1985
– A
vida como um labirinto em linha reta
José
Antonio Cedrón
JAC
- Todos
os que estamos aqui reunidos na universidade somos ou fomos
alunos. Muitos somos ou fomos professores. Isto é certo ao menos
no aspecto formal. Quais condições pensa você, Borges, como
necessárias para que haja um mestre ou um discípulo?
JLB
- Creio que só se pode ensinar o amor por algo. Eu não ensinei
literatura inglesa, mas sim o amor por essa literatura. Ou melhor
dizendo, já que a literatura é virtualmente infinita, o amor por
certos livros, por certas páginas, talvez por certos versos.
Ditei essa cátedra durante vinte anos na Faculdade de Filosofia e
Letras. Dispunha de cinqüenta a quarenta alunos, e quatro meses.
O menos importante eram as datas e os nomes próprios, mas
consegui ensinar-lhes o amor por alguns autores e por alguns
livros. E há autores, bem, dos quais eu sou indigno, então não
falo deles. Ou seja, o que faz um professor é buscar amigos para
os estudantes. O fato de que sejam contemporâneos, que estejam
mortos há séculos, de que pertençam a esta ou aquela região,
isso é o de menos. O importante é revelar beleza e só se pode
revelar a beleza que se sente.
JAC
- Borges,
já que estamos no tema mestre/discípulo, sempre considerei - ao
menos você o tem reconhecido em muitas oportunidades - que seu
grande mestre de juventude foi Macedonio Fernández.
JLB
- Macedonio Fernández, Rafael Cansinos-Asséns… enfim, creio
que devo algo a todos os livros que li e, sem dúvida, a muitos
dos que não li mas que me chegaram através de outros. Isto se
chama tradição.
JAC
- Gostaria
que nos contasse algo de sua relação com Macedonio Fernández.
JLB
- Bem, creio que Macedonio Fernández foi menos escritor do que o
mestre oral. Era um homem tênue, com uma voz ainda mais baixa que
a minha. Nos reuníamos todos os sábados em uma confeitaria da
Praça del Once, em Buenos Aires. Podia tê-lo visto mais
seguidamente, já que era amigo de meu pai, mas pensei que não
devia abusar do privilégio de ser contemporâneo de Macedonio.
Era um homem de uma esquisita cortesia, tanto que sempre atribuía
suas opiniões a seu interlocutor; sempre começava dizendo:
“Terás observado, sem dúvida…” e logo dizia algo que
nenhum de nós havia observado. Agora, creio que o talento de
Macedonio foi bem mais um talento oral. Sei que aqueles que não o
conheceram não puderam satisfazer-se com seus livros. Ele me
disse que escrevia para ajudar a pensar e que não queria
publicar. Contudo, uns amigos lhe roubamos textos seus e
apareceram na coleção “Cuaderno del Plata”, de Alfonso
Reyes. Mas ele não tinha nenhum interesse; vivia pensando, e
podia ter dito, como Bernard Shaw, quando lhe perguntaram qual
esporte, qual diversão havia em sua vida; respondeu:
“pensar”. Creio que Macedonio havia lido muito pouco, mas
havia pensado essas perplexidades que chamamos, não sem ambição,
a metafísica, a filosofia, a psicologia… o que for. Ele havia
repensado esses temas. E todos nós sentíamos essa felicidade de
haver nascido na mesma época, na mesma cidade que ele, no mesmo
ambiente que ele. Tenho a melhor lembrança de Macedonio Fernández.
Disseram-me, me comunicou Manuel Mujica Láinez, que Macedonio
havia morrido, então fui à Recoleta
e falei. Agora, Macedonio pensava que a morte corporal não tem
nenhuma importância. Ele estava seguro da imortalidade. Contei
algumas brincadeiras dele, as pessoas riram. E quando saímos,
Mujica Láinez me disse: “Fizeste algo que ninguém fez
antes”. O que fiz?, disse-lhe. “Bem, fizeste as pessoas rirem
na Recoleta”. E volto uma vez mais ao Japão (parece que não
posso deixar o Japão): quando estive em templos de ensinamento do
Buda notei algo que não havia notado em nenhum país: que as
pessoas nos templos se riem; fazem brincadeiras, sentem-se
felizes, não há silêncio reverencial: isso pareceu-me muito
grato, o fato de que a religião alegrasse. Bem, creio que
Macedonio Fernández é um dos homens de gênio que deu este país.
E se tivesse que mencionar outro pensaria naquele tão díspar que
escreveu os piores versos da língua castelhana, mas também os
melhores, pensaria em Almafuerte… E os demais? Bem, talvez
Sarmiento fosse uma exceção, os demais foram homens de talento,
mas não homens de gênio. Teria que pensar também no místico
gravador Alejandro Xul Solar, enfim, para mencionar alguns, e me
é muito grato ouvir o nome de Macedonio Fernández aqui, já que
não se passa um dia sem que me lembre dele.
JAC
- O
som das palavras, ajuda-nos ou nos desvia de seu conteúdo?
JLB
- Não sei se é possível fazer essa separação. Eu diria que
cada palavra é um ser, é uma entidade e possivelmente não há
sinônimos. Não estou seguro. Vou escolher um exemplo muito
simples: não estou seguro de que a palavra lua seja exatamente
equivalente à palavra moon em inglês, ou lune
em francês. Mas talvez lune
e moon estejam mais próximas
porque são monossilábicas, mas talvez… cada palavra seja um
ser. Por isso creio que é impossível traduzir a poesia. Quanto a
mim, cada vez que leio uma versão minha em qualquer idioma, digo:
“Caramba, que bons versos, oxalá eu os tivesse escrito!”.
JAC
- A
magia das palavras, está na grafia, no som?
JLB
- Não, porque podemos prescindir da grafia. A grafia vem muito
depois. Diria que no som e nas conotações das palavras, no
ambiente das palavras. No entanto, parece que na poesia chinesa e
japonesa a escritura é muito importante, já que usam os kenyis,
os ideogramas. Diria que a grafia não é importante. Diria que a
poesia é, antes de tudo, cadência.
JAC
- Borges, por que até agora
não escreveste romances?
JLB
- Porque para escrever romances é preciso ser leitor de romances
e li poucos romances em minha vida. Creio que é impossível
escrever um romance sem palavrório. No entanto, li e reli Dom Quixote. E depois, se tivesse que nomear um romancista, seria
Conrad; em seus romances há algo épico que não encontrei em
outros autores. E depois Dickens. Fracassei em muitos romances
famosos; tratei de ler Guerra
e paz,
Crime e castigo, que me
emocionaram muitíssimo, mas fracassei com Flaubert, Sartre,
enfim, tantos. Ao contrário, creio que o conto pode ser algo
essencial, pode ser legislado pelo autor. Um autor pode ter em sua
mente todo um conto, mas não um romance, porque este se escreve e
se lê sucessivamente. O romance é algo que apenas podemos
divisar de longe. Por isso creio que é impossível um romance sem
palavrório, mas um bom conto - um conto de Kipling, por exemplo
-, pode não conter nenhum palavrório, que eu saiba. Não escrevi
romances porque para mim - eu… eu sou um homem tímido - entrar
em um romance é como entrar em uma casa com cem pessoas; sinto-me
um pouco tonto, um pouco perdido, e logo tenho que conhecê-las,
tenho que averiguar quem são, tenho que saber os parentescos, as
relações que têm… tudo isso me dá muito trabalho. Ao contrário,
o poema ou o conto se oferecem imediatamente e não exigem esforço.
JAC
- Borges,
muitos autores dentro da literatura universal deixaram expressos
seus sonhos e uma interpretação desses mesmos sonhos. Há uma
maneira unívoca de interpretar esses sonhos? Ou existe a
possibilidade de que a interpretação se modifique?
JLB
- Não, creio que não, felizmente não. De igual maneira que cada
texto é capaz de um modo indefinido de leituras, cada texto se
renova cada vez que o lemos. Eu imaginei, mas claro, era uma
brincadeira, uma literatura que constasse de uma só palavra. E
essa palavra seria interpretada de maneira diversa pelas gerações,
mas é simplesmente uma brincadeira.
JAC
- Em
seus escritos costumamos perceber dois aspectos, um que pode estar
relacionado com Borges pessoa, e outro aspecto que se percebe que
não é seu.
JLB
- Evidentemente, o que não é meu, não é meu, mas sim dos
autores que li.
JAC
- O
que pergunto é se você distingue isso que transcende o meramente
pessoal, essa segunda escritura que não é sua e que se percebe
ali.
JLB
- É que eu penso que se um escritor escreve o que se propôs e
nada mais, não tem nenhum valor escrito. O importante é o que o
escritor escreve sem saber que o escreve; o que o escritor se propõe
costuma ser mínimo; por exemplo, Cervantes quis fazer uma paródia
dos romances de cavalaria, e agora, se recordamos esses romances,
recordamos o Quixote. O propósito pode ser um estímulo ocasional, mas convém
que o que se escreva vá muito além do propósito do escritor.
Descreio da literatura comprometida. Mas essa literatura
comprometida pode ir além da intenção do autor, e então…
Por
exemplo, pessoalmente não me interessa o conceito de democracia,
mas sem ele Whitman não teria escrito suas Folhas de relva, o que seria uma lástima, e esse estímulo pode ser
ocasional e essa literatura comprometida pode chegar a ser
literatura, o que é mais, claro, mas há escritores que não
necessitam disto… Descreio da mitologia cristã e da mitologia
pagã de Dante, mas sem essa mitologia não teríamos sua obra e
seríamos muito mais pobres. A teologia e a mitologia foram
instrumentos necessários para que Dante deixasse sua obra, que
vive muito além de suas opiniões teológicas ou de suas crenças
mitológicas.
JAC
- Eu
penso que se perdeu, que perdemos a capacidade do assombro…
JLB
- Não, eu creio que não. Quanto a mim, sigo assombrado a cada
instante. Em Chesterton se tratava disso, de seguir… os homens
envelhecem para o amor, os homens envelhecem para a mentira, mas não
para assombrar-se, e a mim - disse - segue assombrando-me ver
surgir a enorme noite, uma nuvem maior que o mundo e um monstro
feito de olhos - não cheio de olhos, mas sim feito de olhos. Bem,
era um homem velho e seguia assombrando-se…
JAC
- Que
conselho daria a um jovem que começa a escrever?
JLB
- O conselho que me deu meu pai há tantos anos: que só
escrevesse quando sentisse necessidade íntima de fazê-lo e que não
pensasse em publicar. Emily Dickinson pensava que publicar não é
parte essencial do destino de um escritor, mas creio que se
escrevemos quando algo insiste em ser escrito, esse resultado pode
não ser desdenhável. A idéia de sentar-se para escrever algo me
parece um erro; querer buscar um tema também. Há que deixar que
os temas nos busquem e nos encontrem, e há que tratar de ser
dignos dos temas. Mas propor-se um tema, dizer: “esta tarde vou
escrever um soneto”, parece-me absurdo.
JAC
- Borges,
teria gostado de ser um homem de subúrbio?
JLB
- Não, não.
JAC
- Ou
acaso menos instruído?
JLB
- Não.
JAC
- Ou
talvez algum personagem fantástico, já que se arrepende de tudo
o que fez?
JLB
- Não. Creio que já sou bastante bárbaro para desejar sê-lo
ainda mais, para enriquecer minha ignorância; não, creio que não.
Quanto mais saibamos e mais sintamos, melhor. Ser um homem de subúrbio
parece-me triste, não? Mas esta época fomenta a barbárie; é um
erro. Talvez sejamos bárbaros ainda, mas devemos tratar de não sê-lo.
Quanto mais pensemos, quanto mais leiamos, melhor. Mas buscar a
barbárie, o pitoresco, a ação… buscar meramente isso me
parece um erro.
JAC
- O
que falta ao Borges para ser um escritor popular?
JLB
- Creio que, desgraçadamente, sou um escritor popular.
JAC
- Você
considera que a etimologia seja uma forma de metafísica?
JLB
- É… bem mais uma série de aventuras da palavra, mas essas
aventuras são interessantes. Hoje eu recordava, por exemplo, a
palavra caribe, nome de
uma tribo do Caribe. Agora, do caribe
saíram duas palavras famosas em todo o mundo: canibal, antropófago,
e Calibán, o personagem… bem, há outras etimologias raras.
Temos a palavra blanco
em castelhano - é óbvio o que significa - e a palavra black em inglês, que curiosamente procedem de uma mesma raiz. Todos
sabem que black
significa negro. Pois bem, essa palavra, ao princípio, significou
“o que não tem cor”, e em inglês correu para o lado da
sombra: black, negro. Em
castelhano e em francês, e em italiano e em português, correu
para o lado da claridade e agora quer dizer branco.
Uma curiosa aventura das palavras. Bem, há um momento usei a
palavra bungalow. Isto
me assombrou. Bem, vocês recordam esse conto de Poe, “A carta
roubada”, a polícia a procura, a carta está em cima da mesa (é
tão óbvia que não se vê), me lembro de bungalow…
é uma palavra construída à maneira de bengala, bn-gl,
bengala, bungalow,
escreve-se quase igual e, no entanto, ninguém se dá conta disso.
E há uma palavra muito desagradável, a palavra náusea,
e no entanto essa palavra tem uma origem nobre; procede de navis,
ou nawis, porque
sentimos náusea quando estamos a bordo, da mesma maneira que mareação tem sua nobre origem no mar. Navis então deu naval, em
latim, náutico e a
palavra que nenhum escritor usaria porque é muito desagradável, náusea, mas esta é sua origem.
JAC
- Borges,
já que está com a etimologia das palavras, o que nos pode dizer
da palavra abracadabra?
JLB
- O único que sei é que está na primeira página de qualquer
enciclopédia e que se escreve em forma de triângulo.
Isso
é tudo.
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