Castro Alves

Pedro Ivo

Sonhava nesta geração bastarda Glórias e liberdade! .................................................... Era um leão sangrento, que rugia, Da glória nos clarins se embriagava, E vossa gente pálida recuava, Quando ele aparecia. ÁLVARES DE AZEVEDO
I Rebramaram os ventos... Da negra tormenta Nos montes de nuvens galopa o corcel... Relincha — troveja... galgando no espaço Mil raios desperta co'as patas revel. É noite de horrores... nas grunas celestes, Nas naves etéreas o vento gemeu... E os astros fugiram, qual bando de garças Das águas revoltas do lago do céu. E a terra é medonha... As árvores nuas Espectros semelham fincados de pé, Com os braços de múmias, que os ventos retorcem, Tremendo a esse grito, que estranho lhes é. Desperta o infinito... Co'a boca entreaberta Respira a borrasca do largo pulmão. Ao longe o oceano sacode as espáduas — Encélado novo calcado no chão. É noite de horrores... Por ínvio caminho Um vulto sombrio sozinho passou, Co'a noite no peito, co'a noite no busto Subiu pelo monte, — nas cimas parou. Cabelos esparsos ao sopro dos ventos, Olhar desvairado, sinistro, fatal, Diríeis estátua roçando nas nuvens, P'ra qual a montanha se fez pedestal. Rugia a procela — nem ele escutava!... Mil raios choviam — nem ele os fitou! Com a destra apontando bem longe a cidade, Após largo tempo sombrio falou!... .......................................................................... II Dorme, cidade maldita, Teu sono de escravidão!... Dorme, vestal da pureza, Sobre os coxins do Sultão!... Dorme, filha da Geórgia, Prostituta em negra órgia Sê hoje Lucrécia Bórgia Da desonra no balcão!... Dormir?!... Não! Que a infame grita Lá se alevanta fatal... Corre o champagne e a desonra Na orgia descomunal... Na fronte já tens um laço... Cadeias de ouro no braço, De pérolas um baraço, — Adornos da saturnal! Louca!... Nem sabes que as luzes, Que acendeu p'ra as saturnais, São do enterro de seus brios Tristes círios funerais... Que o seu grito de alegria É o estertor da agonia, A que responde a ironia Do riso de Satanás!... Morreste... E ao teu saimento Dobra a procela no céu. E os astros — olhar dos mortos — A mão da noite escondeu. Vê!... Do raio mostra a lampa Mão de espectro, que destampa Com dedos de ossos a campa, Onde a glória adormeceu. E erguem-se as lápides frias, Saltam bradando os heróis: "Quem ousa da eternidade Roubar-nos o sono a nós?" Responde o espectro: "A desgraça! Que a realeza, que passa, Com o sangue de vossa raça, Cospe lodo sobre vós!..." Fugi, fantasmas augustos! Caveiras que coram mais Do que essas faces vermelhas Dos infames pariás!... Fugi do solo maldito... Embuçai-vos no infinito! E eu por detrás do granito Dos montes ocidentais... Eu também fujo... Eu fugindo!... Mentira desses vilões!... Não foge a nuvem trevosa Quando em asas de tufões, Sobe dos céus à esplanada, Para tomar emprestada De raios uma outra espada, À luz das constelações!... Como o tigre na caverna Afia as garras no chão, Como em Elba amola a espada Nas pedras — Napoleão, Tal eu — vaga encapelada, Recuo de uma passada, P'ra levar de derribada Rochedos, reis, multidões... ! III "Pernambuco! Um dia eu vi-te Dormido imenso ao luar, Com os olhos quase cerrados, Com os lábios — quase a falar Do braço o clarim suspenso, — O punho no sabre extenso De pedra — recife imenso, Que rasga o peito do mar... E eu disse: Silêncio, ventos! Cala a boca, furacão! No sonho daquele sono Perpassa a Revolução! Este olhar que não se move "Stá fito em — Oitenta e Nove — Lê Homero — escuta Jove... — Robespierre — Dantão. Naquele crânio entra em ondas O verbo de Mirabeau... Pernambuco sonha a escada Que também sonhou Jacó; Cisma a República alçada, E pega os copos da espada, Enquanto em su'alma brada: "Somos irmãos, Vergniaud." Então repeti ao povo: — Desperta do sono teu! Sansão — derroca as colunas! Quebra os ferros — Prometeu! Vesúvio curvo — não pares, lgnea coma solta aos ares, Em lavas inunda os mares, Mergulha o gládio no céu. República!... Vôo ousado Do homem feito condor! Raio de aurora inda oculta Que beija a fronte ao Tabor! Deus! Por qu'enquanto que o monte Bebe a luz desse horizonte, Deixas vagar tanta fronte, No vale envolto em negror?!... Inda me lembro... Era, há pouco, A luta! Horror!... Confusão!... A morte voa rugindo Da garganta do canhão!... O bravo a fileira cerra!... Em sangue ensopa-se a terra!... E o fumo — o corvo da guerra — Com as asas cobre a amplidão... Cheguei!... Como nuvens tontas, Ao bater no monte — além, Topam, rasgam-se, recuam... Tais a meus pés vi também Hostes mil na luta inglória... ...Da pirâmide da glória São degraus... Marcha a vitória, Porque este braço a sustém. Foi uma luta de bravos, Como a luta do jaguar, De sangue enrubesce a terra, — De fogo enrubesce o ar!... ... Oh!... mas quem faz que eu não vença? — O acaso... — avalanche imensa, Da mão do Eterno suspensa, Que a idéia esmaga ao tombar!... Não importa! A liberdade É como a hidra, o Anteu. Se no chão rola sem forças, Mais forte do chão se ergueu... São os seus ossos sangrentos Gládios terríveis, sedentos... E da cinza solta aos ventos Mais um Graco apareceu!... ..................................................... Dorme, cidade maldita! Teu sono de escravidão! Porém no vasto sacrário Do templo do coração, Ateia o lume das lampas, Talvez que um dia dos pampas Eu surgindo quebre as campas Onde te colam no chão. Adeus! Vou por ti maldito Vagar nos ermos pauis. Tu ficas morta, na sombra, Sem vida, sem fé, sem luz!... Mas quando o povo acordado Te erguer do tredo valado, Virá livre, grande, ousado, De pranto banhar-me a cruz!... " IV Assim falara o vulto errante e negro, Como a estátua sombria do revés, Uiva o tufão nas dobras de seu manto, Como um cão do senhor ulula aos pés... Inda um momento esteve solitário Da tempestade semelhante ao deus, Trocando frases com os trovões no espaço Raios com os astros nos sombrios céus... Depois sumiu-se dentre as brumas densas Da negra noite — de su'alma irmã... E longe... longe... no horizonte imenso Ressonava a cidade cortesã!... Vai!... Do sertão esperam-te as Termópilas A liberdade ainda pulula ali... Lá não vão vermes perseguir as águias, Não vão escravos perseguir a ti! Vai!... Que o teu manto de mil balas roto É uma bandeira, que não tem rival. — Desse suor é que Deus faz os astros... Tens uma espada, que não foi punhal. Vai, tu que vestes do bandido as roupas, Mas não te cobres de uma vil libré Se te renega teu país ingrato O mundo, a glória tua pátria é!... .................................................................... E foi-se... E inda hoje nas horas errantes, Que os cedros farfalham, que ruge o tufão, E os lábios da noite murmuram nas selvas E a onça vagueia no vasto sertão. Se passa o tropeiro nas ermas devesas, Caminha medroso, figura-lhe ouvir O infrene galope d'Espectra soberbo, Com um grito de glória na boca a rugir. Que importa se o túm'lo ninguém lhe conhece? Nem tem epitáfio, nem leito, nem cruz?... Seu túmulo é o peito do vasto universo, Do espaço — por cúpula — as conchas azuis! ... ... Mas contam que um dia rolara o oceano Seu corpo na praia, que a vida lhe deu... Enquanto que a glória rolava sua alma Nas margens da história, na areia do céu!...

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