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Atualizado em: 17.01.2000

 
Carvalho Filho

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Luis Antonio Cajazeira Ramos



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Carvalho Filho

Carvalho Filho
(1908—1994)

— Luís Antonio Cajazeira Ramos —

A poesia de Carvalho Filho inaugurou um outro Modernismo no Brasil, aquele que Carlos Chiacchio chamou de “tradicionismo dinâmico”, expressão que pode ser estendida a toda a poesia baiana, sempre assentada em diálogo com o passado, mas envolvida pelos ventos do novo, sem se deixar arrastar pelas correntes das vanguardas estéreis. Ao romper com o positivismo comtiano, que dominava o pensamento estético das elites literárias brasileiras, sua poética em nada se aproxima daquela que desvairara a paulicéia, meia década antes do lançamento de seu primeiro livro, Rondas, a não ser na liberdade formal, que fora buscar bem mais nos franceses, como Paul Claudel, que no planalto paulistano.

Suas principais influências ele próprio acusa nas epígrafes dos livros e em alguns poemas. Além de Claudel, cita Charles Baudelaire, Paul Valéry e o alemão Rainer Maria Rilke. Identificado com as preocupações existenciais que atormentaram o conterrâneo Junqueira Freire e conduziram Antero de Quental ao sublime, Carvalho Filho incorporou, ao seu modo singular, os temas e a inspiração da mais expressiva lírica portuguesa e brasileira, de Luís de Camões a Gregório de Matos, de Castro Alves a Fernando Pessoa.

O subjetivismo metafísico que lhe marca a linguagem, o “obscuro ângulo” apontado por Eugênio Gomes, tem bases sólidas e muito claras. Filosoficamente, funda-se no existencialismo cristão, que vai de Santo Agostinho a Kierkegaard, como bem observa João Eurico Matta, e no panteísmo que o fantasma imolado de Giordano Bruno apresenta aos românticos de todos os séculos. Essa mistura faz dele um místico, cuja religiosidade fala uma língua particular e universalmente integradora.

Por outro lado, o grande espectro da turbulência estética moderna, nas quatro décadas que envolvem a mudança de século na Europa, está presente na poesia de Carvalho Filho. Não só influências da poesia, desde o simbolismo de Baudelaire e Rimbaud até os surrealistas, mas também da música, com Debussy, e das artes plásticas, do expressionismo de Munch ao surrealismo de Salvador Dali e ao construtivismo de Mondrian, como viu Florisvaldo Mattos, seu sucessor na cadeira de n.º 31 da Academia de Letras da Bahia.
Sem dúvida, o misterioso drama do viver humano — às vezes plácido, mas quase sempre vertiginoso —, que é o foco da temática de Carvalho Filho, pôde ser melhor encenado com as penas e os pincéis oníricos dos surrealistas, sua maior fortuna e legado.

O inconsciente é o ambiente em que vive sua musa, é o terreno que ela, lúcida e louca, pisa e onde baila, sobre musgos, algas, raízes, sementes, óleos, húmus, cinzas, desertos, abismos, praias e fontes cristalinas, entorpecida em perfumes, aragens, sombras, brumas, auras, flamas, anjos, almas, silêncios, sonhos e azuis submersos, que assim dizem do mistério emanado das cinco notas de realidade essencial, que lhe foram destacadas pelo crítico português Vitorino Nemésio: o tempo, a memória, a angústia, a noite e a morte. O simbólico em Carvalho Filho pratica um jogo de imagens e de metáforas com os elementos da natureza, mas dentro de uma realidade puramente mental, nunca no local e no pitoresco.

A territorialidade regional passa longe de sua poesia: a baía em que todos os santos bóiam e mergulham, onde bucolicamente nadam anjos e seres humanos, não se localiza em nenhum ponto deste país ou planeta ou mundo exterior, mas nas distâncias inalcançáveis do mais recôndito mundo interior e exterior, onde o eterno vê seu corpo matizado por sucessivos efêmeros. No dizer do crítico português: “obra cosmogônica e utópica, tão de toda a parte e de nenhures”, com o “poder de mitificar a realidade, de exaltar a ordem das coisas, integrando-a na dos entes”, uma “poesia da existência contra uma filosofia da existência”.

O rompimento de Carvalho Filho com a tradição, que no plano formal se deu pelo abandono da métrica desde o livro inaugural (mantido em toda sua obra), no plano da linguagem vivifica-se com aquela que é, ao lado do abstracionismo, uma das características novas da poesia, germinadas no século XIX e só cultivadas no século XX: o hermetismo. E não poderia ser diferente, pois uma poética que busca traduzir a vida em sua expressão metafísica e cósmica, que se planta no terreno barroco e bíblico da escatologia da morte, do antes da morte, do depois da morte, da morte da morte e do tempo e do fim dos tempos, encontra seu estuário natural no hermético de sua própria ontologia e semântica.

Não é à toa que seus versos vão ficando mais longos e complexos, à medida que a idade cristaliza seu pensamento e cristianiza sua poética, deixando para trás um hermetismo juvenil e penetrando nas cavernas cada vez mais escuras da iluminação da maturidade. A maioria dos poemas mais representativos de seus últimos livros situa-se no dificílimo versejar da prosa poética. Interessante é que o pouco de prosaico que pode ser detectado em sua obra — quando da utilização por vezes dispensável de conjunções e de expressões conectivas, quebrando o padrão rítmico da poesia — é praticamente inexistente nos caudalosos poemas de culminância.

Na vocação de Carvalho Filho, o hermetismo traduz (ou esconde) a unidade e coerência de seu pensamento, do qual se extrai um sentido moral e espiritual para o homem e para a vida. É o que João Carlos Teixeira Gomes chamou de “síntese perfeita entre a idéia e a forma poética”. O preço disso tudo é um estranhamento que sua poesia pode provocar, e ser-lhe cruelmente negada, marcando-o com a pecha de ininteligível e confuso, ou mesmo monótono e cansativo. Poucos se encantariam ao ponto de abarcar todo o conjunto de seus livros num só fôlego, sem se deixar abater pelo torpor ou tédio.

Ao contrário: a poesia pura de seus versos, a melodia lexical e o ritmo de seu 
discurso, sereno e voraz, escondem a emoção sob um manto de reflexão subjetiva e de transcendência inconsútil, diante do qual o leitor comum tende a capitular uma rendição ao abandono e à desistência — a não ser que, humildemente, tente desvestir-se das lentes ansiosas da objetividade e do sentimento corriqueiro e mundano do imediato, do superficial e do convencional.

Para uma contemporaneidade poética que mais produziu catarses confessionais e sensualidade banal do que lirismo, Carvalho Filho indicou uma via de compreensão de seu mundo de fé e de mistério, num verso de Inscrição no Tempo (do livro de mesmo nome), o mais confessional de seus textos: tristeza, luz dos meus poemas.
 
 


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Carvalho Filho

Carvalho Filho — Vida e Obra
Luis Antonio Cajazeira Ramos

José Luiz de Carvalho Filho nasceu na casa dos pais, na Ladeira dos Aflitos, em Salvador, no dia 11 de junho de 1908, terceiro filho de José Luiz de Carvalho, guarda-livros da Companhia de Seguros Aliança da Bahia, e de Julieta Teonila Freire de Carvalho. Residiu na capital baiana a vida inteira, mudando-se para o bairro dos Barris desde os 4 anos. Estudou no Colégio Antonio Vieira, completando o secundário no Colégio da Bahia. Formou-se bacharel pela Faculdade de Direito da Bahia, em 1932. Exerceu, sucessivamente, a partir de 1934, os cargos públicos de Promotor, Procurador da Justiça e Desembargador do Tribunal de Justiça da Bahia., aposentando-se como presidente do Tribunal, em 1978. Casou-se com Olga Vieira de Sá, em 1935, com quem teve 3 filhos. Lecionou na Faculdade de Direito da Universidade Católica do Salvador, que ajudou a fundar em 1956, chegando a ser vice-reitor da UCSAL. Foi eleito para a cadeira n.º 31 da Academia de Letras da Bahia, em 1958, e ocupou a vice-presidência da ALB, de 1970 a 1972. Durante o governo de Luiz Viana Filho, a partir de 1967, foi Procurador Geral da Justiça e Secretário de Justiça. Recebeu a comenda de Grande Oficial da Ordem do Mérito da Bahia, em 1976, e a Ordem do Mérito Judiciário da Bahia, em 1984. Integrou o Conselho Estadual de Cultura, de 1983 a 1987. Morreu em casa, aos 86 anos, em 2 de setembro de 1994, oito meses após o falecimento da esposa.

O poeta Carvalho Filho ingressou no mundo literário na primeira hora do movimento modernista na Bahia, em 1928, como integrante do grupo que se formou em torno da revista Arco & Flexa, ao lado de Eugênio Gomes, Pinto de Aguiar, Eurico Alves, Hélio Simões, Godofredo Filho (seu amigo da vida inteira) e outros, sob a liderança de Carlos Chiacchio. Ainda em 1928, publicou seu primeiro livro, Rondas (Livraria Duas Américas, Salvador), ao qual se seguiram Plenitude (A Nova Gráfica, Salvador, 1930), Integração (Editora e Gráfica da Bahia, Salvador, 1934), Face Oculta (Tipografia Naval, Salvador, 1947), Seleção de Poemas (Livraria Progresso Editora, Salvador, 1955), Face Oculta (com a poesia reunida e o inédito Inscrição no Tempo, Universidade Federal da Bahia e Livraria Progresso Editora, Salvador, 1959), O Deserto e a Loucura (Edições Macunaíma, Salvador, 1976) e Poemas (com a poesia reunida e o inédito Insônia Sonhada, Artes Gráficas, Salvador, 1994). 

Colaborou nas seguintes antologias: Coletânea de Poetas Baianos (organizada por Aloysio de Carvalho Filho, Editora Minerva, Rio de Janeiro, 1951), Cinco Poetas (Edições Macunaíma, Salvador, 1966), 25 Poetas da Bahia, de 1633 a 1968 (Secretaria de Educação e Cultura do Estado da Bahia, Salvador, 1968) e Breve Romanceiro do Natal (Editora Beneditina, Salvador, 1972). Ao morrer deixou organizado o livro Poemas Terminais, publicado postumamente na Coleção Selo Editorial Letras da Bahia, n.º 53, pela Secretaria da Cultura e Turismo do Estado da Bahia e pela Fundação Cultural do Estado da Bahia, Salvador, 1999.

Não há um livro editado cujo objeto de estudo tenha sido a produção poética de Carvalho Filho. Sua fortuna crítica compõe-se principalmente de artigos publicados em jornais e revistas literárias e encontra-se amplamente registrada em sua obra reunida, Poemas, de 1988. 


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Paisagem
(in Rondas, 1928)

Nuvens paradas
nos extremos da tarde clara
amparam o céu.

A luz se eleva dos horizontes de cristal,
além do mar sem destino.
Os morros amadurecem.

Árvores descem das encostas
e meditam nas margens
sobre as águas.

No espaço a alma das coisas
não se revela,
contida pela inércia
dos perfis indefinidos dos rochedos.

O silêncio impregna a realidade
que se retrai em seu segredo
e essência.

A aproximação das sombras, extensas sobre
a quietude do mundo,
é a anunciação da presença humana
na tarde virgem.
 


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Legenda
(in Rondas, 1928)

Creio na luz do mundo
como revelação da verdade.

Creio na unção dos homens
diante da expectativa da morte.

E no canto interior do sangue:

 coro da angústia do espírito
submisso aos crepúsculos.

E creio, em mim, creio
na pureza do silêncio conquistado:

coroa transparente, lunar, atraída
pelas fontes da angústia anunciada.


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Neblina
(in Plenitude, 1930)

No sono branco da neblina, envolta
no hálito do sol amanhecendo,
há mãos humanas acariciando a relva
umedecida pelo sereno.

E na levitação da claridade, sobre
o verde do chão que transpira,
cheiro morno de seiva se irradia
e circula à anunciação da luz.

Quietude azul das distâncias, além
dos longes em cinza e em sombra
que recuam.

Em torno a paisagem perdida
é debrum de pensamento
em bruma viva.

Outras mãos, de sonho, pousam em orvalho
no coração clareando da manhã.

E o aroma que flutua
é o do céu ou o do chão?

A neblina é o último sonho da noite
já refugiada nos seus abismos.



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Oração
(in Plenitude, 1930)

Alegria de pássaro:

 ter vinte anos e viver
 na aura do que fui,
 do que serei.

Que sou, nessa hora de alma eterna
e de luz
e de revelação de mim mesmo?

Penso em tudo o que viveu comigo
quando vivi:

pensamento que se transubstancia
em claridade e sangue comungados.

Serenidade.

Agora, no azul,
o perfil das coisas humanizadas.

Abro os braços na tarde e me julgo:

 cruz e ser humano nessa alegria
 de pássaro,
 de ter vinte anos e viver.


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Rumor de Asas
(in Integração, 1934)

Rumor trêmulo de asas adolescentes
que se aconchegam.

Quando
aragens puras cantam em surdina
feridas pelos espinhos
e as frondes se curvam e beijam
os lábios das sangas repousadas
à sombra das ramadas.

Asas mendigas em rumor
na alma da folhagem contrita,
meditando.

Asas breves, quase sonoras, pousando
entre aromas recolhidos
como outras asas foragidas mal abrigadas.

Tênue rumor humano de asas
fugitivas, temerosas do mundo.


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Elegia da Tarde Parada
(in Integração, 1934)

Quando o céu é espessa fronde azul
arqueada em silêncio sobre o mundo.

Eternidade dessa vida assim,
com o calor da luz e a flama da alegria
contidos nas mãos
e esse tumulto interior que ressoa em nós
vindo dos horizontes.

Ser a sombra que desce das ramadas paradas,
ocultando da morte as sementes já reveladas
à flor do chão.

Ser cor na claridade das tardes primitivas.
Ser luz — pólen do céu.

Viver na terra o mistério das raízes profundas,
das raízes de nervos humanos, nutrindo
o sonho verde das árvores em paz.

Viver cantando na voz das águas ignoradas,
louvando canções de espumas vesperais
para as primeiras estrelas.

Viver em essência na alma unânime das coisas,
com esse amor da minha sombra pelas algas.

Serenidade dessa vida assim,
irmã dos frutos e das almas atentas
e iluminada pelo húmus interior do coração humano
que um dia ainda há de vir a ser.



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Mulher
(in Integração, 1934)

Vejo a tua alma em liberdade na manhã
reconciliadora dos saciados.

Frios,
os corpos são estigma e fonte
da exalação dos córregos.

Gestos ágeis recortam-se na luz
impregnada do cheiro ácido de mulher.

Os sentidos espreitam em torno dos vencidos.

Ao centro dessa auréola que te envolve
ouve:

há sombras pousando ao longo do teu corpo
e os objetos concentrados meditam
sobrevoados por mãos soltas em chamas.

Se se penetrasse a esfinge?
se se revolvesse o mistério?

Das resinas do poço apenas fluiria
a vocação oleosa de ser mulher.



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Final
(in Integração, 1934)

Não morrerás em meus sentidos
como verdade humana ou presença
irrevelada de um corpo ou de uma alma
na origem do mistério.

A essa hora — pressinto:
os meus sentidos sonhando, sonoros e rubros,
florirão.

Como oferenda à estrela perdida

(de piedade e de memória
para a que foste longe da alegria,
de serenidade para a que foste
na tristeza surpreendida)

florirão de joelhos os meus sentidos
em torno da luz concentrada na superfície
da face imóvel.

E a face imóvel se apagará
como as últimas flamas de flores em ruínas
se extinguiriam.



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Poema em Baudelaire
(in Face Oculta, 1947)

Confesso: não sei o que é rir, não sei
o que é chorar em face do mistério.

Mas neste instante de fogos extintos fumegantes
e de brumas marinhas anoitecendo a tarde,

neste instante de asas mortas decepadas
flutuando em águas oleosas
e de cruzes de lenho verde resinando,

neste instante sem sinos, de sinos mudos
com os cálices para o alto onde
apodrecem pétalas em seiva exangue,

neste instante de horizontes incendiados
e da plena expectativa do canto da tempestade
que virá,

neste instante em que os espelhos, frios
de insensibilidade, se recusam aos apelos
das imagens aflitas e repelem
as almas tementes que se procuram,

ah! neste instante
de raízes expostas repelidas pela terra
que nos reste chorar aos pés do azul da tarde.

Chorar antes do desespero,
no silêncio interior dos frutos do deserto.

Chorar na solidão das fronteiras extremas.

Chorar em meditação
pela fugaz eternidade da criatura de Deus.

Assim seja.



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O Instante de Deus
(in Face Oculta, 1947)

Será quando as luzes perdidas da noite
surgirem e se concentrarem ardentes
e próximas sobre nós.

Será quando os anjos voarem lívidos
nos claros do espaço revelado, em fuga,
as asas feridas pelos odores do mundo
que se irradiarem de nós.

Será quando as raízes das montanhas
partirem nos extremos de pedra
e as terras ruírem pelas vertentes
sobre nós em convulsão.

Será como a violência dos mares,
de ondas e de águas multiplicadas
vencendo as praias em nós já destruídas.

Será quando em nós os rios arderem nas origens
e afogarem as margens de surpresa,
precipitados do alto sobre vales
em nós já revolvidos.

Será quando as árvores se contorcerem ao ar
do plenilúnio em nós, que não nos ilumina.

Ouviremos então os ruídos normais das horas
e os rumores da vertigem plena em nós.

Do centro dos nossos corpos sonâmbulos
se erguerão colunas de cristal em luz e sombra
que se aproximarão de Deus.
E a face viva de estranha claridade
nos fixará.

Coroas, impostas por mãos sobre-humanas
um segundo constrangem e asfixiam os nossos seres
prostrados pelo amor consumado.

E sentiremos que o instante agônico
submerge sem remissão na voragem em nós.

Depois
— não foi a anunciação da morte —,
depois virão os cânticos da aurora
envolver e salvar as nossas almas pacificadas.

E os nossos pobres corpos, como flores maravilhosas,
sobreviventes da em nós extinta tempestade,
flutuarão exaustos à superfície do silêncio
fluindo além do amor, do sono comum.



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O Sono da Amada
(in Face Oculta, 1947)

O mel turvo do teu sono está suspenso em coluna,
denso na noite.
Além do teu sono apenas as estrelas tristes.

Os cabelos mortos bóiam nos óleos mornos
do teu sono como resinas na noite.

O sono em coluna é nítido e resiste
aos ventos de pêlos lascivos.
As mãos úmidas do sono esculpem em carne
a maciez do teu corpo adolescente.

A noite é o interior de um útero
onde germina o teu ser latejante.

As raízes do sono brotam múltiplas do teu espírito
e serpeiam viscosas, em amor com os cabelos,
no musgo do espaço.

O núcleo do sono atrai e aspira o sopro
do teu coração submerso.

As espirais da noite se infiltram no óleo
do teu sono, coleantes do ser ao novilúnio.
As plumas negras aguardam o amor, inertes no fundo
do poço de mel morno do teu sono.
Os seios meditando, parado o ventre onde
a vida pulsa e principia.

Súbito, a superfície obscura do sono estremece
à carícia das aragens rasteiras
que se perseguem na noite.

Na origem dos óleos feridos por cristais reluzentes
o frêmito das curvas amplia o perfil irreal
do corpo que ondula em sono.
 

E o teu vulto se desprende do húmus do poço
louvado pelas algas que o retinham e agora
o conduzem e o festejam na sonâmbula ascensão
— imagem horizontal nos óleos mornos
flutuando em coluna espessa na noite.

A flor disforme dos cabelos, essências
expostas do sono dispersas na noite.
As mãos distantes de dedos disformes.
Os lábios animais. Resinoso o sexo,
libertando os aromas das extensões do sono.
E o ventre elaborando a vida.

Onde a luz retida na memória?

O corpo sonha enfim na noite e no morno
do óleo do sono, coroando
o nível das rosas do tempo que cheiram
dos teus ângulos, dos teus vértices
e do teu sangue.

O poço do sono cresce em mistério
do teu corpo à eternidade.

Estás morta à flor do sono.



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Aceitação da Morte
(in Face Oculta, 1947)

Da angústia de viver sem plenitude
mas aspirando na luz das madrugadas
o aroma renovado e o sentido permanente
da partida e da iniciação
— só repousarei na morte.

Do temor de perseguir caminhos
que o espírito revela em claridade e em alegria
nas horas de busca e de inquietação
— só repousarei na morte.

Do cansaço que extingue na origem oculta
o desejo de servir pelo bem ou pelo mal
e pousa estéril em plena meditação
— só repousarei na morte.

Do medo do silêncio do mar e das ilhas
que se destrói e me destrói em mim mesmo
— só repousarei na morte.

Do amor à noite que anula o espaço
onde fantasmas perdidos acendem com estrelas
a perene iluminação
— só repousarei na morte.

Da expectativa da loucura e do deserto
— só repousarei na morte.
A razão dos loucos que mitos habitarão?
e a noite dos cegos que fogos violarão?

Da esperança dos seres e das coisas
em comunhão
— só repousarei na morte.

E do sonho da paz absoluta
na morte sem decifração
— só na própria morte repousarei.



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A Face Eterna
(in Inscrição no Tempo, 1959)

Fechai profundamente os olhos diante do espelho:

e vereis os óleos, as águas
e as noites reais
de que viveis.

E ouvireis o pulsar de ânsias permanentes
eliminando em surdina
as vozes da memória e as do sonho.

Cerrai profundamente os olhos diante do espelho:

e vereis flutuar
à turva superfície da alma
a vossa face oculta,
só revelada em delírio.

Ela emergiu do mistério
e pura essência interior a esculpe
em treva presa dos olhos.

Essa — a face eterna de cada um.

A que, no mais fundo de nós,
imperturbada pelos fogos dos sentidos,
sobrevoa e percorre os desertos do mundo
a cada instante mais possuída de si mesma.

Essa — a vossa luz imemorial que,
experiente das luzes da vida, transpostas,
vos conduzirá ao além de vós.

Essa — a face imanente da meditação,
nutrida pela esperança e pela tristeza irreveladas.
E que se testemunhará à tempestade
e sobreviverá à tempestade.

Essa — a face eterna, a que será julgada
no tempo dos mortos.

Inviolada em seu segredo e em sua verdade,
purificada pelo azul da paz,
com ela, modelada em húmus do vosso abismo

(e não com a face temporal plantada na terra,
a face de olhos fechados diante do espelho),

é que um dia penetrareis e enfrentareis a morte.



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Ser e Morte
(in Inscrição no Tempo, 1959)

Antes do ser, na essência mesma
do sêmen plantado de onde o ser brotaria,
já a morte velava.

E no ser primitivo,
viscoso ainda da hera do mistério,

no ser ainda untado
das resinas retidas nas bordas do mistério,

no ser ainda obscurecido
pelo hálito próximo da origem violada,

no ser nascente,
mesmo o devolvido pelos anjos do limbo,

no ser ainda morno
do sangue da caverna redimida
de onde há pouco brotou,

no ser sombrio em sua primeira madrugada,
a face virgem da revelação do verbo,

no ser presa ainda
do calor do ventre libertado,

no ser silencioso e impenetrável do recém-nascido,
de rasto ainda sensível
no húmus noturno da fronteira

a morte, a morte presente
já se semeou e cresce.



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Carvalho Filho

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Luis Antonio Cajazeira Ramos

Onírico
(in Inscrição no Tempo, 1959)

Senti-me errando sobre as águas
sonhando no ar a noite ardente.
Uma voz de ouro me atraía
da luz da estrela dos abismos.

Na mais amada treva o frio
do sonho humano espreita e fere.
Mais longe a fonte e mais amargo
o ai de quem goza ou desespera.

Essa fronteira em que agonizo
da noite acesa e do delírio
revolve a carne e as feras horas.

Por que desperta o visionário
escarnando o avesso do mistério
do cais nas lajes mal brotadas?

De um lado a noite. Do outro o mar.
E entre a loucura e o alto canto
a estrutura avança, vida e fel,
maior que a dor das vãs criaturas.

Toda tristeza anula o sonho.
Mas ilumina o chão da morte.



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Póstuma
(in Inscrição no Tempo, 1959)

Sob estas lajes jazem vivos,
florindo nus em corpo eleito,
meu coração e meus sentidos,
minha loucura e meu deleito.

Mortos mistérios esquecidos
ardem ainda no meu peito.
São meus remorsos convergidos
sobre o calor do ente desfeito.

Também as dores que plantei
e as alegrias que gerei
fecham no tempo a trajetória.

Face ou angústia, rasto ou mito,
noite parada ou mar aflito,
o ser é vida se é memória.
 


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O Deserto e a Loucura
(in O Deserto e a Loucura, 1976)

Nessa distância finita
dos horizontes aos horizontes em mim mesmo
nunca se encontra a si mesmo
o ser múltiplo infinito.

É o deserto em plenilúnio.
É a loucura em preamar.

Então penetro mais fundo
no mistério e em seu marfim.
E surpreendo a minha loucura e os seus desertos,
o meu deserto e as suas loucuras
se transubstanciando como universos
distintos nas paisagens em mim.

Noite polar: morros em coro
amparam os fogos da hora em sangue,
de extremo a extremo transbordando
dos longes ocultos em mim.

É a minha loucura lavrando o meu deserto.
Em qual dos meus muitos desertos
semearei a minha loucura?

É o meu deserto fecundando a minha loucura.
Em qual das minhas muitas loucuras
plantarei o meu deserto?

É a plenitude do ser liberto,
do ser múltiplo sem termo.

Só o ermo revela o ermo.



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Carvalho Filho

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Solidão
(in O Deserto e a Loucura, 1976)

O amigo para esta hora,
o amigo necessário a esta hora,
os amigos de faces lúcidas
que encarnassem o mistério desta hora,
mesmo os amigos de espíritos impuros
mas que amparassem e conduzissem o meu ser iluminado
a esta hora

— e o amigo em cujo sangue vivo
o meu sangue em degelo repousasse
irmanado afinal a esta hora
e os amigos de aura sensível latejante
na distância, chamados e clamados
a esta hora

  — o amigo, os amigos estão ausentes
no azul e no tempo.

Só os múltiplos de mim mesmo,
estranhos entre si e a mim próprio estranhos,
se debruçam livres sobre o limbo ardente
do poço primitivo desta hora.
A incineração da verdade já se iniciou.

Os amigos para esta hora,
o amigo profético para esta hora,
o amigo e irmão humilde para esta hora
que de una consciência iniciassem comigo,
mar a fundo, a ascensão para a morte

— os amigos
permanecem inconcebidos no azul e no tempo.



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Carvalho Filho

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Luis Antonio Cajazeira Ramos


Virgem
(in O Deserto e a Loucura, 1976)

Quem pelos meus olhos sofrer
essa luz ausente da noite

e nela surpreender o pulsar da em mim
sede imemorial de orvalho,

quem pelas minhas mãos violar
o núcleo preservado do mistério

e pelo meu ânimo de não viver
conquistar dunas noturnas vinculadas
pelo vôo das aves do deserto

— se renderá afinal, transfeito
em busca sempre e em luz futura,
em claro silêncio e em praia resignada
diante do mar,

ao outro ser potencial no limbo,
de sangue raro mas todo em mim.



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Carvalho Filho

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Luis Antonio Cajazeira Ramos

Antípoda
(in O Deserto e a Loucura, 1976)

O que eu amo não me ama:
laje nua e dor antiga.

O que eu sonho não me sonha:
terra e sal, silêncio e cinza.

O que eu vejo não me vê:
hera astral, mansa tristeza.

O que eu medito não me existe:
estrela oculta, meu pastoreio.

O que me nutre flui de mim:
praia primeira, toda distância.

O que eu choro não me perdoa:
o meu festim, ardente espuma.

O que eu oculto não me abriga:
luz do mistério, lento degelo.

O que eu liberto me persegue:
âncora acesa, insônia sonhada.

O que eu contemplo me ignora:
deserto do verbo, loucura do ser.

O que eu ignoro me contempla:
húmus do eterno, aura do abismo.



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Carvalho Filho

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Luis Antonio Cajazeira Ramos

Solitude
(in Insônia Sonhada, 1988)

Aqui, nesta hora vã,
e no centro do tumulto
da multidão,
é que se vive, oculto
em si mesmo, o pleno segredo
da vazante do coração.

Se as muitas faces móveis
de certo vulto,
que surge e se implanta
de súbito no chão,
se enfrentam e enfrentam
a asfixia crescente
das almas em nós submersas
ou em fuga pelo vôo
das nossas mãos

e se dessas faces flutuantes
se projetam luzes fluorescentes
sobre visões de loucos e de profetas
em busca do mito senhor
deste e de cada dia

— tudo é a irradiação
do universo contrito
e da liturgia
dos todos mil olhos vivos
que nos envolvem, da solidão.



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Carvalho Filho

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Luis Antonio Cajazeira Ramos

Nu de Memória
(in Insônia Sonhada, 1988)

Eis o gesto estático no espaço:

e se desfaz múltiplo em cinza
entre os resíduos da própria sombra.

Resta a cicatriz incrustada na memória,
serenada pela solidez da estrela marinha:

relva de coral temendo as águas
— escuro vertical em verde e rubro
— colunas de musgo prenunciando o abismo
— limite da fonte, fonte e voz dos afluentes.

Restam os sedimentos do heroísmo
destinado ao amor, que o tempo maior
mortifica em silêncio:

a plenitude do ventre adormecido
sob a exalação oleosa
do suor e da neve

e a vegetação dos mitos
obscura na hora finita revelada
pelos espelhos que se contemplam
e se repudiam.

No sumidouro da carne fendida
latejam o sim e o não que se resguardam
da luz.

E logo o olhar apascenta as mãos que acariciam
enquanto o aroma do hálito semeado
persegue a aurora.



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Carvalho Filho

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Luis Antonio Cajazeira Ramos


Final
(in Insônia Sonhada, 1988)

Quando cessará a destruição das Cidades
e dos homens?

Preservei-me da dispersão das horas
e sobrevivo no espírito do silêncio.
Não me extingui na luz nem na treva:
réquiens finais em retorno aos sumidouros.
Não anoiteceram em mim a esperança
nem a tristeza:
lucidez atenta à voz dos nascedouros.

Vi o vôo para o nada de pássaros coloridos.
Sou testemunha da resignação dos mortos,
vencidos e salvos.

Fruto abrigado em árvore noturna,
o mistério da floresta me nutriu.

Solitário na ilha e no tempo
me purifiquei da paz do azul,
da paz das águas e das sombras:
fronteiras da loucura.

Como retornar ao convívio das criaturas
não redimidas?



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Carvalho Filho

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Luis Antonio Cajazeira Ramos


Exegese
(in Insônia Sonhada, 1988)

I

Quando se enfrenta o revelado as luzes cedem inodoras, flutuando em recuo oleoso até as matri-zes.

Quando se acaricia o fogo, expelido pelas dunas de esmeraldas em tumulto, as armaduras dos servos eunucos se decompõem das estruturas em pêndulos de equilíbrio.

Não se estimule a covardia, não se importunem os convivas quando os horizontais do arco-íris despertarem e recolherem os resíduos das ruínas com que semearão as sedições.

Ao longo dos arrecifes de proteção espontânea e de repúdio os detritos do reino das anêmonas subjazem.

Ah! missão dos faroleiros oprimindo os espaços inundados do escuro. Onde efígies iníquas margeiam o chão dos túneis. E onde os girassóis de hastes fendidas denunciam discos floridos em fuga dos abrigos inatingidos pelos espectros dos faróis.

Peixes de faro espumante aquecem a saciedade nas águas quase lacustres das angras passivas.

E logo as ogivas e os gessos rústicos dos pavilhões reverenciados acolhem as colmeias em valas entre gradis plásticos, vedados os olhares insensíveis ao real.

As inscrições secretas, os torneios lunares e a canção liberta dos foragidos refugiam-se nos redutos das águas.

Negue-se o delírio, transpostos os portais seguintes de lenho e de azinhavre. Dali nos espreitam os átrios dos já desnudados espinheiros.

E condenados pelos justos o coração e o tempo, de pulsos comuns, sangram em verde e lilás atingidos por dardos lançados de si mesmos.

 II

O dia será o em que na urna oculta, alegoria e imagem, se refaçam os pudores de proteção da essência.

O dia será o da eliminação da inocência como fábula. O da inspiração do belo, obscuro até então, sobre o repúdio. O da beleza em aureola, oscilando de nós até a exaltação da noite recusada mas aderida aos pauis.

Exausta, a insídia em evaporação receberia recomposta a visão diluída, adornando-a com os emblemas finais dos aromas e dos fluidos exalados em espírito das represas.

Que os visionários surjam e se surpreendam, perfis reversos do mistério, e se sucedam itinerantes entre os mesmos sentidos vindos da adolescência impermeável.

Conduzidas pelos sumos clandestinos das raízes as faces do imaginário se contemplariam, reflexos surpresos em ascensão.

Nas mãos traídas dos fantasmas mortos, purpuradas, a incineração do que é eterno nas vigílias se prolongaria. Mas sucumbiria.

Há rotas novas originárias de alamedas flutuantes, passos de penetração recente em criptas e em ogivas brunidas.

Quando as grandes aves baixarem sobre a depressão das ilhas; quando os córregos incendiarem as encostas que os acolhem; quando a náusea coroar a saciedade; quando as exalações dos alicerces comprometidos inundarem os planaltos — então o silêncio e o heroísmo, retornando aos seus reinos, repelirão o agora advento da me-mória reverencial.

 III

Que busca a palavra nas consciências premiadas, que auscultam das atalaias do sul?

A linfa primogênita, em vazante dispersa nos vários paraísos? Mesmo vencido o zênite a criatura não impera sobre os limites do poente. E o êxtase é imutável.

Ou o líquor inicial de cada ser, presa de toda existência, demarcado por núcleos soberanos que não se irmanam nem se repulsam?

O ímpeto da sabedoria impele o homem sombra adentro da decomposição da fatalidade, de bases atingidas já por máculas sacrílegas.

É a partir do confronto, então, que renasce a esfinge reconstruída pelo desfile das insígnias.

A sombra instável além das vindimas seja raiz intercalada entre faces temerosas.

E a inquirição neutra do verbo conduza a que se conceba com os remanescentes da noite uma cidade interior em ruínas sobre o mar.

A graça sobrevoa esses abismos.
E os abismos devolutos em nós.

 IV

Convocação dos pássaros pela hera íntima dos mirantes e pelos vales abertos na paz dos verdes ondulados:

que se contemple a vida
que se decifre a vida
que se julgue a vida.

Serão eles do seu tempo, canto sem fim e vôo sem retorno ao obstáculo das origens.

Centelhas repelidas pelo aço revelam e resguardam sob espumas de coral o instante da exultação dos profetas.

As asas se recusam à exaltação do mistério. As algas do aquário venerado conduzem ressuscitados até a mansão dos insurretos os levitas dos êxodos inaugurais.

Onde se soterraram para renascer os flancos ardentes da insubmissão dos prosélitos?

Sob quantos pórticos sucessivos transitaremos penitentes até a revelação da ara acesa em cele-bração do sacrifício dos injustiçados?

Ah! se a argila nos concedesse as suas nascentes
e se aí nos acolhêssemos e nos plantássemos.

 V

O hálito morno dos oráculos se estende em cinza além da progressão do silêncio.

O curso cristalizado de certa linfa ainda nutre a resistência das anêmonas entre os destroços.

As árvores arremetem contra os morros temendo o inesperado:
a ameaça das margens de acesso ao segredo do poço tutelar.

E aguardam que os signos atingidos cedam à anunciação do alegórico.

Quem desnudará os peraus intervalados de lajes e tramas de relvas noturnas? quem se deterá ao transitar diante das furnas dos santuários soterrados que fumegam ainda temidos?

Vencidas as oscilações do desterro os resgatados reiniciarão a travessia de retorno à claridade traída.

Inexistem rochedos fronteiros a prumo: meridianos indefesos para a contenção do real. Testemunho dos prediletos.

A coroação da paisagem descerá dos vértices lunares, visões em vigília pela salvação das mura-lhas flutuantes.

A inundação pelo pesadelo não se consumirá contida pelos fustes ascendentes floridos.

Afinal a sebe intermitente dos antúrios não vedará às praias a aparição contingente dos atoleiros.

 VI

O horizontal do sono e as espécies do sonho se contemplam. Temem o advento do prometido.

A distância é de bordas contidas pelos vitrais esfumados.
As areias aguardam o coro represado que se anunciará em crescendo.
Em torno o anfiteatro absorto das flautas vazias de ouro.

Quando ressoarem os hinos vozes distintas lapidarão os escudos protetores. 
Sem heroísmo os elmos pernoitarão reluzentes e untados com o sangue azul da ave afogada.

Seguem-se as dunas irregulares:
lavradas na transparência das escamas as ervas aquáticas socorrem a temporalidade dos abrigos desabitados.
O pastoreio dos aromas as conduzirá.

Levitando nos espaços dos festins a origem do silêncio tecida em pérola e mel cede à atração da memória.
O recuo das opalas condena a extinção das fogueiras evisceradas pelo próprio fogo.

Se o mar surgisse aqui e agora, imprevisto e impune sempre, no íntimo da sombra debruçada sobre as pedreiras se asilariam outro pássaro e o seu novo sangue lilás. E a aura das corredeiras preservaria o signo fluente das sete luas.

Entre a profecia das lavouras e o relevo das parreiras se implantaram as várzeas rejeitadas:
aqui jaz em cinza todo o resíduo do milênio que o só coração vigilante de um homem acolherá.


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Luis Antonio Cajazeira Ramos

Fruto e Canto
(in Poemas Terminais, 1999)

É a polpa da claridade
e o sonho oscilante do som
que pousam fundo em nós.

Como visões imaginárias
vindas da inexistência
do longe real.

Violados os obscuros universos

— o fruto e o canto —

só nos restam o frio da luz
e a resignação dos mortos.



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Carvalho Filho

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Rumor e Tédio
(in Poemas Terminais, 1999)

Infinitos os êxtases visionários antes de se esgotarem, expostos às horas corredias.

Quando param se transluzem e se desnudam.

Somos os construtores dessas horas — as que se fertilizam sob as planícies levitando, as que nos contemplam do tumulto distante dos mares despovoados.

Senhoras desses redutos, elas não nos perdoam. Mas não nos sacrificam.

O rumor intermitente prossegue. A claridade enevoada incensando o tédio. E a visão lúcida recua.

As outras, iniciais, permanecem a salvo nos abrigos retidos pelos ventres das auroras. E se resguardam cristalizadas em bastões reluzentes de seivas correntes, em fuga dos álveos heréticos que em verdade nos repudiam.

Se meditarmos à margem dos labirintos marinhos, eles nos contestarão. É que o impossível de nada nos redime. As consciências conquistadas nos definirão como efígies selvagens.

Os reflexos no escuro das nossas presenças hesitantes retornarão às fontes comuns, que se comunicam. E o homem, ainda perecido, não se exaure no espaço consumado.

Será quando o insólito depreciado aderir às origens censuradas. Tempo quando o sêmen, impressentido pelo silêncio anterior, este resistindo aos signos de si mesmo, se reconstruir para sempre, existindo e dourando sobre as mesmas raízes.

E a luz resistirá, persistindo na tentativa injusta de ferir com o seu narcisismo o núcleo preexistente das águas profundas.


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