1984
– Sou tímido,
ocioso e irresponsável
Antonio
Caballero
Não
é um prazer fácil o de entrevistar Borges: intimida. Sua
cegueira, sua idade, sua cortesia, sua fama, sua galantaria de
velho poeta famoso, sua língua viperina. Sua pressa: passa por
Madri, voa para Genebra, regressa a Sevilha. E, além do mais, sua
larga prática: provavelmente a Borges fizeram mais entrevistas do
que todas as que um jornalista vigoroso possa fazer em sua vida.
Sabe responder, e sabe também eludir as respostas e fugir como
uma lula, soltando velozes sopros negros de citações eruditas,
frases de Emerson, coisas que lhe disse Leopoldo Lugones, versos
de Garcilaso, gracejos de payadores,
fragmentos das sagas islandesas recitados, em islandês, com voz
quebrada somente nos hemistíquios - e ninguém se atreve a
perguntar-lhe se em islandês os versos se partem em hemistíquios,
temendo ser impertinente, temendo que Borges previna que se está
tentando ser impertinente, que não se sabe islandês.
JLB
- Claro, quando jovens todos fomos impertinentes, não? Quando fui
visitar Lugones pela primeira vez…
AC
- E perde-se na distância,
soprando tinta, pontuando as frases com galantes nões?
De falsa indecisão, quando sabe que sim, que o que está dizendo
é assim como diz:
JLB
- … uns versos esplêndidos deste poeta boliviano, Jaimes Freire, que já ninguém conhece,
não?, que não querem dizer nada e que são muito lindos:
“Peregrina paloma imaginaria / que enardece los últimos
amores… - e Borges balança
docemente no ar a mão da bengala, olhando o céu com seus cegos
olhos pálidos - …alma de luz, de música y de flores /
peregrina paloma imaginaria”…
Não querem dizer nada, mas soam muito bem, não? Quando muito o
autor os fez como um experimento de som, nada mais, ou de
palavras: “peregrina paloma imagi” - bem, não sei muito bem o
que quer dizer, mas não importa.
AC
- Ultimamente
parece haver surgido um novo gênero literário, o das entrevistas
com Borges. Pensa que dessas entrevistas surge ainda algo novo?
JLB
- Não sei… Para começar, sempre me perguntam: “Estou falando
com Borges ou com o outro?” Isso é inevitável, não? Espero
que você prescinda da forma clássica.
AC
- Suponho que falo com os
dois. Mas essas entrevistas lhe
servem para algo, para dizer algo que não havia dito?
JLB
- Eu creio que não. Porque, como sempre fazem as mesmas
perguntas, respondo com as mesmas respostas. Mas o melhor é
esquecer isto… Não meçamos o destino ulterior de nossas
palavras. Claro, sou muito tímido, talvez lhe pegue minha
timidez, não? Os sul-americanos somos facilmente tímidos, me
parece. Na Espanha talvez não.
AC
- Falando
de sua timidez, deste desejo de que esqueçamos nossas palavras…
Você disse muitas vezes que escreveu demasiado.
JLB
- E é certo: se vejo o memorial de minhas Obras
Completas, que são incompletas, além do mais, sinto
fisicamente vergonha de haver escrito tanto, não? Considero-me um
homem muito ocioso e, no entanto, minha ociosidade deixou este
vasto volume. Mas seria extraordinário que havendo tantas páginas
não houvesse, não digo uma página boa, mas sim um argumento
bom, uma frase, talvez um bom verso. Não um poema inteiro bom,
isso já é demasiado; mas seria extraordinário se não houvesse
alguma linha perdoável.
AC
- Isso
no tocante à sua própria obra. E quanto às outras?
JLB
- Bem, creio que em geral as Obras Completas são um erro. Acho
mais natural o que se fazia antes: deixar as coisas ao tempo, que
é o melhor antólogo, creio. Em qualquer antologia podemos
comprovar isto. Você
toma Los cien mejores versos
de la lengua castellana, de Menéndez y Pelayo. Os
do princípio estão bastante bem, mas já ao final Menéndez y
Pelayo tem que incluir seus amigos, encher isso de gente, de
contemporâneos dele que não podia desatender, omitindo-os. E
depois seus próprios versos, que costumam ser muito lindos.
Por
exemplo, “…la náyade en el agua de la fuente”…
ou aquela outra com o hipérbato, como é? “…que el nubio toro
allá de cien ciudades / Creta conduzca a la robada ninfa”…
“Que el nubio
toro” - núbio não importa. Há versos muito lindos, mas ninguém
de lembra de Menéndez y Pelayo como poeta, não?
AC
- Ao
contrário, há outros poemas que são recordados literalmente,
onde todos os versos importam, onde não se pode suprimir nada: o
contrário das antologias. A Bíblia, o Alcorão…
JLB
- Li duas versões inglesas do Alcorão: a de Rothwell e a de…
qual é a outra? E realmente me pareceu um livro muito pobre,
muito tedioso. Mas dizem-me pessoas que sabem árabe… Bem, o
Alcorão está escrito para o árabe, não? As poesias de Verlaine
estão escritas para o francês, ou as de Góngora ou as de Darío
para o castelhano, a ninguém ocorre traduzi-las. Seria absurdo, não?
AC
- Bem,
Góngora foi traduzido inclusive para o Castelhano.
JLB
- Seria muito difícil, não? Talvez impossível. Bem, sim, creio
que fizeram uma tradução, este… Amado Alonso, não?
AC
- Dámaso
Alonso.
JLB
- Sim, Dámaso Alonso fez uma tradução e não creio que reste
nada. Não sei se sobrevive Góngora, não? Por exemplo…
AC
- Subitamente
Borges anima-se, crava com força a bengala, escora-se sobre seu
interlocutor como um barco encalhado, sacudido de urgência.
JLB
- Eu queria consultá-lo sobre estes versos de Góngora; eu sempre
os li de um modo e depois a versão de Dámaso Alonso me convenceu
de que havia me equivocado: “Si ya los muros no te ven de Huelva
/ peinar el viento, fatigar la selva… Bem, fatigar a selva é
de Virgílio: “fatigaverunt silvam”, ou algo assim. Agora, eu
os lia: “Si ya los muros no te ven fatigar el viento de
Huelva”,
e parece ser que não, que para Góngora era: “si ya los muros
de Huelva no te ven”… Você, como ouviu, quando eu disse esses
versos? Ouviu os muros ou os ventos? Creio que seria melhor o
vento, mas talvez isto seja impossível no século XVII. O que
pensa disto?
AC
- Quem
pergunta é Borges. O que se vai dizer?
O
vento. Soa melhor o vento.
JLB
- Sim, fica melhor. Senão fica muito torpe. Agora não sei se
naquele tempo se podia pensar já no vento de Huelva, talvez não,
talvez isso corresponda já ao século XIX. Você acredita que é
o vento? Eu creio que é anacrônico, isso. Temo que sejam os
muros. É que a Góngora agradava o simétrico: “si ya los muros
no te vem”, por um lado “peinar el viento”, por outro
“fatigar la selva”… Agrada-nos mais uma simetria imperfeita,
a perfeita parece-nos demasiado mecânica, não? Temos que seguir
falando disto mais adiante. Palavras memoráveis, não?
AC
- Poderíamos
falar de outro tema. Da influência que você exerce sobre outros
escritores (Borges nega com a cabeça, com humildade). Para começar,
lhe copiam, ou tentam.
JLB
- Que interessante… Deviam buscar melhores modelos, não?
AC
- Mas
já que essa influência existe, em que preferiria que se
manifestasse? No tom, no fundo…
JLB
- Não, mais em certa irresponsabilidade minha, não? Nisso de que
escrevo o que me ocorre. Não penso no leitor, não penso no êxito,
não penso no fracasso. Creio que, imitando essa
irresponsabilidade minha, cada um seguiria sua imaginação, e sua
imaginação daria certamente resultados bem distintos do que deu
a minha… Bem, esse é o tipo de influência que eu poderia
exercer, mesmo que talvez seja demasiado ambicioso.
AC
- Essa
irresponsabilidade sua: estética, ética?
JLB
- Estética, claro. Não sou um homem ético. Em geral, os
argentinos não somos éticos. Eticamente trato de não ser um
irresponsável. Mas isso é pessoal, isso não tem nada a ver.
Quisera… se pudesse, ensinar a simplicidade à que cheguei tão
dificilmente, depois de tantos anos de barroquismo e de lugonerias…
Comecei como todos os jovens, sendo barroco. Claro: queria ser
Leopoldo Lugones, e Lugones era barroco e eu também, e toda minha
geração o foi, não?
AC
- A literatura
latino-americana tende a ser barroca, não? - o interrogativo não
de Borges, tão afirmativo, é contagioso. Neruda…
JLB
- Neruda me disse: “Para mim há um só poeta no mundo”. Como?
- disse eu -, que triste, espero que haja milhões. “É que para
mim só existe um, que é Walt Whitman”. Embora eu não saiba se
Whitman teria gostado da obra de Neruda.
AC
- Neruda
tinha um imenso amor por si mesmo; disso talvez tivesse gostado
Whitman, não?
JLB
- Sim, salvo que não sei se Whitman tinha amor por si mesmo como
pessoa ou como Walt Whitman, esse personagem mítico. Sim,
possivelmente fora vaidoso, mas não pessoalmente, ele via a si
mesmo como multiplicado: no Texas sou tal coisa, em Long Island…
Creio que todos devemos muito a Whitman, não? O verso livre, a
poesia civil…
AC
- A
poesia civil? Você…
JLB
- Sim, eu não fiz nunca poesia civil, não? Por vezes fiz declarações,
quando era perigoso fazê-las. Mas como tema de poemas… Bem,
devo ter cantado algum aniversário, alguma coisa assim.
AC
- De tipo familiar? “Mi abuelo Borges en la batalla de…”
JLB
- Sim… minha mãe me disse uma vez: “Não te importa a história
argentina, te importam nossos parentes”. Sim, é interessante
isso, não? Bem, mas é que ali houve tão pouca gente que todos
somos parentes.
AC
- Borges
se perde pelos ramos de sua árvore genealógica: uma avó
inglesa, bisavós judeus, portugueses, andaluzes, bascos, umas
gotas de sangue guarani:
JLB
- Descendo de uma concubina do conquistador Idala, que fundou a
cidade de Assunção, mas isso não sei até onde… Trato de
sentir-me cosmopolita. Mas, se sou cosmopolita também sou
argentino; o cosmos não tem por que recusar a República
Argentina, não?
AC
- Não
é contraditório ou complementar, talvez, esse…
JLB
- Espero que seja complementar, não?
AC
- …esse
interesse por seus antepassados com seu desdém pelo que é e pelo
que foi historicamente a Argentina?
JLB
- Historicamente produzimos muitos bons argentinos… Atualmente não
sei. Estamos todos tão desorientados, não? Contudo, se houve
estas eleições quer dizer que podemos esperar outros milagres
também. Mas a situação do Governo é terrível. Fora da metáfora:
“há que se combater a inflação”, o que se faz?
AC
- Fora
da metáfora e fora da inflação, você acredita que se deve
fazer justiça? Castigar os culpados?
JLB
- Vou citar um poeta argentino, Almafuerte: “Sólo pide
justicia, pero será mejor que no pidas nada”.
Sim, justiça. Os desaparecidos: milhares de pessoas. Jovens de
oito anos, que foram mortos a bala, gente torturada com choque.
Que horror. Continuamente são encontrados cemitérios
clandestinos, cárceres clandestinos. Um general jactou-se de
trinta mil desaparecidos. É terrível o que se fez. Não sei por
que Sábato se meteu nessa comissão: recebeu sete mil denúncias.
Que horror. Eu não queria ter que ler uma só denúncia. É terrível.
E tudo isso se fez para manter a imagem da Argentina. Caso contrário,
teria havido julgamentos públicos e execuções públicas, como há
no Irã. Mas não, se fez assim. O Governo dedicou-se ao
terrorismo e, claro, com mais eficácia que os terroristas, porque
dispõe de mais meios: o Exército, a Marinha, a Polícia, as forças
paramilitares, parapoliciais. Sim, desde já, deve-se fazer justiça.
Mas prefiro não ter nada a ver com essa justiça.
AC
- Por ociosidade?
JLB
- Não… Porque não estou seguro de que haja livre arbítrio, além
disso. Estou quase seguro de que não há. E, nesse caso, o que
significaria a justiça dos demais? Você gostaria de ser
inquisidor, digamos? Ser verdugo, ser carcereiro, ser juiz?
Tampouco eu. Então…
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