1976
- Borges inédito… e profético
[depoimento]
Fomos
pedir-lhe um conto e um poema, inéditos, para a edição
ibero-americana de Cuestionario
(nome que não lhe agrada, porque sugere interrogação). Havia
entregue tudo quanto tinha para a imprensa, e disse: “Teria que
me por a fabricar algo”. Dissemos que não pretendíamos tanto
e, a partir dali, acaso movido por um injusto sentimento de culpa,
nos reteve, falando de sua recente viagem. Como testemunha,
assistia o gravador que levamos prevendo que Jorge Luis Borges
fizesse anotações sobre os textos que esperávamos receber;
anotações que reproduziríamos com lealdade da gravação, para
evitarmos a azarenta - e desrespeitosa - tarefa de fazê-lo falar
segundo nossa memória. E então Borges falou dos Estados Unidos;
foi pensando em voz alta, mostrando-se decepcionado, irônico, cético,
cáustico e, finalmente, profético. Em algum momento, imaginou um
mecanismo para recuperar dos linotipos um conto seu - que
publicaremos em edição ibero-americana -, mas, quando, mais
tarde, escutamos a fita, advertimos que o melhor inédito de
Borges era essa imprevista visão dos Estados Unidos. Esta é a
transcrição do que achamos mais significativo de sua fala;
transcrição que deve ser lida com a prevenção de que é apenas
isto - uma fala -, que inicialmente não tinha o destino de ser
publicada mas que sem dúvida alguma merece que a publiquemos.
***
Estive,
primeiro, em um simpósio, onde aconteceu algo curioso: pegaram um
conto meu e foram-no analisando por um procedimento que se chama
estruturalista, creio. E eu lhes disse: “Vejam, senhores, agradeço-lhes
muito, mas não percebo qual é a importância disto”. Porque
eles fazem uma análise com um procedimento, digamos, extraordinário.
É um jogo que fazem com muita paciência. Por exemplo, tenho um
conto que se chama El Congreso. É um congresso de todo o gênero humano. Na metade do
conto há um episódio amoroso. Há dois amantes. E isso, não
sei, talvez o tenha colocado para dar mais realidade ao
personagem. Para que simplesmente não faça parte de um
mecanismo. Bem, isto foi analisado assim: “O conto se chama El
Congreso; a união sexual foi chamada às vezes de congresso e
também consiste em reunião; temos ali um microcongresso dentro
do macrocongresso.” Bem, agora vamos supor que seja certo. O que
se ganha com isso? É totalmente absurdo. Não percebem que se uma
pessoa lê algo assim, priva-se de todo gozo estético. Tudo fica
reduzido a um tipo de planilha. Ou a um quadro sinóptico. E que
tudo isto se estude, se ensine… sobretudo nos Estados Unidos!
Realmente,
das universidades ali, não sei o que pensar. Tudo está baseado
na memória. Por exemplo, têm que estudar literatura
latino-americana. O professor lhes dá, digamos, a cada quinze
dias sete romances. Ou a cada sete dias quinze romances, não sei,
o que for. E têm que ler esses livros. Mas têm que lê-los para
sabê-los de memória. E nenhum romance foi escrito para esse fim.
Mas os alunos têm que responder, depois, por exemplo, se leram Don
Segundo Sombra, quando, em que ocasião Cáceres conhece o
velho tropeiro? Em uma taberna. Na taberna de quem? E tudo segue
assim. Então, eles vão lendo um livro e têm que aprender todos
os parentescos, as vicissitudes de cada personagem, dados que,
enfim… Ao final disso o que se consegue é que o livro aborreça
o homem. Porque é como se me dissessem: “Bem, vejamos,
conte-nos o que se passa na página 31 do livro El
Aleph”. Como sabê-lo!
Agora,
nos Estados Unidos há algo que me desagradou muito: parece que os
estudantes não leram nada em sua casa. Não há home
reading.
Eu
falava um dia com um estudante. Falávamos de Mark Twain, a quem
quero muito e parecia que ele também. Falávamos de Huckleberry
Finn e eu disse: “Bem, você recordará em Life
of the Mississipi” (tal coisa). “Não sei”, respondeu,
“o professor não me deu esse livro”. Havia lido unicamente os
livros que lhe dera o professor. E outra coisa incrível me
aconteceu. Creio que há um livro assaz conhecido, que se chama As
mil e uma noites. Esse livro se chama, nos países de língua
inglesa - bem, há traduções literais, claro, como A
thousand nights and a night -, mas sobretudo é conhecido como
The arabian nights. Então,
pergunto a um estudante: “Em The
arabian nights, você recordará…” “Não”, me diz,
“não fiz um curso de árabe”. Nem eu tampouco, claro! Meu
espanto não tinha solução. Deve ter acreditado que o livro
estava incluído no curso “Noites”. Porque tudo é assim.
Extraordinário.
Por
exemplo, na Universidade de Michigan - que é como se disséssemos
a Universidade de San Luis, ou a Universidade de Neuquén, se é
que existe -, há cursos de língua bantu. E só se estuda isso.
De maneira que o estudante de bantu não sabe nada do que não se
relacione com o bantu. E assim sucedem coisas incríveis.
Em
uma reunião me arrisquei a mencionar uma obra que eu acreditava
que, afinal, se podia mencionar. Falei de George Bernard Shaw. E
um estudante (não, eram graduados) me disse: “Quem é?” Não
tinham ouvido falar de Bernard Shaw. Não é incrível?
As
pessoas são extraordinariamente ignorantes. Não lêem nada em
suas casas. Lêem tão-somente o que têm que ler para passar numa
prova; o que os professores indicam. Porque, se não, estão
inteiramente dedicados aos shows de televisão, ao beisebol, ao
futebol… Têm informação aprendida, não mais… É
impressionante. E é muito triste. Porque esse país dispõe de
instrumentos extraordinários. E tudo isso vai agravando-se. Pelo
menos, em minhas outras viagens, não me pareceu tão grave.
Eu
estava em Lubbock, uma cidade à beira do deserto. Nossa
Biblioteca Nacional, aqui, tem 900.000 volumes. E é, talvez, a
maior Biblioteca Nacional de nossa América. E a Biblioteca de
Lubbock, uma cidade da qual a maioria dos americanos não ouviu
falar (e nem tem porque ouvir falar; é uma cidade bastante
recente e com o deserto do Texas ali, à beira), tem dois milhões
de livros.
Eu,
que tenho esse hobby da
literatura anglo-saxã, encontrei livros que não havia encontrado
em nenhuma parte. Me foram presenteados. Depois me disseram que
havia uma seção argentina e que pedisse uns livros. Então,
naturalmente, pedi livros fáceis. Pedi, por exemplo, o Facundo
de Sarmiento, o Fausto
de Estanislao del Campo, a Historia
Argentina de Vicente Fidel López, o Don
Segundo Sombra de Güiraldes.
E me disseram: “Não, peça algo mais difícil”. Bem,
disse-lhes, vou tirar a prova. Sugeri El
Imperio Jesuítico, de Lugones, do qual não temos exemplar na
Biblioteca Nacional. Então vem a bibliotecária. Uma jovem alta,
ruiva, texana. E me diz: “Quer a primeira ou a segunda edição?”
Tinham as duas, realmente. E estão todos ali. Possivelmente eu
fui a única pessoa que os pediu e que os pedirá.
Quer
dizer, uma pessoa, nos Estados Unidos, sem sair de sua cidade (e
essa cidade pode ser, bem, como Los Toldos), sem sair dali pode
estudar qualquer coisa. Pode dedicar-se a… não sei. A qualquer
época da literatura oriental, a qualquer época da literatura
européia… Pode estudar qualquer coisa. Têm todas as
possibilidades. Mas, em meio a tudo isto, um sistema educativo
absurdo que o desperdiça.
E
é assim em todas as partes, ali. Porque estive em todas as
partes. Dei cursos de literatura argentina - porque sempre, quando
estou fora, gosto de fazer algo pela pátria - na Michigan State
University. Depois, dei cinco conferências em inglês. Percorri
Wyoming, Wisconsin, Illinois, Iowa, Colorado, Utah, Texas, Califórnia
e, já pelo outro lado, New England, Georgia, Pennsylvania, West
Virginia, Washington… mais ou menos, todo o país.
A
incultura geral nota-se mais no meio oeste, no centro. Mas,
excetuando New England, na realidade, o resto do país é bastante
estéril. Como o Canadá é estéril. Digo, literariamente.
Mas
nos Estados Unidos há uma boa vontade, uma efusão, que não há
aqui. Por exemplo, estive em Mar del Plata, agora, por três ou
quatro dias. E a recepção, bem, teria sido um fracasso nos
Estados Unidos. Porque ali as pessoas - como tudo se faz de um
modo muito sonoro -, também quando um autor agrada ao público
este se põe de pé para aplaudi-lo. Aclamam-no.
Agora,
claro que eu… um velho, poeta, cego, sul-americano… fui com
todas as cartas certas. Ser velho, vê-se com simpatia. Ser poeta,
da mesma forma. Ser cego, converte-o em Homero ou Milton. E ser
sul-americano… vêem-no como se fosse da planície…
Receberam-me
com uma generosidade enorme. Claro que muitos estudantes haviam me
lido; naturalmente porque os professores haviam lhes indicado essa
leitura, porque se não… Bem, mas haviam me lido e não pensavam
conhecer-me nunca. E então, quando apareço ali e me vêem e vêem
que sou um homem de carne e osso que fala, digamos, um inglês
tolerável; e que faz brincadeiras, além do mais…
Os
espanhóis e os sul-americanos, em geral, são muito solenes. E
eu, não. Quando uma aula anda mal, quando vejo que uma conferência
não anda muito bem, faço uma brincadeira sobre mim mesmo. E então
todo mundo sorri. E tudo melhora. Porque as pessoas agradecem por
isso.
Mas
parece que os sul-americanos que vão ali são um pouco rígidos.
Cavalheiros, não? E eu não posso sê-lo, me sairia muito mal. De
qualquer maneira, é possível ser um cavalheiro cético e
sorridente. Não é imprescindível ser um cavalheiro altaneiro.
Mas
eles, os americanos, estão muito sozinhos. As pessoas estão
muito solitárias ali. Os pais não se entendem com os filhos. As
pessoas ocultam tudo isso sob uma falsa cordialidade; sob um
sistema de tapinhas no ombro e gritos, de Call
me Joe, old boy! Todos esses gestos de alegria que escondem
uma solidão central… Tampouco é certo que sejam bons vizinhos.
A vida ali é muito implacável, muito dura. Sim, as pessoas estão
muito sozinhas.
Aqui,
as pessoas estão menos solitárias. Mas creio que, de fato, o
mundo está optando ou pela Rússia ou pelos Estados Unidos. E a
Europa tem tudo, no entanto. Todos somos europeus desterrados,
voluntariamente ou não. Mas não somos americanos do norte nem
somos russos. Quando eu era criança era comum falar francês. E
agora ninguém mais fala. Nem sequer se fala inglês. Fala-se um
inglês-americano, que está reduzido a uns poucos monossílabos.
Duas
pessoas se encontram e dizem “Hi!” e isso já substitui toda a
saudação. E depois, uma pequena surpresa, mesclada com certo
pequeno agrado, tudo isso é: “Gee!” E o assombro se diz com
“gosh!”, uma degeneração de God.
Para todas as concordâncias basta um “OK”. E a máxima adoração,
a veneração extrema, se expressa com um “wow!”. E me parece
que é uma lástima. Porque esse foi o idioma de Shakespeare. E
ficou reduzido a interjeições. Isto se dá, claro, porque já não
se diz nada quando se fala. A idéia de expressar é uma idéia de
todo alheia.
Certa
vez, fui muito descortês, é certo, mas era irritante… Vem
uma jovem e me diz: “I just wanted to say hi to you”.
Bem, disse-lhe, se
lhe parece que esse epigrama merece ser repetido… Dizer hi
a alguém!
Talvez
convenha que se faça uma viagem à Rússia, para poder optar
pelos Estados Unidos. Bem, creio que a longo prazo eu opto… Pela
pátria há que optar, apesar de tudo! E depois, pela Europa.
Parece-me que é tão fácil optar pela Europa! Não requer o
menor esforço. Por qualquer país da Europa. Tantas coisas vêm
dali! Estamos falando em espanhol, não estamos falando em
araucano.
Fui
convidado para países socialistas. Mas não quis ir. Teria ido
com antipatia. Se visitamos um país com antipatia, nos dispomos a
achar tudo mal. E não quero isso. Convidaram-me duas vezes. Têm
sido amáveis. Mas lhes disse: “Minha viagem poderia ser incômoda
para mim e poderia ser incômoda para vocês também. E não seria
uma viagem proveitosa.”
Quando
viajo para os Estados Unidos, ao contrário, faço-o com muito boa
vontade. E com um grande amor pelo país. Por muito de seu
passado, onde estão Emerson e Frost. Penso em Melville, em
Thoreau, em Whitman. Bem, têm uma esplêndida tradição. Mas
tudo isso está perdido agora. Está se perdendo em um mundo
bastante implacável. Pensando bem: implacável e superficial.
Detalhes
como este mostram a falta de intimidade que tem o país:
aproxima-se de mim um senhor, um professor… um burguês. Bem, não
sei porque escolhi essa palavra. Vocês entendem o que quero
dizer. Me pediu: “Queria autografar um livro para mim?”. Mas
claro! “Por favor, outro for
my wife?” Claro, senhor. “E outro for
my girl friend?”
Que
indiscrição! Por que me fazia essa confidência? Uma pessoa a
quem acabava de conhecer. Porque, digamos, o fato de que tenha uma
amante só diz respeito a ele próprio, mas não tinha por que
confessar isso a uma pessoa que quase não existe em sua vida. E
além do mais, em um idioma tão tonto, tão néscio: my
girl friend; tudo assim, tão chato. Se ao menos tivesse me
dito my mistress, teria sido mais apaixonado. Mas era tudo tão insípido,
que não dava vontade de conhecer a girl
friend. Devia ser como ele. Tudo em meio à mesma
trivialidade: a informação da cor que tem seu carro, ou a marca.
Tanta frivolidade! Claro, então compreendi que não devia pensar:
por que esta confidência? Porque não havia nenhuma confidência.
Porque nada tem mais nenhuma importância ali.
Assisti
a uma reunião de autores de romances policiais da América.
Enumeraram os prêmios do ano. Havia, digamos, quinze prêmios.
Primeiro prêmio do ano para o melhor romance encadernado do ano;
terceiro prêmio para o melhor romance policial em rústica. Então
por que não em corpo doze ou em corpo catorze? Ou em pergaminho?
Dei meia volta e perguntei aos que me acompanhavam: : O que se
passa? Essa gente está louca? O que importa que um livro esteja
encadernado? Que critério literário é esse? “Não”, me
disseram, “é que nos livros encadernados a primeira edição dá
ao autor 25% e, ao contrário, na outra lhe cabe 40%”. Ah, disse
então, essas sim são razões literárias! E ao dar os prêmios,
dão o livro publicado e o nome dos editores também. Eu estava
falando com um autor, desde já um autor, digamos, de menor
quantia, e ele me contou como se fazia tudo aquilo. Por exemplo,
alguém escreve um romance e o submete a um editor. Se esse editor
o rejeita, submete-o a outro. Geralmente há uma mesa de leitores
que, suponhamos, aceita um livro. Então o livro vai ser
publicado. Mas antes vai para outra mesa. Porque o livro foi
aprovado em geral, mas agora se trata de pessoas que o lêem de
outra maneira. Agora há que proceder aos detalhes. Então começa:
“Aqui há uma personagem, digamos, que é negro. E você o faz
antipático. Isso pode afastar muitos leitores.” Então há que
despintar o negro, branqueá-lo. Porque se não o livro não será
publicado. Ou então: “Seu romance está bem, mas carece de
alguns elementos essenciais da literatura moderna, como o incesto
e o estupro. Em todo caso, se lhe resulta difícil intercalar
isto, por que não escreve duas páginas dedicadas ao onanismo?”
É incrível! E os autores se submetem a isso.
Disse:
“Mas não há uma sociedade de escritores aqui?” “Sim.”
“Bem, então por que você não lhe escreve e conta isso? Por
que não ridiculariza essa gente?” “Ah, mas isso já se sabe!
Todo mundo sabe! E o que eu ganharia? Ninguém publicaria meu
livro.”
E
parece que, tirando Faulkner,
tirando Hemingway, e alguns outros
escritores muito conhecidos, há muito todos se submetem a isto.
Modificam os argumentos, mutilam características. É incrível!
Sobretudo porque todo mundo sabe. Eu insistia: “Mas vocês têm
que protestar; ridicularizar os editores.” “Mas assim não
publicam o livro.” E vêem tudo como um negócio. E assim,
admitem.
E
aqui também vai passar. Porque nós não vamos influir neles. São
eles que influem em nós. De maneira que tudo o que digo agora é,
de algum modo, uma profecia.
Uma
profecia do que ocorrerá no ano que vem. O do que já está
ocorrendo.
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