Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

 

Circe Vidigal


 

Rumo a Leningrado

 

A cunhada era uma pessoa fina, educada, freqüentava a alta sociedade e vestia-se como uma dama. Era pacífica, calma e nunca ninguém a ouvira gritar ou perder as estribeiras. Católica fervorosa, comungava todos os domingos e duas vezes por semana trabalhava na igreja para obras sociais, costurando para os pobres e dando aulas aos favelados da paróquia. Sua fé era verdadeira e forte, diferente do que se costumava ver em pessoas ditas religiosas. Em sua mesa de cabeceira havia apenas um abajur, um terço e o Evangelho. Rezava ao se deitar e antes mesmo de sair da cama. Ao levantar parecia vinda de um salão de beleza, mesmo sem nenhuma maquiagem. Era naturalmente elegante nos modos, nas roupas e no falar. Casara-se muito cedo, aos dezesseis anos, com seu primeiro amor. Antes disso desejava ir para o convento, por vocação religiosa. O marido, belo oficial da cavalaria, tocava piano muito bem , gostava de dançar e freqüentar a vida noturna. Era de família rica, mas simples e adorável, muito querido por todos. A jovem esposa o acompanhava e aprendeu a gostar desta vida diferente e movimentada. Acompanhava-o alegremente, sem, contudo, esquecer suas obrigações religiosas. Era recatada por natureza. Soube-se posteriormente que o casamento levara oito dias para se consumar. Fora preciso chamar os pais dela, para que dessem uma solução ao problema.

Era grande amiga da viúva de seu irmão mais querido, carinhosa com os sobrinhos, sempre atenciosa, mansa e sorridente. Ambas tiveram o mesmo número de filhos – as parideiras da família – o que mais as aproximava. Seus temperamentos tão opostos não eram obstáculo à firme amizade que as unia, mesmo não se vendo com freqüência, pois moravam longe uma da outra. Eram opostos gêmeos.

A outra, alegre, generosa, fraterna e barulhenta, a casa sempre cheia de agregados, era, ao contrário, estabanada, falava alto, contava anedotas cabeludas - aprendidas com os vários irmãos homens que tinha - e que ruborizavam o pobre marido, tão apaixonado quanto envergonhado desses modos Às vezes ele não se continha e a cutucava por baixo da mesa, para que moderasse a performance, não falasse coisas impróprias ou risse muito alto. Ele ainda não se dera conta que ela só agia assim em família, ou no à vontade e na camaradagem dos amigos. Apesar do sacrifício, sabia se comportar como uma lady, quando se fazia necessário. Nessas horas de reprimenda, ela murchava como flor sem água no vaso, entristecia e se calava imediatamente. Nesse ponto ele era reservado como a irmã; sempre dizia que seu ideal era ser um homem de terno cinza em meio a uma multidão cinzenta. Detestava destacar-se, chamar atenção. Paradoxalmente, sua missa de sétimo dia lotou a Igreja da Candelária – a maior igreja do Rio de Janeiro - ficando ainda uma verdadeira multidão de fora. Aquela enorme massa vestida de branco – de almirantes a marinheiros - chorava seu jovem companheiro, morto tragicamente em serviço, deixando uma viúva de trinta anos, como ele, com seis filhos, o mais velho com seis anos ( ela pariu gêmeos duas vezes, talvez pela intensidade do amor que os unia )

Foram duas horas recebendo pêsames, como se vivesse um sonho, aturdida, fora do ar. Nenhuma lágrima lhe caiu nesse dia – ela, tão chorona - e ainda consolava aqueles que a abraçavam aos prantos. Era como se estivesse assistindo a um filme ou a uma peça de teatro. Aquilo não era a realidade, não podia ser. Por sua cabeça passavam cenas de amor e paixão que vivera tão intensamente. Havia – ou houvera? – entre os dois, a despeito das diferenças de comportamento, uma união muito forte, não só da alma como do corpo. Desejavam-se intensamente e amavam-se a qualquer hora, em qualquer situação.

Ela estava sempre grávida e ele achava sua barriga linda. Trepavam quase até o neném nascer: na cama, no sofá da sala ou no chão, por ocasião de uma mudança, quando a cama ainda não estava montada. Deviam até cutucar as cabecinhas dos bebês, já encaixadas na pélvis. Deveriam ter nascido perturbados das idéias, mas qual nada, cada um mais lindo e perfeito. Enquanto isso a cunhada ia também fabricando os seus, só que por cumprimento do dever matrimonial e certamente por um buraco no lençol, tão acanhada continuava para essas coisas.

Foi muito mais tarde, os filhos já crescidos, uma viúva, a outra abandonada pelo marido, que surgiu essa história de viagem. O Comandante do Loyde Carajá era casado com uma amiga de biriba da cunhada. Seu navio seguiria até Leningrado , passando por vários portos da Europa e o camarote do armador era alugado por seiscentos dólares para a viagem toda – três meses , com tudo incluído. Sozinha a cunhada não se animava. Cadê coragem de se largar assim pelo mundo, no meio só de homens? Quem sabe a maluca da viúva de seu irmão não topava? Tropa de choque que era, com ela estaria garantida. Mas a outra não tinha dinheiro, uma pena, onde arranjar? Espicha daqui, empresta dali, surgiram os abençoados dólares e lá se foram as duas, muitíssimo bem acomodadas - que camarote de armador é pra ninguém botar defeito: saleta, com sofá, estante e escrivaninha, um belo quarto com duas camas, dois armários e um grande espelho sobre uma cômoda; completando, um banheiro com tudo o que se tinha direito.

A aventura começou no porto de Santos, onde as duas passageiras do Lorde Carajás eram obrigadas a passar diariamente pela zona do baixo meretrício para ir à cidade, nos dias em que o navio esperou para carregar. Só depois foram saber das barbaridades que ali aconteciam com incautos como elas. Devem ter sido protegidas pelos anjos das mulheres desinformadas. Em Ilhéus, o navio ficou parado uma semana. O cacau já estava nos porões, mas com chuva não se carregava sisal, altamente combustível ao contato com a água. E já por aí começaram a aprender coisas. E a esperar. Em Ilhéus, a visita à casa da comadre para aproveitar o tempo da parada mais parece uma história surrealista. Duas mulheres absolutamente urbanas, pegando um ônibus para Jequié, devendo descer antes em Barra do Rocha, onde pegariam um táxi – ou qualquer outra condução – que as levaria, finalmente, à fazenda da comadre, em Ipiaú. O compadrio surgira há mais de vinte anos, quando o tímido oficial de marinha levara a esposa em visita a um colega de farda amasiado com uma jovem baiana. Naquele tempo, amancebar-se, mesmo com uma riquíssima herdeira do cacau, era motivo de rejeição dentro e fora da comunidade naval.Só ele, com sua timidez incrustada num enorme coração sem preconceitos, aceitara o convite para visitá-los. Quando a jovem baiana engravidou, a união já estertorava e quando o bebê nasceu, convidaram o casal que os apoiara para batizar a menina. A última vez que vira sua afilhada fora em seu aniversário de cinco anos, num luxuoso apartamento de Ipanema. Depois que lhe morrera o avô, deixando a mãe e mais dezessete tios, herdeiros da maior extensão fundiária cacaueira da Bahia, as comadres e a menina viram-se apenas uma vez, em Salvador. A afilhada estava então com vinte e poucos anos, já mãe solteira de três filhos, um de cada pai, criados pela avó, ainda uma bela mulher e que dividia seu tempo entre a fazenda que lhe coubera, uma bela casa em Itapoan, a Europa e o Rio de Janeiro.

Naquela época os ônibus do interior do nordeste mais pareciam uma Arca de Noé. Carregavam de tudo. De aves àquelas duas mulheres estranhas e destoantes. Seguindo pela BR, foi entrando em todas as pequenas vilas por onde passava; o motorista gritava o nome do povoado, saía do asfalto e se adentrava ao lugarejo. Ansiosas, esperavam o anúncio de seu destino. Ao ouvirem: - Barra do Rocha! – estranhamente o ônibus parara no acostamento e algumas pessoas começaram a descer. Timidamente uma delas perguntou: - Não vai entrar na cidade? – Não senhora, aqui não entro, é só uma paradinha. Com suas lustrosas e elegantes maletas de mão desceram e, mesmo a valente tropa de choque sentiu um friozinho na barriga. Entardecendo e elas ali, perdidas naquela imensidão exuberante de todos os tons de verde que margeavam a BR. Foram salvas por dois rapazolas que, gentilmente, se ofereceram para lhes carregar as malas. Pra onde vão? Aí lhes explicaram e pediram para encaminhá-las a um ponto de táxis. – Aqui tem disso não, senhora. Pra onde tão querendo ir? - Nosso destino é Ipiaú, na fazenda de Dona Tereza Barreto. - Ah! , mas isso não é difícil, o administrador dela mora aqui mesmo. Levamos as senhoras até lá, ta bom assim? Tava ótimo! Benza-os Deus! Ao chegar à casa do administrador, souberam que Tereza estava lá pois era dia de acerto de contas. Escarrapachada numa cadeira, em frente à casa, estava a comadre. Cinqüenta e poucos anos e não mudara nada. Talvez até mais bonita.

-Oi, disse a comadre visitante. Lembra de mim? A outra olhou-a de alto a baixo e, com cara de poucos amigos respondeu secamente: - Não, não lembro. – Pois é uma pena, pois vim de mala e cuia pra ficar uns dias em sua casa! Será possível? Só tens uma filha e vais esquecer logo a cara da madrinha? Ao que ela deu um pulo da cadeira e abraçou-se, comovida, à amiga ! – Céus, como você me encontrou aqui? Explicou-lhe que por artes da Telemar havia descoberto o telefone da afilhada em Salvador e esta lhe explicara o modo de chegar lá. Um jovem moreno e forte encostava-se na picape estacionada em frente a casa. Parecia o motorista, mas viajamos para a fazendo, ela dirigindo, nós duas ao lado e ele atrás, na caçamba. Dezesseis quilômetros por uma estradinha de terra e chegamos. A casa, de construção moderna, sofisticada, mas adequada àquele meio rural, estava coberta por floridos buganviles de diversas cores e tinha ao redor um avarandado de quatro metros de largura cheio de cadeiras, vasos de flores, plantas exóticas e galinhas soltas que cagavam no chão como se estivessem no galinheiro. Duas empregadas, seguiam atrás, limpando a sujeira que faziam. Das aves ali só se aproveitavam os ovos, pois morriam de velhice ou sumiam por roubo. Quando queria comer frango, a comadre mandava comprar na cidade, já morto. Sua criação era intocável! Ao fundo da varanda uma tosca mesa de comer com quatro cadeiras; nas laterais, enorme jardim com espaçosos viveiros com as portas abertas; dentro, estranhas e lindas aves desconhecidas pelas visitantes . Acho que não saiam dali pois sabiam que poderiam fazê-lo a qualquer hora. Eram livres como aves da floresta. Se ali estavam deveria ser pela farta refeição diária e o amor e os cuidados de quem as fornecia. A comadre adorava bichos. Quaisquer bichos: aves, jacarés, bois, tudo ! Sabedores dessa sua particularidade, as pessoas viviam batendo à sua porta, oferecendo toda espécie de animais: um casal de jabutis, vacas velhas que não davam mais cria nem leite, papagaios... Ela não podia ter um aparelho de televisão pois os lindos papagaios azuis subiam pelo telhado e adoravam comer a fiação da antena. Não havia o que os impedisse e ela optou pela liberdade das aves em detrimento da tv. Muito verde, muita flor e um enorme açude cheio de jacarés que atendiam pelo nome, ao serem chamados para comer. Dos diferentes cantos daquelas águas mansas começavam a surgir, ficando à espera da carne, sob o deck construído junto a casa de hóspedes, onde estas dormiram por dois dias. A comadre os alimentava conversando com eles. O jovem que viera com elas de Barra do Rocha era seu companheiro e o conhecera numa feira, por ocasião da compra de uma tropa de burros. Pertencia a um grupo de ciganos e negociava em nome deles. Tinha idade para ser seu filho, mas apaixonou-se perdidamente, abandonou seu bando e foi viver com ela na casa da fazenda. Estavam juntos há vários anos, quando o conhecemos. Seus familiares vieram buscá-lo várias vezes e até mesmo à força chegaram a levá-lo. Mas ele fugia e voltava sempre. Soube-se depois que ficara muito doente e fora internado, depois que se separaram. Hoje são grandes amigos e ele continua a seu lado. É seu atual administrador, seu braço direito, seu homem de confiança, que inicia seus netos nos negócios da família, para sucederem a avó, quando esta morrer, pois a mãe é como uma criança que nada sabe da vida. São os filhos que se preocupam com ela e cuidam-na mesmo com muito carinho. Aos quarenta e poucos anos conversa como uma adolescente e sonha com o príncipe encantado que ainda deverá chegar. Pobre moça ! Tão linda e sem horizonte, sem uma perspectiva de futuro só seu. Estudou na Europa, fala vários idiomas e não sabe o que fazer para ganhar a vida, sem depender da mãe.

Com essa mania de comprar todos os bichos que lhe ofereciam à porta, Tereza foi obrigada a adquirir uma terrinha para colocar o gado que comprava. Qual não foi sua surpresa quando uma das velhas vacas ficou prenha e deu uma linda cria. Hoje a comadre também é fazendeira de gado, o que lhe acresce razoável renda. A fazenda fica às margens do rio Gongogi ( j ? ) onde levou as duas visitantes a passeio. Comeram pitu assado na brasa, pescado na hora com uma boa talagada de cachaça. A cunhada ficou só no pitu, pois achava que a cachaça lhe faria mal, acostumada que era a wisky e vinhos importados. Deu também uma desculpa esfarrapada para não se despir totalmente e se atirar ao rio, o que as comadres fizeram com grande prazer e estardalhaço. Eita banho bom, aquele! Inesquecível ! Ao voltarem, a picape derrapou no lamaçal de uma subida de morro e caiu de lado numa valeta. Foram necessários vários homens para tirá-la dali, mas como subir de novo aquela rampa sem derrapar? Ninguém se atrevia a tentar, nem os homens. Foi quando a madrinha carioca resolveu arriscar. Era boa de volante e, quem sabe, não conseguiria? Só ela no carro, distanciou-se bastante com uma marcha-a-ré, engatou primeira, segunda e, na terceira já estava subindo, rezando, a caminhonete rabeando, desgovernada na lama, e ela morrendo de medo de sua audácia, o coração aos pulos, mas conseguiu chegar ao topo. Foi uma gritaria geral: - Eita carioca porreta! E lá vinha a comadre subindo a pé, com os sapatos na mão, acompanhada da cunhada que, sem perder a elegância, patinhava suas lindas sandálias brancas, de salto, naquele barro infernal .

Quando estava na fazenda, Tereza dormia às 6h da tarde e acordava às 4h da madrugada. Supervisionava todo o trabalho pessoalmente, com firmeza e competência. Cuidava de seus colonos que tinham assistência médica na cidade e exigia as crianças na escola e os jardins de suas casinhas limpos e floridos. Seus empregados trabalhavam satisfeitos e lhe eram extremamente dedicados. Nos meses que passava na Europa ou no Rio de Janeiro era outra pessoa. Esbanjava dinheiro, consumia o que havia de mais caro e sofisticado e trocava o dia pela noite. O companheiro ficava lá, em Ipiaú à sua espera. Quando a saudade apertava, ela voltava para a fazenda.

As viajantes chegaram ao navio com impressões e sentimentos desencontrados. A cunhada, escabreada, pois não estava acostumada a tais aventuras . Adorava fazendas, mas com “chauffage” no inverno e ar condicionado no verão. A outra adorara tudo. De comum, só a aparência de cataporentas. Os corpos pintadinhos de vermelho por igual, mordidos por um mosquitinho minúsculo, que chamam de pólvora.

Comiam na Praça D ´Armas – nome mais pernóstico ! – junto com o Comandante. Passadio de primeiríssima. Do caviar ao vinho francês. Os homens do mar se tratam muito bem, seja na Marinha de Guerra, seja na Marinha Mercante. E elas, na onda , por seiscentos dólares.Se era quase de graça por um lado, não havia o que pagasse aturar aquele homem. Sabedor da religiosidade da cunhada, às refeições começava falando mal da Igreja e terminava falando mal dos padres. Quanto à outra, que estudava para um mestrado, tirou uma mirada de seus livros e tome criticar a Universidade, a Sociologia, a Antropologia e as mulheres que se dedicavam a isso. A cunhada sorria amarelo, não é bem assim comandante, defendia-se como podia. A outra foi ficando invocada, aborrecida mesmo. Mas seu atrevimento não chegava ao ponto de pular na água e voltar nadando. Discutia, rebatia, argumentava, começou a gritar nas discussões e não percebia como ele se deliciava com tudo aquilo. Só mais tarde foi saber o porquê daquele modo de ser do comandante. E aí, teve muita pena dele e arrependeu-se de cada desaforo que lhe dissera.
Ele se dizia surpreso com as duas mulheres. Já havia transportado várias passageiras e não dava quinze dias para estarem brigando. Qual a razão de tão bom entendimento? Elas não brigavam nunca, estavam sempre de bom humor e de bem uma com a outra. A cunhada apenas se ruborizava com os excessos da outra enquanto essa jamais fizera um gracejo ou comentário às suas rezas noturnas e matinais, ou seu modo tímido e delicado frente à grosseria do comandante. De vez em quando metia-se na conversa, de capa e espada em riste, na defesa da cunhada e do seu direito à sua religião. Ela, naquela época, era absolutamente atéia, existencialista, tiete de Jean Paul Sartre.

O atrito final entre a mestranda e o comandante foi brabo. Em meio à discussão ele gritou: - A senhora é uma comunista! Ao que ela respondeu prontamente:
- Comunista é a mãe e eu não como mais nesta mesa ! Levantou-se e saiu furibunda, desceu as escadas pisando duro e dirigiu-se ao refeitório dos oficiais, lotado àquela hora de almoço. Na porta, ficou olhando para todos que, espantados, pararam de comer até que o imediato lhe perguntou: - Que bons ventos a trazem aqui? - Briguei com aquele comandante de vocês. Posso comer aqui?
Foi uma enorme algazarra, gritos, parabéns, vivas à quem tinha desafiado a fera. E ela conheceu os dias mais felizes daquela época, de tão paparicada por todos, alegres com aquela presença feminina, mas dentro de um clima do maior respeito. Ali ela se sentia como se estivesse em casa, só ela de mulher, no meio de seus irmãos. Estava acostumada a viver entre homens. Enquanto isso o comandante maquinava um jeito de obrigá-la a voltar para sua mesa, torcer-lhe o pepino. Ia ser dureza conseguir, mas ele conseguiu, usando um inteligente artifício.

Ao chegarem a Salvador, vários dias atrasados, a carga que o Loyde Carajá deveria pegar neste porto já seguira em outro navio, por conta das dificuldades em embarcar o sisal em Ilhéus. Com isso perdeu-se um mês de viagem e a passagem por Lisboa e Londres, para onde iria esta carga. Uma pena, mas, que fazer? Sabiam que isto poderia acontecer.
De Salvador cruzaram direto para Dunquerque. Quinze dias de mar! Certa noite, pelo meio deste percurso, avistaram ao longe as luzes das Ilhas Canárias. Único sinal de vida naquela imensidão entre os dois continentes. Os dias passavam calmos, uma comendo com o comandante a outra com os oficiais, no andar de baixo, onde era muito mais divertido. O cozinheiro, sabedor que ela gostaria de fazer uma dieta veio lhe perguntar o que desejava. – Que frutas o senhor tem no estoque do barco? – Bem, o que temos muito e de boa qualidade são maças. – Então está tudo resolvido; 4 maçãs assadas pela manhã e um café preto. No almoço, seis maças do mesmo jeito – e nem me fale em sobremesa! Só um café e, à noite, o senhor me traga tudo o que eu não comi durante o dia, isto é, a janta completa e o almoço, ta bom assim? Ele ficou olhando espantado, não estava entendendo nada. – Não vai lhe fazer mal? - Faz não senhor. Tenho um estômago de avestruz. E assim não vou engordar. O imediato, barrigudão, já queria saber que dieta era aquela tão maravilhosa, mas não adiantava. Seu caso era bebida e ele estava mais inchado do que gordo.

Durante o dia as duas liam muito. A cunhada havia levado belos romances, de autores famosos, precavera-se com boa leitura. A outra ia destrinchando tudo o que precisava para o seu mestrado, fichando cada livro, tudo isso sentada nas taboas do convés, pois o navio não tinha sequer uma cadeira nesse lugar. Ele existia em função das cargas e estas não precisam de nenhum conforto extra. Certo dia o telegrafista viu-a sentada no chão, toda torta, tentando fazer um fichamento num caderno. – Isso é um absurdo, vai lhe fazer mal, vou lhe trazer uma coisa. E em poucos minutos voltou com uma almofadinha de espuma. – Nossa, que luxo, assim vai ficar bem melhor! Onde o senhor arranjou? É da minha cadeira, mas não me faz falta alguma. Não houve jeito de levá-la de volta. Ela precisava mais do que ele. Esses cuidados lhe tocavam o coração. Ali, sentia-se amada e protegida. Mesmo o comandante, com toda sua grosseria, ficava a adivinhar-lhe os desejos. Às vezes seu taifeiro a procurava e lhe dizia: - Há uma garrafa de vodka russa no freezer para a senhora. Use à vontade. Foi o comandante que mandou. Alguém lhe disse que a senhora gosta muito. De outra vez foi o doce de leite. Sabedor que ela adorava doce de leite, lá vem o taifeiro avisar. – Há três latas de doce de leite condensado para a senhora na geladeira. Quando acabar é só me avisar. Que coisa estranha; só trocávamos saudações de rotina e ele a me cercar com esses mimos. Queria me amolecer. Certo dia recebemos um convite formal, trazido pelo mesmo taifeiro: - O comandante avisa que às dezessete horas estará oferecendo um coquetel aos Oficias de Máquinas e as senhoras estão convidadas. É na Praça d ´Armas . Xiiiiiiiiiiiiii lá vai ela ter que voltar àquele lugar jurado de morte. A cunhada implorou-lhe: - Pelo amor de Deus, vamos, seria uma desfeita ! E seria mesmo. Não ao comandante, mas aos Oficiais das Máquinas - sem as quais o navio não andaria. Impossível ignorá-los. E lá se foram as duas. A reunião esteve agradável, muitas iguarias, bebidas finas, conversa animada, mas a outra havia percebido a mesa de jantar posta, lá no fundo. Contou os lugares sem que ninguém percebesse. Dava certinho: Comandante, Chefe de Máquinas, Primeiro Piloto e elas duas. Fora pega na armadilha. Não berrou, que era boa cabrita. Daí por diante, havia um coquetel por semana. Ele só faltou homenagear o pessoal da cozinha. Era a forma de obrigá-la a sentar-se à sua mesa.

Com o tempo a raiva passou e ela voltou à antiga rotina, a pedido da cunhada. E ele passou a se comportar, sem provocações. Andava tristonho e meio cabisbaixo. O primeiro piloto, jovem educado e muito bonito estava sempre com o comandante, por força de suas funções. Além disso, possuía em seu camarote uma estação de rádio-amador, dele, particular e se comunicava com o Brasil diariamente. Por ele mandaram e receberam recados de suas famílias. Às vezes ele se fechava com o comandante e ficavam muito tempo conversando. O comandante estava sempre lhe pedindo notícias do Brasil. Diariamente. Havia ali algum mistério. E acabaram sabendo. Ele aceitara aquele comando – que poderia recusar sem maiores problemas,- deixando na responsabilidade da esposa o terrível fardo de acompanhar sua única filha mulher, com 38 anos, morrendo de um câncer. Seu filho não o perdoava e soubemos que às vezes vinham recados terríveis. Elas ficaram, no primeiro momento, muito chocadas com sua atitude. Por que não ficara junto à família naquele momento horrível? Mas sua covardia era tão grande quanto o amor que tinha por essa filha. Não queria ver-lhe o sofrimento, preferiu ir para bem longe, onde talvez não sentisse tanto o que se passava. Fazia de conta que nada estava acontecendo. Desse tipo de dor, sua desafeta passageira entendia muito. Fazer de conta que era um sonho.Desse dia em diante ela foi só carinho e compreensão com ele. Poderia lhe xingar a mãe que ela não se importaria. Procurava distraí -lo, contava-lhe casos que não iriam gerar polêmicas, enfim, como mãe que também era, pensava na outra que lá ficara, segurando o rojão, mas tentava minimizar o sofrimento que estava ali a seu lado. Ela e a cunhada se uniram para isso. Nesse particular, as duas eram muito semelhantes. Ela, que detestava cartas, inventou um torneio de biriba que foi muito bem recebido e ajudou bastante a passar o tempo das travessias.

Existe sempre uma festa – mesmo na Marinha Mercante – ao se cruzar a linha do Equador e o Loyde Carajá não fugiu à regra. As passageiras foram avisadas e convidadas. Montou-se no convés uma engenhoca que puxava a água do mar para jorrar de um tubo que funcionava como ducha. Todos os que ainda não houvessem cruzado esse espaço, deveriam ser batizados. No caso, as duas passageiras. Para aqueles homens solitários, afeitos as durezas da vida no mar, tudo era motivo para festejo, assim, quando elas chegaram na popa, havia mesinhas com cadeiras, muita cerveja e batidas de limão. Uma bateria de escola de samba animava o local. A marujada, comportadíssima, já tomava suas cervejas e batidas. Numa mesa, o Comandante, o Imediato, o Primeiro Piloto e os lugares para as duas senhoras – depois do batismo. A cunhada surgiu em sua elegante simplicidade, adequada à ocasião, enquanto a outra, de calça leg, camisão e sandálias havaianas – também de acordo com o evento, mas à seu modo moleque de vestir: Mulher de marujo, sabia o que a esperava e não iria estragar um sapato ou sandália de couro, bem como uma roupinha melhor. Aquela era só sacudir e por para secar e nem precisava passar à ferro.

Seu Carrapicho era o homem mais velho do navio em idade e em tempo de serviço à bordo . Moreno, cara larga de maranhense, cabelos compridos e encaracolados, tinha um sorriso aberto, franco e acolhedor . Era ele quem comandava o samba, de Porta-Bandeira, com estandarte e tudo e, à chegada das convidadas, estendeu seu braço, chamando para a parceria, aquela menos séria e mais desinibida. E ela, que adorava um samba, não se fez de rogada. Uma festa inesperada e maravilhosa. Céu azul, tempo bom, música brasileira, cerveja, canapés, uma bateria de escola de samba improvisada e muita alegria.. As duas já haviam passado pela cerimônia do batismo, debaixo da ducha. A cunhada passou de raspão sob a água, para não se molhar toda enquanto a outra, deliciou-se com a força da água, encharcando-a da cabeça aos pés. Era naturalmente imune à gripes e se deixava secar ao sol e ao ritmo do samba, pelo braço de Seu Carrapicho. Num volteio mais ousado escorregou na água do convés com suas sandálias havaianas e esborrachou-se no chão, de cara. Uma das lentes de seus óculos escuros desprendeu-se, quebrou e entrou fundo no supercílio esquerdo e acabou-se a festa. Parecia sangue de uma carnificina. Saía aos borbotões, inundando-lhe as roupas e o convés. O estrago fora grande: um profundo corte nesta região que, por natureza já sangra muito. Carregaram-na com cuidado e carinho para a enfermaria de bordo, limpíssima e, aparentemente muito bem equipada. Só faltava mesmo o profissional competente para o atendimento. O comandante segurava-lhe uma das mãos e a cunhada, a outra. O “enfermeiro” de bordo estava a ponto de desmaiar. Pálido, trêmulo, fez a limpeza do local e, com uma voz sumida lhe disse: - Senhora, só fiz um cursinho de primeiros socorros, sem nenhuma experiência prática. Vou ter que costurá-la, perdoe-me qualquer erro. Quando chegar ao Rio, na volta, procure um cirurgião plástico. Apesar da dor e do sangue ela estava calma e lhe respondeu: - Não se preocupe. Considero uma benção tê-lo aqui. Faça o que puder e não fique nervoso, preocupado com estética. Só quero parar de sangrar como um porco. O resto, se ficar feio, boto um bandaid cor de pele por cima e estamos resolvidos. Vamos, não tenha medo, pode começar. Doeu muito! Mesmo após a anestesia – que já começou maltratando – continuava doendo. Cada ponto era como uma facada e ela apertava a mão do comandante e da cunhada com mais força. Mas tudo tem um fim e levaram-na, de maca, para o camarote. Passou o dia recebendo visitas; até o último marujo fez questão de lhe dizer o quanto sentia o acontecido. O cozinheiro avisou-a que passava a mandar na cozinha. O que quisesse era só pedir. O comandante, aflitíssimo, à toda hora vinha saber como se sentia. Ela estava bem, só muito cansada, talvez da tensão e do nervoso. Seu rosto parecia o de um boxeador em final de luta. Inchou muito e apareceram várias manchas roxas perto dos olhos. O local doía bastante, mas já no dia seguinte estava bem melhor e quis levantar-se para comer suas maçãs e tomar seu café. - Nem pense nisso, senhora, disse o taifeiro do comandante. Trago-lhe tudo aqui. São ordens. A senhora ainda não pode se levantar! Tanto paparico, tanto carinho... Valia a pena um pequeno acidente como este para ver tantas manifestações de solidariedade e ternura. Um dos auxiliares de cozinha perguntou se poderia lhe fazer um pouco de companhia, contar-lhe algumas histórias interessantes de suas vidas de homens do mar. O comandante não deixou.Iria importunar a passageira e ela precisava de repouso. Em poucos dias estava de pé, pronta pra outra. Ah! Se soubesse como “ a outra” estava próxima!

Após os quinze dias de travessia chegaram a Dunquerque, cidade famosa pelos acontecimentos da II Guerra mundial. Verdadeira epopéia vivida pelos soldados aliados na desesperada tentativa de atravessar o Canal da Mancha, fugindo dos alemães que os acossavam pela retaguarda. Todas as embarcações francesas disponíveis foram usadas e os ingleses, ao tomarem conhecimento do fato seguiram para ajudar no resgate até com pequenos iates à vela. Arrepiante e comovente só de lembrar. Conhecer Dunquerque foi apenas rememorar essa epopéia, pois a cidade em si era feia e sem nenhum atrativo. Arquitetura descaracterizada, sem algo que se pudesse apontar como precioso. Ali passamos apenas dois dias, seguindo para Antuérpia – ou Anvers, como os belgas gostam de chamá-la. Os portos nunca são oceânicos. Normalmente sobe-se a foz de um rio até atingir o porto.Aqui, entramos pela foz do Reno. Para atingir Hamburgo, subimos o Rio Elba. Para Leningrado, aporta-se no Golfo da Finlândia após atravessar o canal de Kiel e sair no Mar Báltico.Em Antuérpia havia muita coisa digna de ser vista e comentada. A maior surpresa foi perceber que 90% da população falava flamengo e não francês ou alemão. Ao visitarem a Casa de Rubens, o grande pintor, não havia uma só informação que não fosse em flamengo. A casa, um verdadeiro museu, com belos jardins internos e mais de um pavimento, deixou as passageiras frustradas. Até os livros turísticos, as fitas de ouvido que deveriam orientar e explicar eram incompreensíveis. Fato inexplicável ! Tudo em flamengo. Ficaram frustradas e irritadas com tal desrespeito aos estrangeiros que não dominassem aquela língua tão pouco conhecida. Nada em inglês ou francês ou mesmo em alemão. Mas nas ruas, se pedissem alguma informação em francês eram prontamente atendidas. Antuérpia, naquela época, tinha um metrô de miniatura. Pequenos vagões no subsolo faziam apenas uma viagem circular, mas cumpriam a função de deixar o viajante bem no centro da cidade. Enormes e bem cuidados calçadões de pedestres, com mesinhas e cadeiras, onde as pessoas ficavam curtindo as manhãs e tardes ensolaradas, comendo ou bebendo alguma coisa. Um correr de lojas só de rendas recordou-lhes o nordeste brasileiro com suas rendas Renascensa, levadas para o Brasil pelos holandeses. Pensaram em ir a Bruxelas distante apenas 2 horas de trem, mas a cunhada não apoiou, pois temia que algum contratempo as fizesse perder o navio. Sempre é bom alguém ter mais juízo.
O próximo destino seria Hamburgo, Alemanha, por onde chegaram subindo o rio Elba e que lhes reservava enorme surpresa. Ao navegar por certo trecho, ouviram, num som muito alto, o Hino Nacional Brasileiro. O primeiro choque foi estarrecedor, dada a surpresa e o inusitado do fato. Ao verem, acompanhando o som da música, o hasteamento da Bandeira Brasileira, a comoção tomou-as. Mudas, de mãos dadas, imóveis, as lágrimas escorrendo pelo rosto, pareciam dois soldados de saias em momento solene. Para quem está longe da sua terra natal e isto não é um hábito corriqueiro como para os marujos, foi verdadeiramente emocionante. O Comandante explicou depois que era um departamento do porto que, a cada navio que chegava, automaticamente hasteava a bandeira de seu país, tocando o respectivo hino. A explicação tirou muito da poesia daquele momento único, mas mesmo assim jamais o esqueceriam. A longínqua terra natal presente em seus corações através do som de um auto-falante e um pedaço de pano verde-amarelo
A chegada ao porto de Hamburgo pelo rio Elba foi um belo espetáculo. A margem direita do rio, recoberta por altas e frondosas árvores, atrás das quais se entreviam, aqui e ali um lindo castelo ou belos e enormes palacetes. Não chegaram a saber se eram habitados, ou museus; pareceu-lhes, com certeza, uma área nobre da cidade e que não tiveram tempo de visitar. Ficaram apenas dois dias, muito pouco para os seus projetos turísticos. Na realidade, a estadia só rendeu frutos negativos para uma delas. A cunhada preferiu ficar à bordo para ver os fornecedores que levavam seus mostruários á tripulação: do creme Nívea, ao Whisky, ao perfume francês e aos catálogos onde se pode encomendar tudo. Dessa forma sua companheira desembarcou sozinha e ficou perambulando pelo centro, apreciando os artistas que pintavam as calçadas de forma original, como se o evento estivesse ocorrendo naquele espaço; músicos sozinhos ou em grupos bem distribuídos para que os sons pudessem ser bem captados sem interferências; boa música e muito bem tocada. Este aspecto da cidade é muito simpático e atraente e ela ficaria por ali talvez o dia todo se não precisasse comprar um talco. Entrou numa enorme loja de departamentos e, com calma, ficou olhando as diferentes coisas que ali se vendiam. Fascinou-a o setor de relógios. De mimosas e delicadas jóias para os pulsos femininos, à relógios masculinos de classe, para mergulho até velhos carrilhões e cucos. Não conseguia desgrudar seus olhos, tal seu encantamento, quando percebeu que estava sendo observada com cuidado. Todo aquele encanto se quebrou na suposição de que fosse uma ladra. Afastou-se imediatamente procurando o setor de perfumarias. Queria sair daquela loja o mais rápido possível. Nas prateleiras procurou exaustivamente um talco perfumado, mas, inexplicavelmente, todas as marcas eram sem nenhum odor. Rodou, rodou, sem querer procurar uma vendedora, já que não falava alemão. Vencida pelo cansaço daquela inútil busca, dirigiu-se a uma jovem senhora no balcão e lhe perguntou em inglês se tinham talco perfumado. – No speak english respondeu-lhe duramente; fez-lhe a mesma pergunta em francês. – No speak, somente. Já com muita raiva ante tanta grosseria - pois a vendedora fora incapaz de fazer um gesto para ajudar - falou-lhe, então, em voz bem alta, em inglês, em tom autoritário. – Pois então vá chamar algum superior que me entenda. Ela compreendeu muito bem, pois deu meia volta e sumiu, aparecendo logo a seguir outra senhora que lhe perguntou em correto inglês o que desejava: - apenas um talco perfumado. Sem uma palavra a mulher dirigiu-se a uma das prateleiras e voltou com três volumes nas mãos que lhe entregou dizendo: - Aqui está seu talco - e acrescentando os outros dois pacotes: - e aqui estão dois refis para a senhora na precisar voltar aqui tão cedo. Ela pensou e contou até dez se deveria jogar-lhe tudo na cara e sair, mas desistiu, pagou e se foi. Poderia causar problemas ao comandante do navio e isso não queria. Mas até hoje se pergunta o que teria acontecido. Sua aparência era normal, estava bem vestida e, com sua pele muito clara, seus cabelos louros e seus olhos verdes, não parecia sequer uma estrangeira naquele país. Inexplicável. Talvez a tivessem tomado por americana e sabe-se que os alemães não morrem de amores por eles. Talvez. Mas ficou para sempre uma interrogação.

Realmente, Hamburgo estava fadado a deixar tristes e más recordações. À noite, um grupo de oficiais havia combinado sair para mostrar às duas passageiras a vida noturna da cidade. Como o comandante não quis ir, a cunhada achou que não ficava bem sair com os jovens oficiais, alegou cansaço e resolveu não sair.
A outra, cheia de curiosidade, ouvira falar muito daquela cidade, de sua vida noturna, das casas de Chopp onde as pessoas bebiam e cantavam alegremente sobre as mesas. Sua própria mãe lhe relatara, encantada, tal experiência de alegria num ambiente familiar e saudável. Ela sabia também do espetáculo de Saint Pauli, das mulheres nas vitrines na zona do meretrício, mas não imaginou que fosse passar por ali. Saíram de bordo às dez horas da noite, pegaram um táxi até certo ponto, de onde os oficiais resolveram ir caminhando, para lhe mostrar os arredores. Gentis e educados, conversavam alegremente, cuidando da passageira como de uma jóia rara que lhes fora entregue em confiança. O Comandante fizera-lhes um sermão sobre sua segurança antes de saírem. Ao chegarem ao lugar que ela desejava conhecer, estava vazio, com apenas duas ou três mesas ocupadas, pois o grande movimento era bem mais tarde. Resolveram fazer hora num night-club chamado Brazil Tropical, onde um conjunto de negros americanos e brasileiros tocava uma boa música, tanto brasileira como americana. Sentaram-se num canto e começaram a beber cerveja em canecos gigantescos, apreciando o ambiente. Lindas mulheres negras brasileiras, vestidas com casacos de peles, circulavam pelo local. Percebia-se que era um lugar de paquera, mas não havia nada a reclamar, estavam bem instalados, apreciando a música, conversando, fazendo hora, apenas. Ela estava muito bem protegida, sentada entre dois oficiais. Um terceiro desgarrou-se do grupo, em busca de companhia.
Lá pela 1h da madrugada resolveram sair para a choperia. Um deles sugeriu um atalho por dentro de uma galeria, só para que ela não tivesse que caminhar muito. Assim que entrou, intuitivamente, sentiu algo estranho no local mas nem teve tempo de comentar. Sentiu um forte impacto na fronte esquerda e um líquido se derramou pelos seus cabelos. Completamente tonta, os dois jovens tiveram que sustentá-la, senão teria caído ao chão. No momento em que entraram na galeria ela pensara ter percebido duas jovens de bikini ou quem sabe, calça e soutien. Imóveis, poderiam ser cartazes ou qualquer coisa assim, mas do lado de fora das lojas. Os rapazes quando viram, puxaram-na para dar meia volta, sabiam do que se tratava, mas não deu tempo! Imaginem uma mulher, ladeada por dois homens, adentrar-se no local onde as profissionais aguardavam seus clientes. No mínimo devem ter considerado uma afronta essa invasão desastrada. Os dois rapazes não sabiam o que fazer. Tiraram-na dali, amparada. Na maior angústia queriam saber como ela se sentia, como ela estava. Na realidade, só pensavam no Comandante e na responsabilidade que assumiram de cuidar bem da passageira. Quando se viram à salvo e ela pode falar, lhes disse: - Não aconteceu nada, ninguém viu nada e eu não sei de nada. É só vocês ficarem de bico calado que o comandante não vai saber. Enquanto isso, o galo que lhe crescia na fronte já era visto sob o cabelo. Tinham lhe jogado uma lata de cerveja, aberta, mas cheia, daí seu peso, seu impacto. Felizmente ela tinha a cabeça dura e não lhe fez sequer um corte no couro cabeludo, só aquele enorme galo. A noite havia acabado ali. Adeus choperia! Proibiu-lhes terminantemente de tocar no assunto com qualquer pessoa a bordo. Levou mais de uma semana só podendo se deitar de um lado, tão grande o galo e dolorida sua cabeça.

Os rapazes, talvez por medo, comentaram com o Imediato, pois poderia defendê-los caso o Comandante viesse a saber de algo. Não poderiam ter feito pior. Em menos de 24h todo o navio já sabia do acontecido, pois o Segundo era uma língua de trapo. Adorava uma fofoca, um mexerico ! No dia seguinte o Comandante bateu na porta do camarote e pediu para falar com a passageira. Já sabia de tudo, nos menores detalhes. Ela defendeu os rapazes, disse-lhe que fora sua a idéia de cortar caminho e fez com que ele prometesse que os dois não seriam sequer repreendidos. A culpa fora toda dela, eles tinham sido dois gentlemem em todos os sentidos. No fim o comandante arrematou: - A senhora é mesmo uma mulher de sorte. Poderia ter morrido. Naquele lugar se esfaqueia, se estupra e a polícia não toma conhecimento. Quem ali se aventura está sujeito à lei da selva. Ela tinha sorte mesmo. Mal as manchas roxas do tombo no convés começavam a desaparecer lhe acontece essa. De positivo ficou uma emocionante aventura para ser relatada quando voltasse ao Brasil. De gratificante, apenas aquele momento ímpar na entrada do porto, quando puderam perceber o sentido forte da palavra Pátria, vocábulo hoje em dia tão vilipendiado e desmerecido.

A tripulação do Loyde Carajá, além do Comandante e seu Imediato - ou “ Segundo”, como dizem em jargão de Marinha -se compunha do Primeiro Piloto Ricardo, do Segundo Piloto Zé Maria, do Chefe de Máquinas e sua equipe de oficiais e marinheiros, além do pessoal dos inúmeros setores necessários ao bom funcionamento do navio: cozinheiros, copeiros, taifeiros, limpeza de convés, etc...
O primeiro Piloto Marcos era um jovem muito alto, de pele clara, cabelos negros e mãos delicadas; era um belo rapaz. Por ter em seu camarote o meio de comunicação com o Brasil, onde o Comandante deixara aquela filha agonizante, acabou surgindo uma forte ligação de amizade entre ambos. Ricardo conhecia muito de perto seu velho chefe e os detalhes de seu sofrimento e de todo o drama que a família vivia, inclusive as brigas e desaforos do filho, que não se conformava com a ausência do pai numa terrível hora como aquela. Era um jovem tímido e doce. Certa noite, quando se dirigia para a ponte de comando onde deveria ficar por algumas horas, convidou a passageira viúva do oficial de marinha para subir com ele, pois desejava lhe mostrar alguns instrumentos de navegação sobre os quais ela lhe perguntara. Levaram para cima algumas cervejas e lá ficaram por várias horas. Mostrou-lhe e explicou-lhe em detalhes as funções dos diferentes aparelhos no painel de controle e como isso governava o navio. Tudo era muito interessante e ela de fato ficou fascinada. Esse contato estabeleceu entre ambos um laço de amizade, sem nenhuma nuance de paquera dele ou de sedução da parte dela; essas visitas viraram quase uma rotina. Era a hora do aquietamento dos corações e almas, que, desarmados, se abriam uns para os outros. Ela lembrava sempre o companheiro, suas viagens, suas aventuras na Marinha, seus filhos que ficaram no Brasil e um que já alçara seu primeiro vôo, indo conhecer a vida no Canadá, onde pretendia se estabelecer e continuar seus estudos de Engenharia Florestal. Isso a fizera sofrer muito e quase perdeu esta viagem apenas para ficar três dias com este filho. Mas ele lhe impediu de desistir do passeio. Voltaria em breve. Ainda não era desta vez que se iria definitivamente – como realmente foi, para junto da irmã que morava nos EUA há vários anos - e lá ficaram os dois até hoje. Ricardo era um rapaz calado, mas nesses momentos, falava muito de si, em confiança, para aquela mulher que poderia ser sua mãe mas com quem se sentia à vontade como uma irmã ou grande amiga. Vinha de uma família de classe média baixa e tinha alguns conceitos que às vezes chocavam sua nova amiga, socióloga, antropóloga, acostumada a um pensar sem preconceitos de classe, raça ou religião. Ele era muito branquinho, como se nunca tivesse pego sol na vida, apesar de ser filho de um negro. Certo dia, ao falar sobre casamento, entre outras coisas lhe disse que gostaria muito de se casar com uma mulher branquíssima, para “ melhorar a raça “, o que a deixou boquiaberta. Se, por um lado, ela era quase uma libertária em sua ideologia, também tinha um coração generoso, vivera e sofrera muito, o suficiente para entender que ele não tinha culpa pela sua formação e os conceitos daí advindos. Suas origens e formação não lhe proporcionaram as mesmas oportunidades que as dela, seja na área intelectual, seja no convívio familiar. Talvez, se tivesse sido uma criança pobre, carente de tudo o que é básico na vida, não fosse assim tão alienado, tão reacionário em seu modo de pensar.Mas era um bom rapaz, correto, decente, trabalhador, delicado e sempre prestativo com todos. Ela tentou lhe explicar a desimportância de tal “ branqueamento”, a grandeza da mestiçagem de nosso povo,falou-lhe em Gilberto Freire, em Darcy Ribeiro, seu muito amado mestre, mas de nada adiantou. Ele não conseguia compreender. Era como tentar enfiar o significado de uma tabela periódica numa criança de dois anos. Havia um bloqueio intenso do preconceito que lhe dizia que branco é bom e preto ou mistura com preto é ruim.

Sempre desejara ter um filho e nesse dia lhe abriu completamente o coração e lhe contou de sua grande emoção, quando uma mulher com quem estava lhe disse que desejava um filho seu. Ela era muito loura, tinha pele alva e os olhos azuis. Mas era uma prostituta. Seu coração sentiu uma tal felicidade que chegou a doer. Ela imaginou que lhe doeu mais a impossibilidade daquele filho branquíssimo, pois também, por seu código ético, jamais se casaria com uma prostituta. Nunca amara ninguém que pudesse deixar aflorar seu desejo de um filho, pois sempre tinha um pé atrás, observando as origens de sua parceira, para que não lhe saísse um filho mestiço. Pobre menino. Gostaria de poder encontra-lo novamente, com uma penca de lindos filhos de uma mulher negra ou mestiça e ver o amor em seu olhar a despeito da cor da pele de sua amada.
Eram assim suas noites, na cabine de comando, até bem tarde, embalados pelo barulho do mar, boa música e algumas cervejinhas. Certo dia o Comandante apareceu, a cara amarrada, falou algumas palavras duras e proibiu à passageira de subir novamente. As regras do navio não permitiam que o Primeiro Piloto se distraísse na hora de sua tarefa mais importante. Não acreditou no argumento, pois Ricardo, tão ciente e zeloso de seu trabalho, jamais infringiria o regulamento dessa forma, ostensivamente. Mais parecia ciúmes do Comandante, seja de seu Primeiro Piloto – companheiro inseparável - seja de sua passageira preferida: sua interlocutora, seu saco de pancada, onde descarregava a angústia de seu coração, para depois ficar tentando adivinhar seus mínimos desejos. Ela não discutiu com ele. Desceu imediatamente e sem qualquer vestígio de irritação propôs-lhe uma partida de biriba naquele horário, além da sessão que já faziam à tarde com a cunhada. Ele ficou feliz. Na verdade ela só gostava de estudar pela manhã. À noite sempre se deitava cedo e ficava lendo até adormecer. Uma sessão de biriba àquela hora acalmaria os ânimos do Comandante e preencheria o horário após o jantar. Iria sentir saudades daqueles momentos íntimos, raros, quando duas pessoas falam sem reservas de seus sentimentos. Uma tremenda catarsis para ambos. Nessa noite sonhou com Rubens Carlos, diluído no éter do infinito mas inteiro gravado em seu coração de menina. Menino dos olhos verdes, amor grande e sincero de seus nove anos. Ao acordar, pela manhã, contou o sonho para a cunhada e, lembrando-se dele e de seu outro menino que também se fora tão cedo, chorou. Brotou-lhe no peito uma emoção, carregada de tristeza e lágrimas; lembranças de coisas enterradas mas tão vivas que, ao reaparecerem em um sonho, trouxeram em si uma pesada carga de sentimentos outrora reprimidos pela covardia e pelo medo de tudo o que é forte, bonito e perigoso. Ela não conseguiu estudar aquela manhã. Havia feito vários anos de análise e sentia que aquele sonho tinha a ver com a noite passada, com Ricardo e com a proibição do Comandante. Rubens Carlos era exatamente o oposto de Ricardo: moreno, dourado de sol em seus doze anos, atrevido, exuberante, com seu narizinho perfeito e ligeiramente arrebitado e aquele lindo par de olhos verdes. Ela era uma menina desenxabida, com duas longas tranças louras e, naquela época, a timidez em pessoa. Impossível imaginar a mulher desinibida, falante e exuberante em que se transformaria. Quando via Rubens Carlos na rua, mudava de calçada e com isso talvez tenha atiçado sua curiosidade ou seu faro de conquistador. Tinha fama de ser um menino terrível, que gostava de carregar as garotas para lugares desertos e fazer“ coisas” – ela não sabia bem o quê, mas sabia que eram coisas proibidas. Diziam que ele havia construído uma cabana no pé do umbu que havia na pracinha, no centro da Vila Militar onde moravam. Seus pais eram militares e muito amigos. Quanto mais ela lhe fugia, mais ele a perseguia, mas não ousava abordá-la. Aos domingos, na matiné, sentava-se sempre uma fileira atrás dela e de seus dois irmãos e ficava sussurrando coisas ao ouvido. Certa vez ela entendeu que ele queria lhe falar. Ora, mas por que não falava? O que estava esperando, pensava? Então já sabia como ele lhe era importante, como gostaria de lhe falar, de estar junto dele, mas jamais tomaria essa iniciativa. O que poderia querer com ela um menino lindo como aquele, cheio das garotas lhe correndo atrás? Ela, tão apagadinha, tão desimportante!
Mas certo dia no colégio jesuíta em que ele e os irmãos dela estudavam, passou pelo menorzinho e lhe disse qualquer coisa. O pequenino tinha apenas seis anos, mas virou-se rapidamente e mandou-lhe a mãozinha espalmada no meio da cara. Na confusão que se formou veio o padre que pôs o pequeno de castigo e mandou chamar-lhe o pai. - Seu menino, tão comportado, o que fizera? O padre também não sabia e então lhe perguntaram: - Me xingou, respondeu muito sério! - Mas como? O que disse? - Me chamou de cunhado! Ele não sabia o significado da palavra, mas vinda daquele menino só poderia ser xingamento. O fato, contado em casa com humor, fez seu coração bater mais forte. Então era isso. Ele realmente queria namorá-la. Casualmente, poucos dias depois chegou uma ordem de transferência para seu pai e quando já iam saindo da cidade de carro para pegar um trem noutro município ela ainda chorava copiosamente, como se alguém tivesse morrido. Os pais a consolavam, sem desconfiarem de nada : - Minha querida, não chore assim, para onde vamos também vais ter um bom colégio e novas e boas amiguinhas. Na última curva da estrada, antes de sair da cidade, ela espichou o pescoço na janela do carro para ver se conseguiria pelo menos se lembrar do lugar onde moraram por dois anos. Nunca mais! Nunca mais Rubens Carlos do outro lado da calçada! Nunca mais! Foi a primeira forte sensação de perda em sua vida. E viriam tantas, depois disso! Mais tarde, recém-casada, amando intensamente seu marido, pode avaliar como Rubens Carlos ficara gravado em seu coração. Certo dia, seu pai, tristonho, lhe disse: - Sabe aquele menino que chamou seu irmão de cunhado no colégio, criando a maior confusão? Acabo de saber que morreu assassinado com várias facadas. Foi tocaiado pelo administrador da fazenda do tio, pois andava se engraçando com a mulher dele. Ela sequer fez um comentário. Fingiu que não havia ouvido e subiu correndo as escadas e trancou-se no quarto para chorar. Seu primeiro amor. Até hoje, já bastante idosa, não pode se lembrar sem chorar. Mas o que Ricardo tinha a ver com aquilo? Talvez o carinho que os unia e o fim daqueles momentos tão prazerosos fosse a causa. Mas aquilo não era amor, era uma simples e boa amizade, que se aprofundava a cada dia e que foi cortada abruptamente.
Nunca mais Rubem Carlos. Nunca mais seu jovem marido; Nunca mais seu amado pai; nunca mais seu primeiro filho e, agora, nunca mais Ricardo e ela, na Ponte de Comando, abrindo seus corações um para o outro. Morte. Morte. Morte. Tudo, sempre, se resume e acaba em morte.Quando menina sempre gostara de escrever e lia tudo o que lhe caía nas mãos. Aprendera a fazer redação no Curso de Admissão por um método hoje considerado ultrapassado, mas que ensinava o aluno a ver uma cena qualquer, determinando, em primeiro lugar, seu significado, e o que aquela cena representava. Logo após descreviam-se os personagens que a compunham
( homem, mulher, adulto , criança, gordo, magro, alto, baixo, louro, moreno, animais...) um a um e em seus menores detalhes, as roupas que usavam, suas cores e todas as particularidades do vestuário. Dizia-se o que estavam fazendo naquele lugar, pois a gravura era sempre muito clara a esse respeito. Acrescentava-se a descrição do “ fundo “, da paisagem onde tudo acontecia. Logo após, criava-se, livremente pela primeira vez, um possível desfecho para aquela ação, parada num tempo indefinido. Aí funcionava a imaginação de cada um. Quanta loucura se escrevia. Havia sobre o quadro-negro - como folhinha daquelas que marcam os dias, meses e as fases da lua – um enorme bloco com diferentes gravuras que cresciam em dificuldades de observação dia após dia. Essa metodologia que à primeira vista parecia uma armadura de ferro bloqueando a criatividade e a fantasia das crianças, servia, entretanto, para ensinar-lhes a observar com atenção as coisas, hierarquizar e destacar o principal do secundário, montando, assim, dentro das cabecinhas infantis, uma boa estrutura de narração. Somente depois de craques na “ Descrição de Estampa” passava-se ao desenvolvimento de temas, onde cada um escreveria o que pensava sobre o assunto dado. A correção era rigorosíssima. Verificava-se até se o “til” ficava rigorosamente sobre o “a” ou o “o” e se a cedilha estava certinha sob o “c”, agarradinha nele, e não pendurada, solta da sua letra. O cúmulo da exigência era entre as letras “q” e “g”: uma tinha perninha e a outra, barriguinha. A correção descontava pontos até nisso! Pontuação e acentuação, nem se fala! Apesar da tarefa parecer árida e destituída de interesse, ela adorava aquela parte da aula e esmerava-se em encontrar detalhes mínimos que poderiam passar desapercebidos a um olhar menos atento. Sempre tirava nota dez. Como tinha muito gosto pela leitura estava sempre agarrada a um livro de Monteiro Lobato, e vivia as Aventuras da Emília com grande emoção. O máximo foi quando começou a ler Os Doze Trabalhos de Hércules e ficou empolgada pela Mitologia Grega. Então, já aluna do seleto Instituto de Educação, onde ingressara após disputar verdadeira maratona ( trezentas vagas para cinco mil candidatas) matava algumas aulas menos interessantes para ficar na Biblioteca – excelente, por sinal – lendo a Enciclopédia Internacional das Obras Célebres, onde todo o esplendor da Grécia Antiga se lhe apresentava em textos ricos de detalhes interessantes e belíssimas gravuras. Era um encantamento total! Sempre desejara possuir aquela coleção entre seus livros mas nunca a encontrara à venda, pois todas as edições se haviam esgotado. Já idosa, viu um anúncio num jornal, oferecendo tal obra num sebo de luxo, entre outros livros raros.
Correu até lá, mas chegou tarde. O dono da livraria ficou com seu telefone caso surgisse outra. Muito difícil, mas quem sabe?Ficou-lhe uma esperança.
Seu pai era um homem extremamente liberal para muitas coisas que eram tabu na época, mas, ao mesmo tempo, medievalmente intransigente no que dizia respeito à leituras e amizades. Aos catorze anos foi flagrada lendo a Sonata de Kreutzer, ( ?) de Tolstoi, o que provocou verdadeiro terremoto na família. De onde saíra aquele livro? Quem o emprestara? Era como se alguém houvesse oferecido uma droga perigosa àquela filha tão amada, cuidada e protegida de contaminações espúrias. Foi preciso muito empenho e promessas para impedir que o pai fosse tomar satisfações da família da outra jovem. O primeiro livro adulto que ganhou dele foi “ As Minas do Rei Salomão” que não achou lá grande coisa. Sempre havia, entretanto, a biblioteca do colégio e assim começou suas leituras, aleatoriamente, pegando aqui e acolá, obras boas e más. Escrevia muito, mas nunca teve um diário como quase toda mocinha daquela época. Apenas anotava em folhas esparsas, seus pensamentos, sentimentos e observações sobre alguns fatos. Fazia também alguns versinhos de pé quebrado, mas não era muito dada à leitura de poesia. Algumas vezes, num acesso de arrumação comprava um grosso caderno e passava tudo à limpo. Aos dezoito anos já dirigia o belo Oldsmobile de seu pai, com carteira de habilitação tudo. Para escândalo da vizinhança tijucana, inconscientemente afrontava as pessoas daquele bairro conservador e os amigos da família, fumando livremente e, o pior, com autorização daquele pai tão severo com livros e amigos. Ele tentara, em longas conversas, convencê-la a não fumar, mostrando-lhe os males do cigarro, mas ela foi irredutível: quero porque quero. Os irmãos, mais novos, fumavam, por que não ela? Ah, se soubesse de todas as coisas naquela época não teria sido tão teimosa...e burra. Coerente com seu desejo de torná-la responsável por seus atos ele concordou e passou a comprar-lhe os cigarros, para que não fumasse mata-ratos, controlando assim também a quantidade consumida. Treinou-a como se faz com um querido cão Pastor Alemão, para ser corajosa, honesta, não mentir, ser livre, independente e resolver sozinha seus problemas, mas às vezes batiam de frente, quando ela agia assim como lhe fora ensinado. Ele se assustava e lhe cobrava: - Por que não perguntou ao pai antes? Ora, e era necessário? Ele queria prepará-la para enfrentar a vida, não a queria dependente de um marido. Casamento era loteria e não se devia aturar um homem com quem não se está feliz. Talvez seu amor pressentisse o desamparo dela, num futuro não muito distante. Queria vê-la falando vários idiomas, datilógrafa, taquigrafa, uma secretária bilíngüe. Para seu desgosto, ela quis ser professora e não a contrariou, mas não moveu uma palha para ajudá-la, nem nas inscrições. Ficou contente com a vitória de sua menina, apesar dela ter ido contra seus desejos. Mostrara que tinha garra, lutava pelo que queria, bem do jeito que queria que ela fosse – e ainda não havia completado doze anos. Casou-se aos vinte e um anos e viu esse amado amigo pai - tão paradoxal em seus atos como extremado em seu amor – morrer três meses depois de uma insuficiência cardíaca aos cinqüenta anos de idade. Apesar dessa enorme perda, foi muito feliz com seu jovem esposo, que a amava com paixão. Viveram juntos apenas oito anos, quando ele morreu bem do jeito que sonhava. Costumava dizer que se tivesse algum mérito aos olhos de Deus, não ficaria sob sete palmos de terra. Queria morrer no mar. Ambos tinham acabado de completar trinta anos. Ao despedir-se dela para mais um vôo de treinamento, não permitiu que se levantasse da cama às cinco horas da manhã para lhe dar café. – Dorme mais um pouco. Tomo café na rua. Abaixou-se sobre a cama, beijou-a no rosto, afagou-lhe os cabelos e lhe disse: - Não sei o que você fez comigo , sua danada, que ainda gosto tanto de você! E foi embora para sempre, deixando-lhe na lembrança e no coração essas últimas lindas palavras, sua esbelta figura de toureiro, vestida com uma calça americana de brim bege, camisa de cambraia de linho verde clara e o aceno de sua mão ao sair do quarto.
- Amanhã, lá pelas cinco horas estou de volta. De concreto e palpável deixou-lhe cinco lindas crianças – pois uma já morava com os anjos – O mais velho tinha apenas seis anos. Dois dias depois ela conseguiu chorar, mas foi pouco choro. Ele lhe deixara de presente um jardim cheio de flores, que ela jurou cuidar com todo seu amor e carinho. E o fez com muita alegria. Apesar das perdas, apesar das mortes, hoje é uma senhora idosa e jovial e julga ter tido uma vida feliz, na criação de todos os filhos do amor que teve na vida.

O final de sua intimidade carinhosa com Ricardo soou-lhe como mais uma perda, fazendo-a lembrar-se de Rubens Carlos, de seu filhinho, de seu pai e de seu jovem companheiro. Entretanto, para ser verdadeira, encheria páginas e páginas com a felicidade que teve ao ver crescerem seus filhos e nascerem seus netos, todos honestos, corajosos, generosos e corretos Só agora se dava conta que toda moeda tem duas faces.

O Segundo Piloto Zé Maria era quase um menino. Alegre, sorridente, educado e prestativo, encantou de imediato as duas passageiras. Nascera no Sul do país e segundo ele mesmo, não sabia bem como fora parar na Marinha Mercante. Não queria cursar uma Universidade, adorava iatismo, já fora campeão duas vezes em sua categoria, mas o pai queria vê-lo encaminhado na vida. Ao invés de singrar as águas da baía de sua cidade, resolveu cruzar os mares num navio grande. Acho que foi isso, assim, bem simples. Resolvia as inquietações do pai mas ainda não tinha certeza se era realmente o que queria para si. Enquanto isso ia conhecendo o mundo e aprendendo tudo o que podia sobre navegação.
A bordo do Loyde Carajá, era companheiro certo nos passeios das passageiras nos portos. Conhecia todos os lugares, pois já fizera aquela rota umas três vezes. Em Leningrado, numa visita ao museu Hermitage, ele conheceu uma menina russa, linda, quase adolescente e que ainda não fizera dezoito anos. Excepcionalmente, ela falava inglês e os dois ficaram conversando durante toda a visita. Foi o tempo suficiente para se apaixonarem e trocarem endereços e combinarem um novo encontro. As duas passageiras ficaram encantadas com o fato. Amor à bordo. Ele, cheio de esperanças e planos, levou um banho de água fria quando soube pelo agente do Loyde na cidade que aquilo era um amor impossível. Ela só poderia sair do país, mesmo depois da maioridade, com autorização dos pais e do Partido. Mas isso era mais um motivo para acirrar-lhe a vontade de tê-la e trazê-la para o Brasil. Não dessa vez, mas, mais tarde, com tudo já acertado. Encontraram-se algumas vezes, à tardinha, num jardim da cidade e soubemos depois que sequer um beijo na boca trocaram. Davam-se as mãos, conversavam e quando se despedia dava-lhe um beijo no rosto. O pudor e o recato daquela moça não condizia com o que ouvíamos sobre as mulheres e o amor na União Soviética. Era inacreditável, mas ela era virgem e Zé Maria, seu primeiro namorado. Quando os pais souberam dos encontros, proibiram-na de ir novamente. Nada com estrangeiros! Eram professores universitários e só tinham aquela filha, para quem sonhavam uma vida perto deles. Combinaram de se escrever até conseguirem alguma saída para a situação. Uma das passageiras prometeu ajudar no que fosse possível e conseguiu mesmo ter contato com duas mulheres russas que haviam se casado com brasileiros. Ela conhecia uma família de imigrantes russos no Rio de Janeiro que lhe deu os contatos. O resultado foi frustrante. Uma coisa é o amor, olhado em si. Outra coisa é a realidade. Muitas vezes um não resiste à outra e foi o que aconteceu com a. A despeito de estarem apaixonadas pelos homens com os quais se casaram, o sonho dos russos em geral era conhecer o ocidente e suas tão misteriosas como cobiçadas maravilhas. Essas moças eslavas, criadas num sistema rígido e sem nenhum luxo, nenhum supérfluo mas culturalmente rico, tinham um nível alto de escolaridade, apesar de pertencerem a famílias proletárias e simples. Haviam estudado balé até certa idade, conheciam a boa música clássica, bem como a alegre e popular música russa. Aqui no Brasil vieram morar no subúrbio do Rio de Janeiro, em meio a uma população de classe média baixa, longe de qualquer ponto turístico ou praias, museus, cinemas e teatros. Não tinham sequer a tão esperada liberdade de ir e vir. As famílias pequeno burguesas dos subúrbios são muitas vezes mais castradoras do que a ditadura do partido. Na realidade, nada era proibido formalmente, mas faziam-nas saber o que era esperado delas, de seu comportamento e de suas atitudes: docilidade e submissão aos maridos e às sogras com quem foram morar; adequação aos padrões de classe e obrigação de religiosidade. Não tinham acesso a nada do que lhes era familiar e seu entorno era de uma pobreza cultural de fazer pena. A pobreza de lá era de consumo, de shoppings, modas, eletrodomésticos sofisticados. Aqui, no subúrbio, elas nem tinham nada disso à mão, bem como estavam privadas da música, do teatro e dos eventos culturais que os pobres de lá gozavam. É claro que não deu certo. Foram felizes por algum tempo mas quando foram contatadas, estavam se separando dos maridos e providenciando a documentação necessária para voltar à terra natal. Ambas eram de Leningrado e haviam se casado com homens da Marinha Mercante. Não seria o caso de Zé Maria, que pertencia a uma família rica e morava à beira-mar. Sem grandes esperanças do lado russo, o rapaz pensou em tudo, até mesmo em arranjar uma maneira de ir morar lá. Mas mesmo isso era complicado. Não era comunista e as autoridades já sabiam de suas intenções. Ao país não interessava aceitar apenas um homem apaixonado, sem qualquer compromisso com “a causa” - muito pelo contrário, com um passado de play boy da alta burguesia sul americana. Muitas lágrimas e cartas rolaram entre os continentes, mas o final foi triste e sem romantismo. Desistiram um do outro por cansaço, exaustão e falta de combustível para alimentar aquele amor juvenil tão forte. As cartas começaram a ser censuradas do lado russo e a jovem, talvez sentindo-se abandonada, desistiu de continuar escrevendo. Uma história triste, mas cheia de romantismo e ternura. Onde andarão eles, o que farão agora, vinte anos depois? Estarão vivos? Terão se casado e tido filhos? Mas, principalmente, ainda se lembrarão um do outro? Isso se pode responder, com certeza. O primeiro amor, assim forte, fica guardado no coração até a morte. A despeito da vida boa ou má que se tenha.

 

 

 

 

 

09.01.2006