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Celia Pedrosa


 

Versos que correm entre a margem
e o fluxo, a linha e o corte



Jornal do Brasil
[30/OUT/2004]
 

Metade da arte
Marcos Siscar
Cosac & Naify
176 páginas
R$ 25


 

Em Metade da arte, Marcos Siscar reúne uma coletânea de novos poemas àquela que compôs para seu livro de estréia, Não se diz (Sette Letras), de 1999. Não é por acaso que em ambas a imagem do rio é uma importante referência: ''O rio devolve seus barcos'' é o título dado ao primeiro conjunto de poemas, ''O rio verdadeiro'' ao último. Mais do que de uma simples repetição em nível morfológico e semântico, essa imagem comum é signo de um movimento que estrutura toda a poesia de Siscar, nela imprimindo uma dupla força - de fluxo e transbordamento e, simultaneamente, refluxo e contenção. Essa duplicidade se manifesta da escolha de temas à organização de versos e à estrofação. A própria seqüência do livro inverte a cronologia das duas publicações, recolocando assim certa reversão entre início e fim, associável à suspensão da linearidade contínua que o motivo central do rio já propõe.
 

Afinal, se ''nenhuma/ margem impede que o rio se revolva sobre si/ como um verso'', é porque o poeta faz sua a tarefa de, tentando compreender a natureza de coisas, afetos e palavras, fazê-lo seguir seu curso e ao mesmo tempo dobrar-se sobre si mesmo, retornando sempre e sempre diferido. Essa forma, que seria aliás o próprio motor da poesia, o poeta a surpreende nas imagens mesmas da procriação, do nascimento e da morte - ''encontro de águas'', segundo ele - que solicitam/abalam a organização cronológica convencional das histórias da vida, como no belo poema-homenagem ''Ao filho'': ''talvez você nasça você vem nascendo/ você é meu pai meu filho não há/ dia em que não se morra ou não se nasça''. Continuado mas também revolvido, o movimento discursivo, como o do rio, como o do tempo, se é corrente, curso, travessia, é também barragem, poço, açude -- conjugando ao fluxo de imagens convocadas pela memória e pelo desejo a força reflexiva que contém e intensifica, e serve então para ''dar margens e regime ao rio'' e aos versos.
 

Há nos poemas lembranças de um rio de infância imbricadas nas de uma memória ancestral de rio feito caminho de imigrantes - ''Viam o mundo com olhos molhados/alguns atraídos pelo elemento fizeram/ a travessia do mar a travessia pelo rio/ adentro nas terras da planície/ vieram até aqui para enterrar seus olhos molhados/ na cova quente onde jaz o rio''. Nelas ecoam por sua vez imagens de outras águas, épicas e líricas, desde as camonianas, com seus barcos, até as cabralinas, com suas pedras e cães, sem deixar de ser também as mineiras, rosianas, pois o rio ''é o abismo sertão da própria vereda/ refletindo o avesso de campos e matas/ perturba o sossego de toda a natureza''.
 

A corrente desse rio de imagens entretece fios vários de experiência vivida e lida. O rio se revela também enquanto sujeito de uma estranha contemplação, à maneira de outra paisagem já cantada antes por Carlos Drummond de Andrade. ''Contemplar não tem tamanho'', retoma Siscar no poema ''Esfinge sem pergunta'', retornando mais uma vez ao poeta mineiro através da máquina do mundo, tantas vezes reposta em funcionamento, como no poema que a tem como título: ''do rio só se sabe que nos cerca/ nesta terra de pedra e fixa/ arada pela fé dos homens e pelo tempo/... do rio só se sabe do alto que nos fixa/ com olhos que escoam são horas''.
 

A contemplação é motivo de uma alegria difícil (subtítulo de uma das partes do livro), feita de idas e vindas, perguntas sem resposta, em vários poemas na forma de diálogo inconcluso entre o sujeito poético e um você, interlocutor e também possivelmente leitor: ''O que você quer me dizer me diga/ na sua frente sou um puro espelho..''.
 

No poema ''Autobiografia não autorizada'', que já no título coloca em questão a identidade/continuidade de uma instância subjetiva autônoma, o poeta se apresenta em diálogo, em anamorfose - ''não sou você nem eu nem isto/ faço de mim o nosso excesso artifício você/ já me tem mas me quer meu melhor/ retrato distorce o que me visto preciso...'' - como se acolhendo em si mesmo ''a sina oblíqua dos cursos d'água''.
 

O leitor atento há de encontrar em Metade da arte (título que é referência á célebre postulação baudelaireana sobre as relações entre arte, modernidade, transitoriedade) outros fios/rios de leitura. Estes poucos que até agora nos serviram de caminho são no entanto suficientes para fazer compreender como Marcos Siscar escava o leito em busca de um espaço entre a estética da fluidez, do excesso sentimental e grandiloquente e a estética da ascese, do corte. Essa vontade de integração faz com que nele se exercite a lição do rio como discurso, ao mesmo tempo sintaxe e cesura, corrente e margem, seguindo uma tradição moderna de sintaxiers (para retomar aqui a auto-definição de Mallarmé), mestres da linha mas também do corte.

 

Marcos Siscar
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23.11.2004