Luís Vaz de Camões
Os Lusíadas 
Canto Primeiro                                                           Parte  2 
 
 
35 
        Qual Austro fero, ou Bóreas na espessura 
        De silvestre arvoredo abastecida, 
        Rompendo os ramos vão da mata escura, 
        Com ímpeto e braveza desmedida; 
        Brama toda a montanha, o som murmura, 
        Rompem-se as folhas, ferve a serra erguida: 
        Tal andava o tumulto levantado, 
        Entre os Deuses, no Olimpo consagrado. 
 

36 -    ( Marte ) 

        Mas Marte, que da Deusa sustentava 
        Entre todos as partes em porfia, 
        Ou porque o amor antigo o obrigava, 
        Ou porque a gente forte o merecia, 
        De entre os Deuses em pé se levantava: 
        Merencório no gesto parecia; 
        O forte escudo ao colo pendurado 
        Deitando para trás, medonho e irado, 
 

37 
        A viseira do elmo de diamante 
        Alevantando um pouco, mui seguro, 
        Por dar seu parecer, se pôs diante 
        De Júpiter, armado, forte e duro: 
        E dando uma pancada penetrante, 
        Com o conto do bastão no sólio puro, 
        O Céu tremeu, e Apolo, de torvado, 
        Um pouco a luz perdeu, como enfiado. 
 

38 -   ( Fala de Marte ) 

        E disse assim: "Ó Padre, a cujo império 
        Tudo aquilo obedece, que criaste, 
        Se esta gente, que busca outro hemisfério, 
        Cuja valia, e obras tanto amaste, 
        Não queres que padeçam vitupério, 
        Como há já tanto tempo que ordenaste, 
        Não onças mais, pois és juiz direito, 
        Razões de quem parece que é suspeito. 
 

39 -  

        "Que, se aqui a razão se não mostrasse 
        Vencida do temor demasiado, 
        Bem fora que aqui Baco os sustentasse,  
        Pois que de Luso vem, seu tão privado;  
        Mas esta tenção sua agora passe, 
        Porque enfim vem de estâmago danado;  
        Que nunca tirará alheia inveja 
        O bem, que outrem merece, e o Céu deseja. 
 

40 
        "E tu, Padre de grande fortaleza,  
        Da determinação, que tens tomada,  
        Não tornes por detrás, pois é fraqueza 
        Desistir-se da cousa começada. 
        Mercúrio, pois excede em ligeireza 
        Ao vento leve, e à seta bem talhada, 
        Lhe vá mostrar a terra, onde se informe 
        Da índia, e onde a gente se reforme." 
  

41 -   ( Decide Júpiter a favor dos Portugueses ) 

        Como isto disse, o Padre poderoso, 
        A cabeça inclinando, consentiu 
        No que disse Mavorte valeroso, 
        E néctar sobre todos esparziu. 
        Pelo caminho Lácteo glorioso 
        Logo cada um dos Deuses se partiu, 
        Fazendo seus reais acatamentos, 
        Para os determinados aposentos. 
 

42 -   ( Entre Madagascar e Moçambique ) 

        Enquanto isto se passa na formosa 
        Casa etérea do Olimpo onipotente, 
        Cortava o mar a gente belicosa, 
        Já lá da banda do Austro e do Oriente, 
        Entre a costa Etiópica e a famosa 
        Ilha de São Lourenço; e o Sol ardente 
        Queimava então os Deuses, que Tifeu 
        Com o temor grande em peixes converteu. 
 
 

43 
        Tão brandamente os ventos os levavam, 
        Como quem o céu tinha por amigo: 
        Sereno o ar, e os tempos se mostravam 
        Sem nuvens, sem receio de perigo. 
        O promontório Prasso já passavam, 
        Na costa de Etiópia, nome antigo, 
        Quando o mar descobrindo lhe mostrava 
        Novas ilhas, que em torno cerca e lava. 
 

44 
        Vasco da Gama, o forte capitão,  
        Que a tamanhas empresas se oferece,  
        De soberbo e de altivo coração,  
        A quem Fortuna sempre favorece,  
        Para se aqui deter não vê razão,  
        Que inabitada a terra lhe parece:  
        Por diante passar determinava;  
        Mas não lhe sucedeu como cuidava. 
 

45 -   ( Primeiro Contato com os Mouros ) 

        Eis aparecem logo em companhia 
        Uns pequenos batéis, que vêm daquela 
        Que mais chegada à terra parecia, 
        Cortando o longo mar com larga vela. 
        A gente se alvoroça, e de alegria 
        Não sabe mais que olhar a causa dela. 
        Que gente será esta, em si diziam, 
        Que costumes, que Lei, que Rei teriam? 
 

46 -    ( Descrição ) 

        As embarcações eram, na maneira, 
        Mui veloces, estreitas e compridas: 
        As velas, com que, vêm, eram de esteira  
        Dumas folhas de palma, bem tecidas; 
        A gente da cor era verdadeira, 
        Que Faeton, nas terras acendidas, 
        Ao mundo deu, de ousado, o não prudente:  
        O Pado o sabe, o Lampetusa o sente. 
 

47 -   ( Costumes )

        De panos de algodão vinham vestidos,  
        De várias cores, brancos e listrados:  
        Uns trazem derredor de si cingidos,  
        Outros em modo airoso sobraçados: 
        Da cinta para cima vêm despidos; 
        Por armas têm adargas o terçados; 
        Com toucas na cabeça; e navegando,  
        Anafis sonoros vão tocando. 
 

48 -   ( Ancoram os Portugueses ) 

        Co'os panos e co'os braços acenavam 
        As gentes Lusitanas, que esperassem; 
        Mas já as proas ligeiras se inclinavam 
        Para que junto às ilhas amainassem. 
        A ,ente e marinheiros trabalhavam, 
        Como se aqui os trabalhos se acabassem; 
        Tomam velas; amaina-se a verga alta; 
        Da âncora, o mar ferido, em cima salta. 
 

49 -    ( Vêm a Bordo os Mouros )

        Não eram ancorados, quando a gente  
        Estranha pelas cordas já subia.  
        No gesto ledos vêm, e humanamente  
        O Capitão sublime os recebia: 
        As mesas manda pôr em continente; 
        Do licor que Lieo prantado havia 
        Enchem vasos de vidro, e do que deitam, 
        Os de Faeton queimados nada enjeitam. 
 

50 -    ( Informações Dadas pelos Portugueses ) 

        Comendo alegremente perguntavam,  
        Pela Arábica língua, donde vinham, 
        Quem eram, de que terra, que buscavam, 
        Ou que partes do mar corrido tinham? 
        Os fortes Lusitanos lhe tornavam 
        As discretas respostas, que convinham: 
        "Os Portugueses somos do Ocidente, 
        Imos buscando as terras do Oriente. 
 

51 -   ( Dizem os Portugueses Quem São 
                        e o Que Buscam ) 

        "Do mar temos corrido e navegado 
        Toda a parte do Antártico e Calisto, 
        Toda a costa Africana rodeado, 
        Diversos céus e terras temos visto; 
        Dum Rei potente somos, tão amado, 
        Tão querido de todos, e benquisto, 
        Que não no largo mar, com leda fronte, 
        Mas no lago entraremos de Aqueronte. 
 

52 
        "E por mandado seu, buscando andamos 
        A terra Oriental que o Indo rega; 
        Por ele, o mar remoto navegamos, 
        Que só dos feios focas se navega. 
        Mas já razão parece que saibamos, 
        Se entre vós a verdade não se nega, 
        Quem sois, que terra é esta que habitais, 
        Ou se tendes da Índia alguns sinais?" 
  

53 -   ( Informações Dadas pelos Mouros ) 

        "Somos, um dos das ilhas lhe tornou, 
        Estrangeiros na terra, Lei e nação; 
        Que os próprios são aqueles, que criou 
        A natura sem Lei e sem razão. 
        Nós temos a Lei certa, que ensinou 
        O claro descendente de Abraão 
        Que agora tem do mundo o senhorio, 
        A mãe Hebréia teve, e o pai Gentio. 
        Informações. A Ilha de Moçambique. 
 

54 
        "Esta ilha pequena, que habitamos,  
        em toda esta terra certa escala  
        De todos os que as ondas navegamos 
        De Quíloa, de Mombaça e de Sofala; 
        E, por ser necessária, procuramos, 
        Como próprios da terra, de habitá-la; 
        E por que tudo enfim vos notifique, 
        Chama-se a pequena ilha Moçambique. 
 

55 -   ( Prometem ao Gama um Piloto para a Índia )

        "E já que de tão longe navegais, 
        Buscando o Indo Idaspe e terra ardente, 
        Piloto aqui tereis, por quem sejais 
        Guiados pelas ondas sabiamente. 
        Também será bem feito que tenhais 
        Da terra algum refresco, e que o Regente 
        Que esta terra governa, que vos veja, 
        E do mais necessário vos proveja." 
 

56 -   ( Retiram-se os Mouros )

        Isto dizendo, o Mouro se tornou  
        A seus batéis com toda a companhia;  
        Do Capitão e gente se apartou 
        Com mostras de devida cortesia. 
        Nisto Febo nas águas encerrou, 
        Co'o carro de cristal, o claro dia, 
        Dando cargo à irmã, que alumiasse 
        O largo mundo, enquanto repousasse. 
 

57 -   ( Alegria a Bordo )

        A noite se passou na lassa frota 
        Com estranha alegria, e não cuidada,  
        Por acharem da terra tão remota 
        Nova de tanto tempo desejada. 
        Qualquer então consigo cuida e nota 
        Na gente e na maneira desusada, 
        E como os que na errada Seita creram,  
        Tanto por todo o mundo se estenderam, 
 

58 
        Da Lua os claros raios rutilavam 
        Pelas argênteas ondas Neptuninas, 
        As estrelas os Céus acompanhavam, 
        Qual campo revestido de boninas; 
        Os furiosos ventos repousavam 
        Pelas covas escuras peregrinas; 
        Porém da armada a gente vigiava, 
        Como por longo tempo costumava.  
 

59    ( Prepara-se a Armada para 
        Receber a Visita do Regedor )

        Mas assim como a Aurora marchetada 
        Os formosos cabelos espalhou 
        No Céu sereno, abrindo a roxa entrada 
        Ao claro Hiperiónio, que acordou, 
        Começa a embandeirar-se toda a armada, 
        E de toldos alegres se adornou, 
        Por receber com festas e alegria 
        O Regedor das ilhas, que partia. 
 

60 -     ( Visita o Regedor a Nau da Gama ) 

        Partia alegremente navegando, 
        A ver as naus ligeiras Lusitanas, 
        Com refresco da terra, em si cuidando 
        Que são aquelas gentes inumanas, 
        Que, os aposentos cáspios habitando, 
        A conquistar as terras Asianas 
        Vieram; e por ordem do Destino, 
        O Império tomaram a Constantino. 
 

61 
        Recebe o Capitão alegremente 
        O Mouro, e toda a sua companhia; 
        Dá-lhe de ricas peças um presente, 
        Que só para este efeito já trazia; 
        Dá-lhe conserva doce, e dá-lhe o ardente 
        Não usado licor, que dá alegria. 
        Tudo o Mouro contente bem recebe; 
        E muito mais contente come e bebe. 
 

62 
        Está a gente marítima de Luso 
        Subida pela enxárcia, de admirada, 
        Notando o estrangeiro modo e uso, 
        E a linguagem tão bárbara e enleada. 
        Também o Mouro astuto está confuso, 
        Olhando a cor, o trajo, e a forte armada; 
        E perguntando tudo, lhe dizia 
        "Se por ventura vinham de Turquia?" 
 

63 -   ( Perguntas do Regedor ao Gama ) 

        E mais lhe diz também, que ver deseja 
        Os livros de sua Lei, preceito eu fé, 
        Para ver se conforme à sua seja, 
        Ou se são dos de Cristo, como Crê. 
        E porque tudo note e tudo veja, 
        Ao Capitão pedia que lhe dê 
        Mostra das fortes armas de que usavam, 
        Quando co'os inimigos pelejavam. 
 

64 -   ( Respostas do Gama ) 

        Responde o valeroso Capitão 
        Por um, que a língua escura bem sabia: 
 

                               Buscam a Índia 
 
 

        "Dar-te-ei, Senhor ilustre, relação 
        De mim, da Lei, das armas que trazia. 
        Nem sou da terra, nem da geração 
        Das gentes enojosas de Turquia: 
        Mas sou da forte Europa belicosa, 
        Busco as terras da índia tão famosa. 
 

65 -    ( São Cristãos ) 

        A lei tenho daquele, a cujo império  
        Obedece o visíbil e ínvisíbil 
        Aquele que criou todo o Hemisfério,  
        Tudo o que sente, o todo o insensíbil;  
        Que padeceu desonra e vitupério,  
        Sofrendo morte injusta e insofríbil,  
        E que do Céu à Terra, enfim desceu,  
        Por subir os mortais da Terra ao Céu. 
 

66 -    As Armas de Guerra dos Portugueses 

        Deste Deus-Homem, alto e infinito, 
        Os livros, que tu pedes não trazia,  
        Que bem posso escusar trazer escrito 
        Em papel o que na alma andar devia. 
        Se as armas queres ver, como tens dito, 
        Cumprido esse desejo te seria; 
        Como amigo as verás; porque eu me obrigo, 
        Que nunca as queiras ver como inimigo." 
 

67 
        Isto dizendo, manda os diligentes 
        Ministros amostrar as armaduras: 
        Vêm arneses, e peitos reluzentes, 
        Malhas finas, e lâminas seguras, 
        Escudos de pinturas diferentes, 
        Pelouros, espingardas de aço puras, 
        Arcos, e sagitíferas aljavas, 
        Partazanas agudas, chuças bravas: 
 

68 
        As bombas vêm de fogo, e juntamente 
        As panelas sulfúreas, tão danosas; 
        Porém aos de Vulcano não consente 
        Que dêem fogo às bombardas temerosas; 
        Porque o generoso ânimo e valente, 
        Entre gentes tão poucas e medrosas, 
        Não mostra quanto pode, e com razão, 
        Que é fraqueza entre ovelhas ser leão. 
 

69 -   ( Duplicidade do Regedor )

        Porém disto, que o Mouro aqui notou, 
        E de tudo o que viu com olho atento 
        Um ódio certo na alma lhe ficou, 
        Uma vontade má de pensamento. 
        Nas mostras e no gesto o não mostrou;  
        Mas com risonho e ledo fingimento  
        Tratá-los brandamente determina, 
        Até que mostrar possa o que imagina. 
 

70 -   ( Falsas Promessas ) 

        Pilotos lhe pedia o Capitão, 
        Por quem pudesse à Índia ser levado; 
        Diz-lhe que o largo prêmio levarão 
        Do trabalho que nisso for tomado.  
        Promete-lhos o Mouro, com tenção 
        De peito venenoso, e tão danado, 
        Que a morte, se pudesse, neste dia, 
        Em lugar de pilotos lhe daria. 
 
 

 
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