1977
- Diálogo fugaz
Roger
Caillois, Jorge Luis Borges
RC
- E
então, meu querido Borges, há quase trinta anos nos conhecemos.
Desde então tenho notado que…
JLB
- Sim, naquele tempo você me inventou.
RC
- Não,
não.
JLB
- Então me inventou um pouco depois…
RC
- Tenho
notado mudanças em sua atitude para com a poesia. Naquela época
você formava parte do movimento ultraísta, ou seja, um movimento
de vanguarda; e eu…
JLB
- Tudo isso são coisas de crianças. Há que esquecê-lo já.
Agora sou um velho senhor, fatigado, cético. Não tenho nada a
ver com os “ismos”.
RC
- Naquela
época eu era surrealista, o que mais ou menos eqüivalia a ser
ultraísta.
JLB
- Não, é um pouco melhor, há que reconhecê-lo.
RC
- É
apenas um pouco melhor. Em todo caso, tivemos evoluções
paralelas, no que concerne à poesia.
JLB
- Evoluções até a sensatez e a sabedoria; em resumo, evoluímos
até Boileau.
RC
- Até
Boileau, sim.
JLB
- Nunca deixo de evoluir até Boileau.
RC
- E
você escreveu em alguma parte que os fundamentos da literatura
(me corrija se me equivoco)…
JLB
- Eu nunca me lembro do que escrevi. Só me lembro do que os
outros escreveram, sobretudo enquanto escrevo.
RC
- Escreveu
que os fundamentos da literatura eram o provérbio e a epopéia.
Em todo caso, dizia que esses dois eram os gêneros que lhe
pareciam mais importantes
JLB
- Agora prefiro a epopéia sobre o provérbio.
RC
- É
mais largo e ocupa mais tempo…
JLB
- É mais divertido.
RC
- São,
de qualquer maneira, as formas mais antigas da literatura.
JLB
- Sim, a literatura começa com a literatura fantástica, com o
mito, com a cosmogonia. Depois, no século XVIII, inventou-se o
realismo.
RC
- Assim
é; você chegou inclusive a considerar a teologia como uma forma
particular da literatura fantástica.
JLB
- Sim, creio que a Ética
de Spinoza é a obra mestra da literatura fantástica. Mas também
a Suma teológica, de São
Tomás.
RC
- Essa
é a literatura fantástica mais rigorosa e, conseqüentemente, a
mais difícil.
JLB
- Mesmo que, claro, não seja a mais divertida.
RC
- Nessa
evolução até Boileau que há instante evocava…
JLB
- Sim, Boileau, sempre Boileau. Mas Boileau é um ideal. Ele está
além, à distância, no firmamento. Inatingível.
RC
- Há
versos de Boileau que são muito misteriosos. Não lembro agora
nenhum…
JLB
- “O momento em que falo já está longe de mim.” É
impressionante, belíssimo. Será de Boileau? Não parece. Boileau
deve tê-lo tomado de algum autor latino.
RC
- Lembro
uma descrição dos decorados nos sótãos da Ópera, onde Boileau
fala de “o oceano recobrindo os bosques”.
JLB
- É muito belo. Flaubert dizia de Boileau: “Esse tipo durará
tanto quanto a língua francesa”. O que eqüivale a nomear a
imortalidade.
RC
- As
línguas são flutuantes.
JLB
- As línguas são mortais, mas, como seja, durar tanto quanto a língua
francesa não está nada mal.
RC
- Também
me impressionou o que você disse sobre a imagem.
JLB
- Creio haver dito que há unicamente meia dezena de metáforas
elementares, de lugares-comuns que são, por exemplo, a vida e o
sonho, o tempo e…
RC
- …o
rio…
JLB
- …o rio, as estrelas e os olhos, as mulheres e as flores ou os
frutos. E isso é tudo. O demais é literatura.
RC
- Disse
também que havia que se manter nessas metáforas elementares.
JLB
- Sim, creio que os lugares-comuns são muito necessários. Se não,
se é simplesmente extravagante e efêmero.
RC
- Efêmero?
JLB
- Sim, e então se converte em ultraísta.
RC
- Você
disse com firmeza que se a imagem estivesse fundada na surpresa não
duraria, porque não há nada mais breve do que a surpresa.
JLB
- É evidente, trata-se de um instante.
RC
- Mas, de verdade, pensa que
é necessário manter-se nas mesmas metáforas? Nerval
disse: “O primeiro a comparar a mulher a uma rosa era um poeta,
o segundo um imbecil”. Como reage a essa frase?
JLB
- O terceiro é um clássico.
RC
- [Riso] O terceiro é um clássico!
[Riso] É uma resposta
excelente.
JLB
- Podemos dizer isso porque quando se compara a mulher a uma rosa
se está citando poetas: liga-se a uma tradição, converte-se em
clássico, em alguém cortês e educado, não quer impressionar os
leitores.
RC
- E
esse é o fundamento da poesia chinesa que, como você sabe, está
feita de alusões aos poetas anteriores. Mas, de qualquer maneira,
parece-me que há outra perspectiva para considerar a metáfora. Há
um aspecto infinito, ilimitado, da metáfora. Recordo um poema de
Victor Hugo sobre Firdusi, o poeta persa.
JLB
- “Uma tarde, encontrei-me com Firdusi em Mysora”, é assim?
RC
- “Em
outro tempo, conheci Firdusi em Mysora.”
JLB
- Assim é, e logo, ao final: “O que passa, respondeu-me, é que
me havia desmaiado”.
RC
- Temos os mesmos clássicos.
JLB
- Os mesmos. Lemos a mesma página de Victor Hugo e não podemos
negar que é muito bela. O homem escarlate. Que palavra tão bela:
escarlate. E é verdadeiramente uma palavra: escarlate.
RC
- É
uma palavra persa que significa azul. Agora quer dizer vermelho.
Era uma matéria de estofo.
JLB
- É uma palavra bela em várias línguas: écarlate
em francês, scarlet em
inglês, scharlach em alemão. Talvez a mais bela é scharlach. O homem escarlate. Não é a primeira vez que falamos
desse poema.
RC
- É provável que tenhamos
falado dele em Buenos Aires, por aquela época eu o copiei para
enviá-lo a André Breton,
que tinha uma preferência por outro tipo de imagens. Não é
necessário explicar que ficou impressionado por este poema e começou
a gostar de Hugo. Antes o detestava… Mas, o que você considera
primordial na tradução de um poema? A exatidão verbal?
JLB
- Não, não creio. É mais importante encontrar a cadência que
convenha ao tema. Penso isso não somente sobre a tradução, mas
também sobre a composição. Uma vez que se tenha encontrado o
acento justo, nem muito alto nem muito baixo, nem muito enfático,
já se tem o poema. Creio que isso é o principal: encontrar a cadência,
encontrar a voz apropriada a cada poema. Isso é o que Verlaine
sempre encontra, por exemplo, e Hugo também. O autor de A
canção de Rolando encontrou exatamente o tom que
necessitava.
RC
- É
certo, é o tom, creio eu, o mais importante; ou o acento. Porque
a cadência é com freqüência uma forma imposta pela tradição.
Enquanto que o tom é verdadeiramente pessoal para o poeta.
JLB
- Sim, é bem mais o tom do que a cadência. Creio que um poeta é
essencialmente seu tom. Se pensarmos em Whitman, por exemplo, é a
voz de Whitman. Ou se pensarmos em Verlaine, é a voz de Verlaine.
Cada poeta tem sua voz, seu tom, sua maneira…
RC
- …e
o acento que o torna inclassificável, e faz com que seja
reconhecido desde o primeiro momento.
JLB
- Ao mesmo tempo, é algo muito difícil de se conseguir porque o
poeta não deve se parecer demasiado consigo mesmo; não deve ser
seu próprio discípulo. Por exemplo, quando escrevo trato de não
ser Borges, porque isso me incomoda. Por isso há palavras que
atualmente tenho por proibidas: já não posso falar de
labirintos, nem de espelhos, nem de adagas… porque estaria
imitando Borges. Pareceria com meus discípulos, meus imitadores.
Todas essas palavras estão proibidas para mim, mas quando me
distraio, de imediato surge por ali um labirinto e então me
resigno.
RC
- Mas
trata então de apagar o labirinto?
JLB
- Posso tratar, mas…
RC
- Ou
diz alguma outra coisa que seja outro labirinto?
JLB
- Sim… mas a idéia está ali, é a mesma coisa, e todos os que
a lêem tornam a colocar o labirinto.
RC
- Mas
essa é sua força.
JLB
- Não, não, já que não é a palavra justa. Penso que há que
conservar a palavra justa. Há que dizer labirinto e não dédalo,
por exemplo.
RC
- Ao
lado dos labirintos, estão as facas…
JLB
- E alguns outros caprichos, como os espelhos. Nos espelhos está
a idéia do alter ego,
do duplo, de Pitágoras, do doppelganger,
do fetch escocês. São
algumas manias das quais tenho me servido. Essas manias se
converteram para mim em uma espécie de tradição pessoal. Não
saberia escrever sem elas.
RC
- É
uma tradição pessoal, mas o que me impressiona é que não se
trata de metáforas isoladas, mas sim que formam um sistema.
JLB
- Sim, formam um sistema. Talvez se poderia tentar formar um
sistema com palavras disparatadas? Eu não sei se seria possível
fazer um sistema com estrelas e com patos, por exemplo. É algo
difícil.
RC
- Mas
há uma constelação que se chama Cisne, já que não há patos.
JLB
- Aí está, poderíamos fundar uma tradição tomando quatro
palavras disparatadas e trataríamos logo de ser fiéis a elas.
RC
- Você
seria incapaz de ser fiel toda uma vida a quatro palavras
disparatadas. Seria necessário que estas fossem coerentes.
JLB
- De qualquer maneira, no que me concerne, não elegi essas
palavras. Elas me elegeram, e isso é diferente. Fui eleito pelos
labirintos, e pelas facas, e pelos espelhos…
RC
- Palavras
às quais não faltou lucidez.
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