escritor na plêiade dos grandes que tiveram e têm suas inventivas alimentadas pela terra onde nasceram e viveram. Fala o autor de Cacau, portanto, de uma grande vertente de literatura brasileira que tem no telurismo a sua marca e que expressa a força de uma realidade humana e social profundamente assinalada pels vivências de seus escritores. Aliás, para muitos críticos, renomados, a exemplo de Costa Lima e Flora Süssekind, essa literatura de base fortemente memorialista reflete a obsessiva busca de identidade dessa jovem literatura brasileira. Como disse a nossa crítica e professora da Uesc, Maria de Lourdes Neto Simões, falando também de Cyro, “vivências retidas na memória, lembranças ou perspectivas de um tempo são redimensionadas pelo imaginário e tornadas literatura”.

O termo “tornadas literatura” quer dizer da forma única e singular que tem o escritor de contar o vivido/imaginado: o processo da linguagem, a urdidura ficional. Cyro de Mattos atende a esses critérios básicos. Há em sua obra uma urdidura ficcional e um discurso ímpares, em que enunciado e enunciação se casam e se explicam. Permito-me retornar palavras que escrevi em prefácio de Os Recuados (1987): “Assim é que nessa contínua busca de expressão plena, ele usa a palavra com a força e a dimensão já conhecidas. A palavra ele a utiliza em todas as suas virtualidades e potencialidades”. Ainda nesse texto, enfatizo momentos de grandeza lírica seugeridos pela força das imagens em que “acontecem fusões mágicas de palavra e cor; cor e sentimento; sentimentos, palavras, sensações.” É a palavra de Cyro: “... voz seduzida de afeto, olho enraiado de encanto, era ele uma só vibração se irradiando feliz...” “Não sei o que era melhor/ se a água fresca e boa/ ou a limpidez de sua voz/ anunciando a manhã cristalina.”

A urdidura ficcional de Cyro caminha na direção de um tezto forte, embora simples e fácil, em que o narrar se faz por um tempo ficcional que é a memória e duração psicológica. Por sua vez, essa engrenagem narrativa constrói e reconstrói, pela via de reminiscência, personagens que se situam no limite do regional/universal. E aí está outro aspecto especial da força narrativa deste escritor. Tecendo tramas que se situam no contexto da região cacaueira, esboçando caracteres aparentemente frutos de uma circunstância cultural, o contista especialmente consegue realizar o que se poderia dizer “o todo está em cada parte”.

Cyro trabalha nas figuras clássicas do cenário grapiúna de uma época: o coronel, o areeiro, o aguadeiro, o jagunço, mas, em cada um, assoma nitidamente o drama humano e existencial anterior e posterior a limites geográficos e contingências sociais. E, então, o ficcionista se fez maior. O crítico Mário da Silva Brito, falando de Cyro, refere-se a sua “procura e busca para alcançar o âmago do drama humano, que é, de fato, o núcleo de suas muitas vezes camuflada linguagem poética”. Mas, gostaria de enfatizar um pouco, também, o poeta Cyro de Mattos, especialmente em um livro que me seduz em especial exatamente pelo domínio da técnica, pelo poema curto, condensado, depurado de adornos, em que o essencial é a apreensão perfeita. Falo de Cantiga Grapiúna. Esse livro me seduz, ainda, pela capacidade de síntese do imaginário coletivo. Nessa obra o discurso poético se faz particular e salutarmente ambíguo: “O cacaueiro/ é sedução/ de aurora/ e crepúsculo./ Cílios,/ impressões de folhas,/ a fio e rumo/ segredo”. Sutilmente, o poeta se faz crítico de uma história e de uma época. Mais do que reminiscências e nostalgias, as figuras retratadas em verso evocam avessos e tecem histórias ocultas ou esquecidas. Assim é que em “Lavadeiras” Cyro fala de “manchas” jamais removidas. Os adjetivos utilizados sinalizam para a feliz ambigüidade: “E pelas águas tão profundas,/ De sol neutro e imprecisa lua,/ Roupas alvas desceriam/ Sem que antigas lavadeiras/ Conseguissem remover as manchas”. “O areeiro” se faz síntese perfeita da realidade social e humna: “A cidade toda sabia/ pelas mãos do areeiro/ que o rio era uma dádiva/ a argamassa das casas/ feita de fibra específica:/ calo, suor e areia”. O rio, o seu rio tão cantado e amado. O seu “rio menino”, o Cachoeira, se faz real e se faz ícone. O rio cantado por Cyro neste livro, e em toda a sua obra narrativa e poética, é recorrência temática, mas também estratégia para revelar os anseios profundos do escritor: a preocupação com o efêmero, o desejo eterno, a sede do infinito.

O rio de Cyro é: “Prata da noite em superfície mansa/ Reinventando o mistério da vida”. Mas, também, “ O Cachoeira era relógio de fadas/ suas águas suas cheias/ suas flautas...” O rio é ainda, expectador e expectante: ...”sabem que existe um rio, e manso, e belo, e eterno, no tempo de sol aberto é boi que rumina sábio, sereno vigia suas vidas por ruas e becos, corridas e paradas, ladeiras e planos. E eles continuam disputando o domínio das árvores dos frutos de ouro, e seguem indiferentes à presença daquele rio,...” E o rio se faz instrumento infalível da memória, da possibilidade do retorno. Por vezes, o rio é a possibilidade de pureza, da ausência de ambição, da infância a ser buscada: “Havia céu e sol na correnteza, / brilhinhos chuviscando a natureza.” “Apenas rioflor, risos de pureza./ Certamente canção de noite e dia,/ Certamente uma fábula que havia”. O rio é plenitude. Isto é um pouco de Cyro de Mattos. Muito pouco, o mais é ler cada linha, preencher cada vazio, falar em cada silêncio. Alfredo Bosi diz em seu belíssimo livro O Ser e o tempo da poesia (1995) que “o poeta é um doador de sentidos. O poder de nomear significava para os antigos hebreus dar às coisas a sua verdadeira natureza, ou reconhecê-la. Esse poder é o fundamento da linguagem, e, por extensão, da própria poesia.” Cyro de Mattos com seus contos, novelas e poesias nomeia e dá perenidade às coisas e gentes da terra grapiúna. Lê-lo é partilhar dessa missão: a de eternizar em cada um a alma de um rio, de uma terra, de uma civilização. Mas, além disso, é reconhecer um pouco que seja da verdade humana, pungente de dor e de mistérios.


* Margarida Cordeiro Fahel é professora de Literatura Brasileira da Universidade Estadual de Santa Cruz, Sul da Bahia.

** Esse texto de Margarida Fahel participa do livro “Com a palavra o escritor”, organizado por Carlos Ribeiro, Fundação Casa de Jorge Amado, Salvador.

 

 

 

 

08/07/2005