1973
– Borges igual a si
mesmo
María
Esther Vázquez
•
Os primeiros anos
MEV
- Qual
foi seu primeiro contato com a literatura?
JLB
- Creio que minha primeira leitura foram os contos de Grimm em uma
versão inglesa. Recordo deste volume, mas é provável que tenham
sido outros, porque fui educado menos em colégios e universidades
do que na biblioteca de meu pai. Devo também recordar minha avó,
que era inglesa e sabia de memória a Bíblia, de maneira que
inclusive posso ter entrado na literatura pelo caminho do Espírito
Santo ou possivelmente através de versos ouvidos em minha casa.
Minha mãe sabia (e creio que ainda se lembra) de memória o Fausto,
de Estanislao del Campo.
MEV
- Em
que idade ocorreu este conhecimento de Grimm?
JLB
- Devia ser muito garoto. Lembro-me de uma época quando não
sabia ler nem escrever. Mas, como a memória, segundo o consenso
dos psicólogos - que são falíveis -, remonta até quatro anos e
sei que nessa idade eu sabia ler e escrever, não posso precisar
datas.
MEV
- Era
bilíngüe?
JLB
- Sim. Em casa se falava inglês, por causa de minha avó inglesa,
e espanhol, por conta de todo o resto da família. Eu sabia que
tinha que falar com minha avó materna, Leonor Acevedo Suárez, de
um modo; com minha avó paterna, Frances Haslam Arnett, de outro,
e que esses dois modos não se pareciam. Com o tempo descobri que
essas duas maneiras de falar de um neto chamavam-se a língua
castelhana e a língua inglesa. De igual modo, uma criança usa
verbos, conjuga-os, conhece os gêneros gramaticais, usa diversas
partes da oração e a gramática lhe é revelada muito depois; eu
lia nos dois idiomas, mas possivelmente mais em inglês, porque a
biblioteca de meu pai era inglesa. Recordo que em minha casa havia
uma edição de El Quijote,
da Casa Garnier. Depois o volume se perdeu no curso de nossas
viagens e, em 1927, conseguiu ter outro exemplar, por causa dessa
superstição que se tem de que a edição na qual se leu um livro
é a verdadeira, mesmo que não seja a primeira. Era um livro
encadernado, com letras de ouro, lâminas em aço: um lindo tomo
que conservo ainda, porque me parece que os demais Quixotes são
apócrifos. Quanto às minhas primeiras leituras, li várias obras
de uma coleção muito benemérita e bastante curiosa por seu
material: a Biblioteca de la Nación. Tinham umas encadernações estilo art
nouveau. O primeiro volume que publicaram foi, possivelmente, Historia
de San Martín, de Mitre; depois apareceram El Quijote e uma obra quase contemporânea: Los primeros hombres en la luna, de Wells.
Naquele
tempo não existiam os direitos de autor, o que contribuía para a
maior difusão dos escritores porque, ao aparecer um livro, logo
era traduzido, publicado e o autor não recebia um centavo. E às
vezes, para tornar melhor as coisas, se o livro tinha, por
exemplo, vinte capítulos, contratavam vinte tradutores. Cada um
traduzia seu capítulo (com o fim de publicar a obra com maior
rapidez), de maneira que o personagem que se chamava Guillermo em
um capítulo, chamava-se William ou Wilheim em outros. Essa
biblioteca publicou também obras de Quevedo; La bolsa, de Martel; Amalia,
de Mármol; Facundo, de
Sarmiento; El misterio del
cuarto amarillo e as novelas e contos policiais de Conan
Doyle, que então eram muito lidas e era um autor contemporâneo.
De qualquer maneira, recordo haver lido ainda criança, não sei
se em inglês ou se em espanhol, os contos de Poe, romances de
Dumas,
de Sir Walter Scott; María,
de Jorge Isaacs e obras clássicas espanholas.
•
Adolescência na Europa
MEV
- Todo
o seu bacharelato foi feito na Suíça?
JLB
- Sim, e isso foi vantajoso para mim, porque eu era um bom
latinista e cheguei a compor versos latinos com a ajuda de Gradus
ad Parnassum, de Guicherat. Eu tinha o esquema que marcava as
sílabas breves e as longas, mesmo que nunca tenha podido ler um
verso latino, porque não sabia acentuar as sílabas breves e
longas.
MEV
- Escandir?
JLB
- Sim, e ainda não o sei, mas podia fazê-lo com esse sistema mecânico.
Era como se escrevesse versos rimados e não ouvisse as rimas. Em
latim lia Sêneca e Tácito.
MEV
- Além
do mais, tenho entendido que fez provas em latim…
JLB
- Não, caramba! Está me confundindo com um bisavô inglês meu,
que tornou-se doutor em letras na Universidade de Heidelberg sem
saber uma palavra de alemão, fazendo todas as provas em latim.
Suspeito que agora os professores não poderiam tomar essas
provas, talvez aprovassem todos os alunos para não demonstrar sua
ignorância. Naquele tempo, a gente ainda falava em latim. O pai
de um amigo meu, Ibarra, fazia com que seu filho, durante o almoço,
falasse em latim.
MEV
- Mas
você comentou comigo que seus condiscípulos o livraram de fazer
prova de uma matéria que você não sabia.
JLB
- Não sei se se tratava de zoologia ou botânica, pois nunca me
interessaram. Eu havia dado todas as matérias e tinha que
aprender o idioma em que eram dadas, porque não sabia francês.
Minha mãe conhecia, mas em casa havia sobressaído o inglês,
porque naquela ocasião o inglês tinha um interesse que perdeu
agora, com sua vulgarização. Embora não saiba dizer se agora as
pessoas sabem realmente inglês… Voltando ao tema, eu havia
feito todas as provas e me haviam reprovado em uma matéria. Os
demais alunos pediram ao professor que levasse em conta que eu
havia tido que aprender não somente as matérias, mas também o
idioma. Então me passaram para o segundo ano.
MEV
- Que
idade tinha então?
JLB
- Doze ou treze anos. E quando quis lhes agradecer, pois eu havia
visto a carta assinada por eles, me disseram que não, que era uma
decisão tomada pelos professores, que eles não tinham nada com
isto. Fizeram-no para evitar a incomodidade da gratidão e
possivelmente, como os suíços são pessoas de poucas palavras,
para abreviar ou omitir o diálogo. Conservo lembranças muito
gratas da Suíça.
MEV
- Quantos
anos viveu ali?
JLB
- O que durou a primeira guerra européia. Lembro que a Suíça
mobilizou, em uma semana, uns 250.000 ou 300.000 homens para
defender a fronteira. Vi os soldados que iam aos quartéis
abotoando a jaqueta e com o rifle na mão, porque tinham o
uniforme e as armas em sua casa. O exército suíço contava com
apenas três coronéis, e decidiram nomear general a um deles,
durante o tempo que durasse a guerra. Um vizinho nosso, o coronel
Odeou, aceitou ser nomeado general, mas com a condição de que não
lhe aumentassem o salário.
•
A literatura alemã
MEV
- Naquela
época já lidava com o alemão?
JLB
- Não, este idioma só vim a estudá-lo no último ou penúltimo
ano da guerra, por vontade própria. Tinha 17 anos. O culto da
Alemanha se deve a Carlyle, e também ao desejo de ler O mundo como vontade e representação, de Schopenhauer, em seu
texto original. Como não se podia sair de noite, pois durante o
último ano a vigilância policial era muito severa devido à
espionagem, comprei o Livro
das canções, de Heine, e com a ajuda de um dicionário alemão-inglês
comecei a lê-lo em alemão. O vocabulário de Heine, em suas
obras iniciais, era deliberadamente simples; uma vez que conheci
as palavras Nachtigall, Herz,
Liebe, Nacht, Trauer,
Geliebte…
me dei conta de que podia prescindir do dicionário e segui lendo,
de maneira que cheguei por essa via a dominar a língua esplêndida
da música dos versos de Heine. E, ao final de poucos meses, pude
prescindir do dicionário.
MEV
- E
então leu Schopenhauer?
JLB
- Não imediatamente, porque cometi o erro das pessoas que estudam
alemão para ler filosofia e fui continuar com A crítica da razão pura, obra que não a entendem os próprios
alemães e que talvez tenha deixado perplexo o próprio Kant em
muitos casos… salvo que recordasse o que havia querido dizer…
Lembro que De Quincey dizia que os alemães consideravam uma frase
como um baú, um grande baú, que uma pessoa tem que levar para
uma longa viagem. Então, põe-se no baú ou na frase tudo o que
se pode, e então se ajusta com parênteses e com hífens e depois
surge uma espécie de monstro informe. Mas, felizmente, isso
corresponde à prosa de Kant e não à de outros autores alemães,
senão seriam ilegíveis. Li muito em alemão, sobretudo poesia
expressionista, porque durante a primeira guerra européia o
expressionismo alemão foi o mais importante de todos os
“ismos” daquela época, muito mais que o Imaginismo de Pound
ou que o Futurismo italiano ou o Cubismo francês ou o ulterior
Ultraísmo espanhol e hispano-americano. Foi o movimento mais
rico, porque não era somente técnico; aos expressionistas
interessava, além do mais, a fraternidade entre os homens, o
desaparecimento das fronteiras e da mística, a transmissão do
pensamento, toda essa magia que agora divulga a revista Planète;
duplas personalidades, quarta dimensão… O idioma alemão é
ideal para a poesia. Diria que é o mais belo, salvo o escandinavo
antigo, que agora me interessa muito. Mas o escandinavo antigo não
se desenvolveu como o alemão. Talvez o anglo-saxão tenha podido
desenvolver-se assim, mas a invasão normanda modificou o caráter
do idioma, ainda que tenha ficado essa capacidade para construir
palavras compostas. Com a diferença de que, em inglês, as
palavras compostas - embora seja possível construí-las e Joyce o
fez esplendidamente - sempre resultam um pouco artificiais. Ao
contrário, qualquer alemão pode cunhar uma palavra composta que
não tenha sido usada nunca e é uma palavra espontânea. Em inglês
resulta algo pedante e “literária” entre aspas, no mal
sentido da palavra. Muitos anos depois, em Buenos Aires, estudei
italiano, que não sei falar e não entendo quando o falam, mas
que sabia ler, quando tinha vista, da mesma maneira. Fiz isto
através da Divina comédia,
que comecei a ler em uma tradução bilíngüe e quando cheguei ao
Purgatório, quando me
despedi de Virgílio, me dei conta de que podia seguir lendo, e
mesmo que não entendesse cada palavra, entendia cada frase. Por
outro lado, os italianos têm edições de seus clássicos muito
superiores às de qualquer idioma. Tive oportunidade, como
professor de literatura inglesa, de manusear edições de
Shakespeare, por exemplo, e os comentários são pobres comparados
com os de Momigliano ou com os mais antigos de Scartazzini, de
Casini ou de Barbi, porque nas edições italianas da Comédia
encontra-se comentado cada verso e, nas últimas, não somente
comentado histórica e teologicamente, mas há ali também um
comentário literário. Na de Attilio Momigliano analisa-se o som
dos versos, as repetições de certas sílabas, a colocação dos
acentos. De maneira que se alguém não entende italiano (o que é
impressionante, porque afinal italiano e espanhol são dialetos do
latim), pode compreendê-lo através do comentário. Creio que é
o melhor modo de estudar um idioma: através dos textos. Spencer
dizia que a gramática é a última coisa que se devia ensinar,
porque é a filosofia do idioma, e uma criança não aprende sua língua
materna pela definição do adjetivo, do substantivo e do pronome,
como não aprendemos a respirar estudando gravuras de pulmão.
Cheguei a ler a obra de Dante, a de Ariosto, e depois a dos modernos.
MEV
- Quais?
JLB
- Croce,
Gentile
(que sempre me deu algum trabalho) e depois poetas como Ungaretti,
para citar um exemplo. Diria que, em geral - e aqui estou falando
contra meus próprios interesses -, tratando-se de idiomas afins,
os textos não deveriam ser traduzidos. Por exemplo, não sei
português e li Eça de Queirós.
Quando não entendia uma frase a lia em voz alta e o som me
revelava seu sentido.
MEV
- Mas
nem todo mundo tem essa aptidão…
JLB
- De Quincey dizia, exageradamente, que como todos conhecem a Bíblia,
sobretudo em um país protestante, a melhor maneira de estudar um
idioma é através deste livro. Ele fez uma viagem de diligência
- seriam muito lentas as diligências - de Londres a Edimburgo
levando uma Bíblia sueca e, ao chegar à cidade escocesa, já
tinha um bom conhecimento do idioma sueco. Mas suponho que isso se
devia mais ao abuso do ópio do que a uma lembrança real… Claro
que para um homem extraordinário, mas, contudo, me parece…
MEV
- Há pouco li La monja
alférez…
JLB
- Ah! Impressionante! Ali se fala de Tucamán.
MEV
- E,
além do mais, converteu em heroína uma espécie de machão.
JLB
- É que ele tomava os fatos históricos como ponto de partida. Não
era realmente um historiador. Sonhava com todas as coisas.
Suspeito que se documentava pouco; tem uma página esplêndida
sobre os tártaros da Sibéria. Parece que isso está baseado em
uma versão alemã de um texto russo de dez linhas, onde não se
diz tudo o que De Quincey disse em setenta esplêndidas páginas,
em que torna a recriar tudo. É melhor ter memória inventiva. Os
historiadores não têm nem uma coisa nem outra: o que têm são
papéis.
MEV
- Fichas.
Bem, ou se é historiador ou se faz uma obra de criação.
JLB
- Eu, precisamente, estou fazendo um prólogo para Facundo
e digo que Facundo é realmente um personagem criado ou sonhado
por Sarmiento. Por isso, depois de ler Facundo,
as outras biografias de Quiroga, sem dúvida mais autênticas e
feitas por outros historiadores, não interessam. Sem dúvida, que
importância pode ter o Hamlet de Saxo Grammaticus se comparado
com o de Shakespeare? Possivelmente os dois sejam irreais, salvo
que um é irreal de um modo mais vívido e mais complexo.
MEV
- Com
que idade você retornou a Buenos Aires?
JLB
- Tinha ao redor de vinte ou 21 anos. Antes estive três anos na
Espanha; fui depois a Portugal e um de meus propósitos era
encontrar meus parentes. Então buscamos a lista telefônica e
havia tantos Borges que era como se não houvesse nenhum. Tinha
cinco páginas de parentes. O infinito e o zero se parecem. Não
podia chamar cinco páginas de pessoas e perguntar: “Diga-me, em
sua família houve um capitão chamado Borges de Ramallo que
embarcou para o Brasil no final do século XVIII ou início do
XIX?…” Contudo, descobri com tristeza que um inimigo de Camões
se chamava Borges e que tiveram um duelo.
MEV
- Esperemos
que não tenha sido parente seu…
JLB
- Farei o possível para que não seja, já que é tão fácil
modificar o passado.
MEV
- Como
vê agora, em 1973, o Borges que tinha vinte anos na Espanha?
JLB
- Eu admirava Rafael Cansinos-Asséns, que é um escritor espanhol
quase totalmente esquecido. E tinha, como agora, um grande fervor
literário e uma crença na metáfora que já não tenho. Não sei
porque me havia ocorrido (antes já havia sucedido a Lugones) que
a metáfora é o elemento essencial da poesia. Em boa lógica,
bastaria um só verso bom sem metáfora - e é fácil encontrá-lo
-, fora das metáforas inevitáveis que formam o idioma, para
provar que essa teoria é falsa. Além do mais, temos o exemplo da
poesia popular de todos os países, onde quase não há metáforas.
Como elemento essencial da poesia, é algo que se dá perdidamente
e em literaturas cultas. Certamente, a poesia não começa com a
metáfora e até suspeito que entre os povos primitivos não se vê
a diferença entre o sentido literal e o sentido figurado. Certa
vez escrevi que quando se pensava que Thor era o deus do trovão,
a idéia era já bastante complicada. Possivelmente Thor era
estrondo e divindade, e nem distinguiram bem uma coisa da outra.
Imagino que os povos primitivos são como as crianças e
possivelmente não diferenciam bem entre o sonho e a vigília. Um
sobrinho meu (é achaque de gente velha pensar nos sobrinhos) me
contou que havia sonhado há muitos anos que ia por um bosque, que
se perdia e finalmente chegava a uma casa branca de madeira, cuja
porta se abria e por ela saía eu. Então, o menino me perguntou:
“Me diz, o que fazias ali, nessa casa?” Nota-se que não
distinguia a realidade dos sonhos.
•
Exame da obra
MEV
- Qual de seus três
primeiros livros - Fervor de Buenos Aires, Cuaderno San Martín e Luna
de enfrente
- lhe trouxe maiores satisfações?
JLB
- O primeiro: Fervor de
Buenos Aires, porque ainda me reconheço nele, mesmo que seja
entre linhas. Ao contrário, os outros dois livros os vejo agora
como alheios, exceto em algumas composições de Cuaderno
San Martín, como “La noche que en el Sur lo velaron”, um
poema que eu assinaria agora com alguma ligeira modificação ou
atenuação. Ao contrário, Luna
de enfrente foi um livro escrito apenas para que se escrevesse
um livro, o que é o pior motivo. Os livros devem se escrever
sozinhos, através do autor ou apesar dele. Mas ocorreu que Evar
Mendez me disse que ela queria publicar um livro meu, que conhecia
um impressor chamado Piatanida, que ia ser um livro muito lindo e
tinha que estar de acordo com essa teoria de que a essência da
poesia é a metáfora etc. Escrevi esse livro e inclusive cometi
um erro capital, que foi o de “fazer-me” o argentino, e sendo
argentino não tinha por que disfarçar-me. Naquele livro me
disfarcei de argentino do mesmo modo que em Inquisiciones
me disfarcei de grande escritor clássico espanhol latinizante, do
século XVII, e ambas imposturas fracassaram. De maneira que
desses três livros só há um que eu vejo ainda com carinho,
mesmo que o tenha modificado muito, não acrescentando coisas, mas
sim dizendo de um modo mais ou menos eficaz o que minha incompetência
literária havia impedido de dizer na primeira edição. Ou seja,
restituindo o livro ao que ele estava tratando de ser.
MEV
- Que
pensa de seus livros posteriores?
JLB
- Meus amigos me dizem que meus contos são muito superiores às
minhas poesias, que sou um intruso na poesia e que não deveria
escrever versos, mas me agradam os versos que escrevo. Há dois
livros que me granjearam alguma fama: Ficciones
e El Aleph. Ou seja, os
livros de contos fantásticos; mas agora não escreveria contos
desse tipo. Me parece que não estão mal, mas é um gênero que
me interessa pouco agora (ou do qual me sinto incapaz e por isso
digo que me interessa pouco). Gosto mais de El
informe de Brodie e talvez o livro que estou escrevendo agora
e cujo título ainda não me foi revelado, mas ninguém
compartilha minhas opiniões. Além do mais, tive a desgraça de
escrever um conto totalmente falso: “Hombre de la esquina
rosada”. No prólogo de Historia
universal de la infamia adverti que era deliberadamente falso.
Eu sabia que o conto era impossível, mais fantástico do que
qualquer conto voluntariamente fantástico meu, e no entanto devo
a pouca fama que tenho a esse conto.
MEV
- Parece
um exagero dizer isto.
JLB
- E mesmo que depois tenha escrito outro conto, “Historia de
Rosendo Juárez”, como uma espécie de palinódia ou de
contraveneno, não foi levado a sério por ninguém. Não sei se o
leram, ou simularam havê-lo lido, ou se o tomaram por um mal
momento meu. O fato é que eu quis mencionar a mesma história tal
como podia ter ocorrido, tal como eu sabia que podia ter ocorrido
quando escrevi “Hombre de la esquina rosada” em 1930, em
Adrogué. A cena da provocação é falsa; o fato de que o
interlocutor oculte sua identidade de matador até o final do
conto é falso e não está justificado por nada; a linguagem é,
de tão criolla,
caricatural. Talvez haja uma necessidade do falso que foi
encontrada nesse conto. Além do mais, o relato prestava-se às
vaidades nacionalistas, à idéia de que éramos muito valentes ou
de que o havíamos sido; talvez por isto tenha agradado. Quando
tive que ler as provas para uma reedição o fiz bastante
envergonhado e tratei de atenuar as “criolladas” demasiado
evidentes ou, o que é o mesmo, demasiado falsas. O curioso é que
as pessoas que admiram este conto o chamam de “Hombre de la Casa
Rosada” e supõem que me refiro ao presidente da República.
MEV
- E Ficciones?
JLB
- Não recordo bem os contos, porque confundo facilmente Ficciones
e El Aleph, mas suponho
que não está mal. “El Aleph” é um conto que me agrada.
Lembro que minha família havia ido para Montevidéu; eu estava
sozinho em Buenos Aires e o escrevia rindo-me, porque me causava
muito riso. E depois houve outro conto, que se chama “Las ruinas
circulares”, com o qual me ocorreu algo que não me havia
sucedido nunca. Ocorreu, por uma única vez na vida, e é que
durante a semana que levei para escrevê-lo (o que em meu caso não
significa morosidade e sim rapidez) eu estava como que arrebatado
por esse idéia do sonhador sonhado. Ou seja, eu executava mal
minhas modestas funções em uma biblioteca do bairro de Almagro;
via meus amigos, jantei uma sexta com Haydée Lange, ia ao cinema,
levava minha vida corrente e ao mesmo tempo sentia que tudo era
falso, que o realmente verdadeiro era o conto que estava
imaginando e escrevendo, de maneira que se posso falar da palavra
inspiração o faço referindo-me àquela semana, porque nunca me
sucedeu algo igual com nada.
MEV
- Nem
com a poesia?
JLB
- Não, com a poesia é distinto. Por exemplo, as milongas se
escreveram sozinhas. Percorri os corredores da Biblioteca
Nacional, caminhei pelas ruas do bairro sul, que tanto quero; pelo
norte e pelo centro, e de imediato sinto que algo estava por
ocorrer. Então tratei de aguçar o ouvido, tratei de não
intervir e logo compreendi que o que estava ocorrendo era uma
milonga. E as milongas se compuseram sozinhas e creio que não
tive necessidade de escrevê-las; devo ter mudado uma ou duas
palavras, não mais. Tudo isto saiu de um velho fundo criollo
que tenho e não significou nenhum esforço para mim. Ao mesmo
tempo, não pude comprometer-me a escrever um livro de milongas
porque isso depende de que esses momentos, essas visitas do Espírito
Santo, ainda que pareça vaidoso e é vaidoso, ocorram. Ao contrário,
por exemplo, um soneto é distinto, mesmo no caso das rimas. Temos
que eleger uma rima, pensar que as palavras que rimam não são
totalmente distintas; eu diria que há rimas naturais e rimas
artificiais. Reflejo e espejo são naturais, porque se referem a idéias afins; turbio
e suburbio, também. Ao contrário, neste exemplo de Lugones: “En
inmensas dosis / de apoteosis” não sei se a palavra dosis está buscando a palavra apoteosis.
MEV
- De
modo algum.
JLB
- Desde já, creio que não; claro que o fez de propósito. Quero
dizer que no caso das sextinas, como na “Milonga de los
hermanos”, tudo isso nasceu sozinho, encontrei as rimas necessárias
ou elas me encontraram. Mas um livro meu que me agrada, ainda que
não sei se dele gostam os leitores, é El
Congreso, porque é um livro que levei comigo sem animar-me a
tentar sua escritura durante muitos anos e sempre pensava nele, até
que me disse: “Bom, já encontrei minha voz, minha voz escrita.
Quero dizer que não posso fazer as coisas nem muito melhor nem
muito pior; vou simplesmente escrevê-lo”, e o escrevi.
MEV
- A
metafísica e a cosmogonia religiosa trataram de reduzir o mundo a
símbolos ou a idéias primárias. O que significa o conto do
congresso inútil (a impossibilidade de reduzir a pluralidade da
experiência a poucas representações ideais) a respeito da metafísica
tradicional?
JLB
- A resposta é simples ou relativamente simples. Os membros de El
Congreso querem essencialmente reduzir o mundo a uns poucos símbolos,
fracassam, como sempre fracassaram em semelhantes casos, e a
originalidade de minha fábula reside em que para eles esse
fracasso, essa aceitação da pluralidade, da multiplicidade
irredutível do mundo, é tomada, não como um fracasso mas sim
como um êxito. Naturalmente não sei se essa experiência mística
é possível, mas, em todo caso, se não é possível para as
consciências humanas, foi possível para minha imaginação
durante o tempo em que escrevi a história. O congresso vai
crescendo, o congresso abarca o universo ou, como diria William
James, o pluriverso,
abarca a pluralidade das coisas, mas eles não vêem uma derrota
nisto e sim uma espécie de vitória. Eu, pessoalmente, não tive
essa experiência, mas, para os propósitos de minha fábula,
creio que podemos imaginar um grupo de indivíduos ou, melhor
dizendo, um só indivíduo (porque quem tem a experiência é o
fazendeiro, que é um homem de forte personalidade), ele infunde
essa fé nos outros, pelo menos durante o decurso da última
noite, em que percorrem toda a cidade, a cidade que não mudou,
mas na qual eles vêem a execução de seu plano impossível.
Agora, eu queria repetir que não professo nenhum sistema filosófico,
salvo, aqui poderia coincidir com Chesterton, o sistema da
perplexidade. Sinto-me perplexo diante das coisas e nesse conto
quis reduzir essa perplexidade a um tipo de ato de fé. Quanto ao
budismo tantra, estudei o budismo, conheço-o, creio que é um
tipo de budismo mágico (lembro as gravuras de algum livro em que
estão registrados esses símbolos que reproduziu Jung em outro
livro), mas, ao escrever o conto, não tive presente nada disso.
Pensei simplesmente nessa história, nas pessoas que planejam algo
tão vasto que finalmente se confunde com o universo mas que não
vêem isso como uma derrota, à maneira dos personagens de Kafka,
e sim como uma vitória, como uma misteriosa vitória. Isto é
tudo o que posso dizer. Mas é um livro que não agrada aos meus
amigos.
MEV
- Por
que pensa isso?
JLB
- Porque meus amigos dizem que tudo o que digo ali disse melhor em
livros anteriores e que o único valor que tem é o de ser uma espécie
de resumo de minha opera
omnia. Por exemplo, Néstor Ibarra, um amigo em cuja opinião
confio muito, me disse que era um livro inútil porque já estava
incluído virtualmente nos anteriores. Mas creio que não, porque
há ali uma descrição de uma experiência mística, que eu não
tive mas que tratei de imaginar: a idéia dessas pessoas que
empreendem um trabalho tão infinito que coincidem com o universo
e que não sentem isso, como ocorreria em um texto de Kafka, como
uma defraudação, mas sim que, ao contrário, se sentem
satisfeitas. Essa obra que elas querem fazer já está feita não
sei se pela Divindade ou pelo processo cósmico, mas já está, e
se sentem felizes. Creio que essa parte está bastante bem
colocada: esse último passo que fazem percorrendo a cidade e essa
posterior resolução de não se verem mais porque não vão
recuperar a exaltação desse momento. Pessoalmente, me emocionei
quando o escrevi e também gostei dos personagens e os senti como
reais. Mas, um escritor pode enganar-se tanto! Por exemplo, notei
no caso dos nomes das ruas. Nesse livro são nomeados quase
exclusivamente, fora do paredão da Recoleta, lugares do sul e o
sul me emociona muito. Uma prova que se poderia fazer é escrever
um conto com nomes de lugares e depois substituir esses lugares
por outros que nada significam para quem escreveu. Por exemplo,
trasladar meus contos de Palermo para o baixio de Flores, para ver
se me seguem parecendo bons, mas não me animo a fazer isso. Nem
mesmo os contos de Adrogué
ou de Temperley. Me parece que se os situasse em San Isidro ou em Martínez,
daria conta de que não valem nada. Afinal de contas, o prestígio
das palavras é importante: por que não o prestígio dos nomes próprios?
MEV
- Mas
esses contos traduzidos têm êxito e aqueles que os lêem não
conhecem nenhum desses lugares.
JLB
- É certo. Isso quer dizer que as pessoas se equivocam
facilmente, ou que são generosas.
MEV
- Ou
que se pode prescindir dos lugares geográficos, porque o ímpeto
está posto na prosa ou na poesia, que é o permanente.
JLB
- Lembro que lendo um conto muito bom de Peyrou,
que se chama “La noche repetida”, me deparei com uma frase que
encheu meus olhos de lágrimas. Dizia: “Essa manobra de florida
criadora de frangos que sabia esperar-me em uma esquina da rua
Nicarágua”. E pensei: sou um tonto, porque a rua Nicarágua
significa algo para mim, mas não tem que significar nada para as
pessoas que vivem em outro bairro.
MEV
- Isso
quer dizer que você é sentimental.
JLB
- Sim, caramba!
MEV
- Por
que essa necessidade de escrever todos os dias, nem que seja uma
linha?
JLB
- É para sentir-me justificado e porque temo que se não dito
algo, vou esquecê-lo. Além do mais, de noite penso: escrevi tal
coisa, adiantei meu trabalho, e isso me tranqüiliza.
MEV
- Desde
criança intuiu que ia ser escritor?
JLB
- Antes de haver escrito uma única linha. Mas isso se devia um
pouco a uma convenção tácita que havia em minha família,
porque meu pai quis ser escritor e não pôde. Deixou alguns
sonetos, um romance, muitos trabalhos que destruiu. Então se
entendia, de um modo tácito, que é o modo mais eficaz para que
se entenda uma coisa, que eu ia cumprir esse destino que havia
sido negado a meu pai. Disso soube desde criança.
MEV
- E
se houvesse sido matemático?
JLB
- As matemáticas me interessam. Me interessa a obra de Bertrand
Russel e o que pude ver do matemático alemão Georg Cantor. Li
muitos livros com total incredulidade sobre a quarta dimensão.
Mas não me vejo como matemático, porque não tenho nenhuma
faculdade para isto. Entendo que o xadrez é uma ocupação muito
nobre e que de todos os jogos que conheço é infinitamente
superior, mas ao mesmo tempo sou um dos enxadristas mais medíocres
que existem.
•
Os temas borgianos
MEV
- Quando,
onde e por que aparece como tema o labirinto?
JLB
- Recordo um livro com uma gravura em aço das sete maravilhas do
mundo; entre elas estava o labirinto de Creta. Um edifício
parecido com uma praça de touros com umas janelas muito exíguas,
umas gretas. Desde criança, pensava que se examinasse bem esse
desenho, ajudado por uma lupa, poderia chegar a ver o Minotauro.
Além do mais, o labirinto é um símbolo evidente de
perplexidade, e a perplexidade, o assombro do qual surge a metafísica,
segundo Aristóteles,
tem sido uma das emoções mais comuns de minha vida, como o foi
de Chesterton, que disse: tudo passa, mas sempre nos resta o
assombro, sobretudo o assombro diante do cotidiano. Para expressar
essa perplexidade, que me acompanhou ao longo da vida e que faz
com que muitos de meus próprios atos me sejam inexplicáveis,
elegi o símbolo do labirinto, ou, melhor dizendo, o labirinto me
foi imposto, porque a idéia de um edifício construído para que
alguém se perca é o símbolo inevitável da perplexidade.
Ensaiei distintas variações sobre esse tema, que me levaram ao
Minotauro e a contos como “La casa de Asterión”. Astérion é
um dos nomes do Minotauro. Portanto, o tema do labirinto
encontra-se de um modo muito notório em “La muerte y la brújula”,
em diversos poemas de meus últimos livros e em um que vou
publicar há também um poema breve sobre o Minotauro.
MEV
- E
os espelhos?
JLB
- Os espelhos correspondem ao fato de que em casa tínhamos um
grande roupeiro de três partes, estilo hamburguês. Esses
roupeiros de mogno, que eram comuns nas casas criollas
de então… Eu me encostava e me via triplicado nesse espelho e
sentia o temor de que essas imagens não correspondiam exatamente
a mim e do terrível que seria ver-me distinto em alguma delas.
Isso se uniu a um poema que li sobre o Profeta Velado de Jorasán,
o homem que oculta seu rosto porque é leproso, e ao Homem
da máscara de ferro, de um romance de Dumas. As duas idéias
se uniram: a de uma possível mudança no espelho. E também,
claro, porque o espelho está unido à idéia escocesa do Fetch
(que se chama assim porque vem buscar os homens para levá-los
para o outro mundo), à idéia alemã do Doppelgänger,
o duplo que caminha ao nosso lado e que vem a ser a idéia de
Jekyll e Hyde e de tantas outras ficções. Pois bem, eu sentia o
horror dos espelhos e tenho um poema em que falo desse horror e
que o ligo à sentença pitagórica de que um amigo é um outro
eu. Pensei que a ele possivelmente ocorreu a idéia de outro eu
vendo seu reflexo em um espelho ou na água. Quando eu era criança
nunca me atrevi a dizer a meus pais que me deixassem em um quarto
totalmente escuro para não ter essa inquietude. Antes de dormir
eu abria repetidamente os olhos para ver se as imagens nos três
espelhos seguiam sendo fiéis ao que eu acreditava ser minha
imagem ou se haviam começado a modificar-se rapidamente e de um
modo alarmante. A isso acrescentou-se a idéia da pluralidade do
eu, de que o eu é mutante, de que somos o mesmo e somos outros;
tenho aplicado isso muitas vezes. E em um livro que aparecerá no
próximo ano há um conto intitulado “El outro”, onde ensaio
uma variação desse tema, já tratado por tantos autores, por
Poe, Dostoiévski, Hoffmann,
Stevenson.
MEV
- A
repetição dos ciclos, todo esse mundo que volta-se sobre si
mesmo, de onde provém?
JLB
- Meu pai foi o primeiro que me falou disso. Creio que ele o havia
lido nos Diálogos sobre a
religião natural, do filósofo francês Hume, do século
XVIII. E a idéia é que se o mundo consta de um número limitado
de elementos e se o tempo é infinito e cada momento depende do
momento anterior, basta com que se repita um momento no processo cósmico
para que se repitam os seguintes e então teríamos, como
acreditavam os pitagóricos e os estóicos, uma história
universal cíclica. Diz-se que isso procede da Índia, mas nas
cosmogonias hindus, no budismo, por exemplo, os ciclos se repetem,
mas não são idênticos: ou seja, uma pessoa não vive sua própria
vida um número indefinido ou infinito de vezes, mas cada ciclo
influi no subsequente e assim podemos descer para animais,
plantas, demônios, fantasmas, ou podemos voltar a ser outra vez
homens e eventualmente podemos perder nossa identidade. Isso seria
o Nirvana e seria a maior felicidade, cair na roda da vida e nos
vermos livres da vida. Essa idéia me impressionou muitíssimo e
logo a aproveitei muitas vezes. Pessoalmente, descreio dela. Não
somente descreio, mas, como disse em um artigo intitulado “La
doctrina de los ciclos”, se esta é a milésima vez que mantemos
esta conversa é, na realidade, a primeira, porque não recordo as
anteriores. Um
argumento que se costuma empregar a favor dessa idéia, sobre o
qual tem um poema o poeta Dante Gabriel Rossetti (“I have been
here before, / But when or how I cannot tell: / I know the grass
beyound the door, / The sweet keen smell, / The sighing sounds,
the lights around the shore. /… You
have been mine before…”), é que se eu creio haver vivido já
este momento, isso introduz uma modificação, porque supondo que
esta seja a segunda vez que mantenho esta conversa e penso: “Já
falei sobre isto com María Esther Vázquez e lhe disse as mesmas
coisas nesta mesma sala da mesma Biblioteca Nacional”, então
isto não teria ocorrido a primeira vez, então os ciclos não
seriam idênticos. O fato de recordar um ciclo anterior seria, na
realidade, um argumento contra a doutrina dos ciclos. Além do
mais, se supomos uma sucessão indefinida ou infinita de vidas,
cada vez recordaremos melhor as coisas e isso nos permitirá
modificar talvez nossa conduta, e então cairia por terra a
teoria.
MEV
- Falemos
do tema dos tigres.
JLB
- Esse tema eu o expliquei em um poema intitulado “El oro de los
tigres”. Vivíamos próximo do Jardim Zoológico; eu o visitava
com freqüência, mas os animais que realmente me impressionavam,
quando criança, além do bisonte, eram os tigres. Sobretudo o
grande tigre real de Bengala. Passava horas olhando-o. Me
impressionava o pelo de ouro e, claro, as listras. Também me
impressionavam os leopardos, os jaguares, as panteras, animais
afins. Nesse poema digo que realmente a primeira cor que vi, não
fisicamente mas sim emocionalmente, foi o amarelo do tigre, e
agora que estou quase cego a única cor que vejo sem lugar para
erro é o amarelo. Assim, o amarelo corresponde ao princípio e ao
fim de minha vida. Por isso, e não por razões decorativas de
tipo modernista, intitulei o livro de El
oro de los tigres. Além do mais, no tigre há a idéia de
poderio e de beleza. Lembro que uma vez minha irmã me fez esta
observação curiosa: “Os tigres foram feitos para o amor”.
Isto me lembra um verso de Cansinos-Asséns onde diz a uma mulher
uma frase: “Yo seré como un tigre de ternura”.
Encontrei uma frase parecida em Chesterton, referindo-se ao tigre
do poema de William Blake, que é um poema sobre a
origem do mal (porque Deus, que fez o cordeiro, também criou o
tigre que o devora) e diz: “O tigre é um símbolo de terrível
elegância”. Aí estão unidas a idéia da beleza e da crueldade
que são atribuídas aos tigres. Possivelmente não são mais cruéis
que outros animais. Da mesma forma, atribui-se astúcia à raposa,
majestade ao leão; são convenções das fábulas, possivelmente,
convenções esópicas.
MEV
- E
a seita da faca e da coragem, ou seja, tudo o que isso implica?
JLB
- Eu localizaria duas raízes: uma, no fato de que muitos de meus
antepassados foram militares e alguns morreram em batalhas e,
portanto, que esse destino me foi negado. A outra é encontrar
essa condição da coragem em gente pobre, nos compadres
dos subúrbios, que, se tinham uma religião, era essa: a de que
um homem não deve ser frouxo. Além do mais, no caso do compadre,
essa coragem era desinteressada, porque, à diferença do que
ocorre com os gângsters ou os criminosos em geral, essa gente é violenta por
avidez, ou movida por razões políticas. E depois, em uma saga
escandinava, encontrei uma frase que corresponde exatamente a essa
idéia. Trata-se de uns vikings
que se encontram com outros e perguntam se crêem em Odin ou no
Cristo branco e um responde: “Cremos em nossa coragem”.
Corresponde à ética dos valentões.
MEV
- Outro
tema importante seria a cidade de Buenos Aires.
JLB
- Quanto a Buenos Aires, todos já terão notado que não se trata
da Buenos Aires atual e sim da Buenos Aires de minha infância e a
anterior à minha infância. Nasci em 1899 e geralmente minha
Buenos Aires é um pouco vaga e se situa ao redor dos anos 90. Faço
isso primeiro por aquilo de que “qualquer tempo passado foi
melhor” e depois porque acredito que é um erro fazer literatura
estritamente contemporânea; pelo menos, esse conceito é contrário
a toda a tradição. Homero escreveu não sei quantos séculos
depois da guerra de Tróia. Além do mais, há uma desvantagem de
ordem prática; se escrevo sobre um fato contemporâneo converto o
leitor em um tipo de espião porque estará buscando erros. Ao
contrário, se digo que tais fatos ocorreram em Turdera ou nas
margens de Palermo há mil e oitocentos e noventa e tantos, ninguém
pode saber exatamente como se falava nesses subúrbios ou como
eram, e isso dá uma maior liberdade e impunidade ao escritor. E
como a memória é seletiva (segundo disse Bergson),
parece que se pode trabalhar melhor com memórias do que com o
presente, que nos está oprimindo e molestando. Além do mais, se
escrevemos sobre o presente, corremos o risco de parecer menos
escritores do que jornalistas.
MEV
- Falta
o tema da espada…
JLB
- Esse tema vincula-se com o da coragem e se origina em duas
espadas que haviam na casa de meu avô Borges. Uma delas era do
general Mansilla. Ambos eram amigos e antes de suas batalhas, na
guerra do Paraguai, com um gesto romântico plagiado de algum
romance francês, os dois trocavam espadas na véspera da batalha.
Uma delas está no museu histórico do Parque Lezama. E logo, da
espada do soldado passei à faca do valentão (isto me faz
recordar dois versos de um poema de Lugones: “Com el patriótico
sable / ya rebajado a cuchillo…”). A espada é o signo da
coragem, mais do que outras armas. As armas de fogo não pressupõem
valentia, e sim pontaria. Milton, no Paraíso
perdido, atribui a invenção da artilharia ao demônio.
•
Política, honras e afeições
MEV
- Em
uma entrevista anterior, você me disse que se considerava
anarquista. O que entende por anarquismo?
JLB
- Queria que houvesse um mínimo de governo, que não se notasse,
que não influísse. Trata-se de um anarquismo à Spencer.
MEV
- Seu
pai era anarquista?
JLB
- Sim. Ele me disse que eu me fixasse nas bandeiras, nas
fronteiras, nas distintas cores dos distintos países nos mapas,
nos uniformes, nas igrejas, porque tudo isso iria desaparecer
quando o planeta fosse um e houvesse apenas governo municipal ou
policial, ou talvez nenhum, se as pessoas fossem suficientemente
civilizadas. Ele acreditava que essa utopia estava nos esperando;
agora não se nota nenhum sintoma, mas talvez a longo prazo tenha
razão. No momento, os países tendem a agigantar-se. Talvez
quando todo o mundo for Rússia ou China ou Estados Unidos não
haverá mais necessidade de passaportes. Hoje a burocracia
importuna bastante. Esta manhã tive que assinar para o ministério
uns papéis em seis vias. Isso é para dar trabalho à enorme
quantidade de funcionários públicos que possuem. Neste país,
dentro de pouco não vai mais haver funcionários públicos, começando
pelo exército. Um varredor é um funcionário público; o
presidente é um funcionário público. Todos são funcionários públicos.
MEV
- O
diretor da Biblioteca Nacional também é funcionário público.
JLB
- Eu também sou funcionário público, claro.
MEV
- Que
coisas lhe interessam mais neste momento na vida, no mundo?
JLB
- Interessaria encontrar um tipo de serenidade que não tenho. E,
atualmente, interessa-me a condição da pátria, que é muito
importante. Também me preocupa a saúde de minha mãe. Além do
mais, mesmo na idade de 73 anos, vive-se esperando outra pessoa,
mesmo nessa idade em que se sabe que essa esperança é ridícula
e que não poderá acontecer. Mas quanto ao fato de ser conhecido
ou desconhecido, isso não me interessou nunca: as duas coisas se
parecem tanto! No entanto, entendo (tenho amigos que são
escritores franca e incuravelmente fracassados), entendo que se
sintam desventurados por isto. Já disse Schopenhauer que o que
temos pode nos fazer felizes, mas o que nos falta nos torna
certamente desventurados. O caso da saúde, por exemplo; ou o caso
dos órgãos do corpo: sentimos quando doem. Creio que com a
fortuna ocorre o mesmo; as pessoas ricas sentem-se naturalmente
felizes e até podem pensar que o dinheiro não importa, mas se
lhes falta, notam que é muito importante. Como naquela piada de
Macedonio Fernández, que disse: “Que impressionante! Não me
havia interessado nunca a respiração, mas quando estive na praia
de Capurro, em Montevidéu, e me cobriu uma onda, de imediato me
senti muito interessado nela. E o interesse - dizia - desapareceu,
o que é mais impressionante ainda, quando me encontrei a
salvo.” Intensamente interessado na respiração, e antes
jamais! Também Bernard Shaw disse que toda pessoa que sofre de
dor de dente comete o erro de pensar que os que não têm dor de
dentes são felizes. O não ser querido, o estar doente, são
outras formas de dor de dente.
MEV
- Claro.
E quanto aos prêmios que obteve?
JLB
- Houve um que me deu muita alegria, que foi o segundo prêmio
municipal de prosa que me deram em 1928 ou 29. Me alegrou muito
mais do que outros posteriores, porque era o primeiro que recebia.
Além do mais, três mil pesos então eram uma soma!
MEV
- Comprou
livros?
JLB
- Gastei trezentos pesos em uma edição um pouco antiga da Enciclopédia
Britânica, que ainda conservo: a décima primeira edição,
que é muito superior às atuais. Porque antes a preparava a
Universidade de Oxford e agora o faz não sei qual editora
norte-americana que está interessada nas coisas mais tristes do
mundo: na estatística, por exemplo. É um livro cheio de datas e
de cifras. Ao contrário, a edição velha tem artigos de
Macaulay, de De Quincey, de Swinburne, que eram realmente ensaios.
Agora os artigos são feitos de abreviaturas: nasceu em tal data,
uma cruzinha e a data em que morreu. Publicou tais livros, com as
datas entre parênteses. Juízo em três linhas, e acabou; isso não
é um estudo sobre um escritor; parece mais com o censo ou a lista
telefônica do que com um trabalho literário.
MEV
- Voltando
ao tema das honras: cada vez que o nomeiam Doutor Honoris Causa de
uma universidade, lhe agrada, lhe emociona.
JLB
- Sim, é impressionante. Me sinto muito constrangido na véspera,
me sinto muito constrangido…
MEV
- …três
minutos antes…
JLB
- … três minutos antes; me sinto muito constrangido quando
estou falando, e no momento em que ocorre me sinto misteriosamente
emocionado, e logo digo a mim mesmo que isso é uma puerilidade.
É impressionante que a um grande homem ocorram essas coisas, mas
isso depara uma satisfação momentânea… É o fato de ser
reconhecido, de ser saudado…
MEV
- Quais
são os escritores que ainda lhe interessam muito?
JLB
- Creio que Shaw, Chesterton, Emerson e, como livro, o Dom
Quixote. Entre os livros argentinos, há um capital; se o tivéssemos
eleito como livro nacional, teria sido outro e melhor nosso
destino: é Facundo, de
Sarmiento. E admiro o Martín
Fierro como obra literária, mas não o admiro como
personagem; como tal, me parece espantoso e sobretudo me parece
muito triste que um país tome por ideal um desertor, um
assassino, um prófugo, um bêbado, um soldado que se passa para o
inimigo. Isso deve ter sido muito impressionante naquela época.
Me parece que Hernández se antecipou, porque Martín Fierro é um
malévolo sentimental, que se apieda de seu próprio infortúnio.
Os gauchos devem ter
sido gente muito mais dura, deviam se parecer mais com os gauchos
de Ascasubi
ou de Estanislao del Campo. Esse tipo de gaucho
queixoso, que compôs Hernández, adiantando-se a Carlos Gardel,
é um infortúnio. Não posso imaginar um gaucho
dizendo:
Bala
el tierno corderito
al lao de la blanca oveja
y a la vaca que se aleja
llama el ternero amarrao,
pero el gaucho desgraciao
no tiene a quien dar su queja.
Se
um payador
tivesse dito isso, teriam pensado que era um maricas. Teria sido
desprezado por todos!
•
As línguas nórdicas
MEV
- Gostaria
que falasse algo de seu amor pelas línguas escandinavas.
JLB
- Cheguei a elas pelo caminho do anglo-saxão, porque pensei que
havia sido o idioma de muitos antepassados meus há muitos séculos.
Mas a literatura anglo-saxã, ainda que seja rica, o é muito
menos que a escandinava, e isso se poderia explicar por uma razão
cronológica. A literatura anglo-saxã data dos séculos VII,
VIII, IX e acabou, enquanto que a escandinava chega à sua
apoteose nos séculos XIII e XIV. Mas há outra razão. Os saxões
saíram da Alemanha do Norte, dos Países Baixos, da Dinamarca, e
conquistaram a Inglaterra. Sem dúvida, ao comparar-se com o que
fizeram os vikings é
pouco. Pensemos em países pobres como os escandinavos e pensemos
que pessoas desses países descobriram a América, Bizâncio,
fundaram reinos na Inglaterra, na Irlanda, na Normandia e
escreveram na Islândia uma grande literatura. Ou seja, a cultura
germânica chegou à sua culminação na Islândia e produziu uma
literatura muito rica. Nas sagas encontramos tudo o que se
encontra no romance atual e dito de um modo mais reticente, mais
recatado e eficaz. De maneira que, como a cultura germânica me
interessa e como em sua forma mais pura chegou à sua culminação
na Islândia, é natural que me interesse esse idioma. Ao princípio,
quando comecei a estudá-lo, me ocorria o mesmo que com o inglês
antigo: parecia uma forma torpe do inglês ou do alemão. Ao contrário,
agora, vejo o anglo-saxão como um idioma próprio e já estou
sentindo como própria a língua escandinava que ainda se fala na
Islândia. Os islandeses podem ler seus clássicos sem necessidade
de explicações. Tenho edições das Sagas, da Heimskringla,
da Edda menor de Snorri
Sturluson, e esses livros não trazem notas, porque é possível lê-los
um islandês qualquer. O próprio fato de que tenha ficado
atrasado fez com que se conserve o idioma. É como se agora
existisse um país onde as pessoas falassem latim e não um
dialeto do latim; onde o homem da rua pudesse ler a Eneida
e Tácito. Além do mais, há uma beleza especial nesse idioma que
se dá nos sons e na facilidade que ainda guardam outras línguas
germânicas de formar palavras compostas sem que essas palavras
resultem artificiais ou pedantes. Ao estudarmos um idioma, vemos
mais de perto as palavras. Se estou falando espanhol ou inglês,
ouço toda a frase; ao contrário, em um idioma novo…
MEV
- …ouve-se
palavra por palavra.
JLB
- Sim. É como uma leitura com lupa. Sinto as palavras mais do que
aqueles que falam esse idioma. Por isso, há um prestígio nas línguas
estrangeiras; há, também, o prestígio do antigo, que é formar
parte de uma pequena sociedade secreta…
MEV
- Quantas
horas diárias dedica a essa “sociedade secreta”?
JLB
- Somente os sábados e os domingos. Somos umas sete pessoas; nos
reunimos umas três ou quatro horas e prescindimos da gramática.
Tomamos um texto do século XIII, por exemplo, e começamos a
decifrá-lo; somente em último caso recorremos ao dicionário ou
à versão inglesa ou alemã. Tratamos de entendê-lo e o
discutimos, e logo vemos quem tem razão. De maneira que isso tem
algo de aventura, aventura filológica. Mas, sem dúvida,
exagera-se algo. Se digo: “Um barco que se faz com as unhas dos
mortos”, em islandês o sinto mais belo; possivelmente não o
seja. Talvez para um islandês tenha mais prestígio a versão
espanhola.
MEV
- O
que está escrevendo agora?
JLB
- Estou tratando de escrever três contos para completar a soma de
dez que necessito para um livro. Além do mais, depois de ler
muitas versões de poesia chinesa e os poemas de Ezra Pound - que
não me agradam muito -, me pus a escrever composições breves,
que terão ao todo dez linhas. Em geral, são versos de sete, de
onze, de catorze, às vezes de nove sílabas, o que é mais
impressionante, e trato de que sejam versos muito, muito sintéticos.
Esses versos se escrevem sozinhos. Me pediram colaboração para
uma revista e lhes entreguei treze poemas breves que foram
surgindo em quatro ou cinco dias e lhes pus o nome de treze
moedas, para dar idéia da brevidade e de certa cunhagem, de certa
precisão. E depois, com Alicia Jurado, já há muitos anos que
estamos escrevendo um Manual
del budismo. Não sei se algum dia o terminaremos. Além do
mais, estou traduzindo com o seminário de que falamos aqueles diálogos
do século IX de Salomão e Saturno, dos quais se publicou um
fragmento - o único que eu possuía então - na Revista
de la Biblioteca Nacional. Agora consegui um exemplar de todo
o livro em anglo-saxão, publicado em Viena há quinze anos.
•
A vida. Defeitos e virtudes
MEV
- Se
você faz um resumo de sua vida, quais lhes parecem os momentos
mais importantes dela?
JLB
- Meu primeiro regresso a Buenos Aires. E depois, momentos muito
íntimos, que foram muito felizes, e aqueles em que escrevo, em
que sinto certa satisfação, mesmo que não goste do que escreva.
Cheguei a comprovar que a satisfação que se sente ao escrever
tem pouco a ver com o mérito do que se escreve, o que concorda
com aquela sentença de Carlyle: “Toda obra humana é
inconsistente, mas a execução dessa obra é importante”. Uma
vez feito algo, não pode valer muito; é uma obra humana com
todas as imperfeições do humano, mas o fato de executá-la, sim,
é interessante. Depois, tenho lembranças de infância, de alguma
cavalgada, de me haver sentido muito feliz nadando e lembranças
de lugares… Mas Marcel Proust
dizia que quando se estranha um lugar, o que realmente se estranha
é a época que corresponde a esse lugar; que não se estranham os
cantos, mas sim os tempos. Quer dizer que quando penso que às
vezes me sentia feliz no Texas, é porque me sentia feliz naquele
momento, mas se retornasse ao Texas agora, não há nenhuma razão
para que possa me sentir feliz ali. Ou quando eu sabia que
faltavam somente tantos dias para retornar a Buenos Aires. Mas então
havia algo de angustioso, porque sempre existia o temor de que
ocorresse algo que entorpecesse a volta.
MEV
- Sempre
lhe importa muito retornar a Buenos Aires?
JLB
- Sim, me importa muito retornar, e mesmo em alguma viagem última,
em que eu sabia que não retornava a algo especialmente grato, que
retornava a uma rotina não demasiado deliciosa. Mas sempre senti
que há algo em Buenos Aires que me agrada. Me agrada tanto que não
me agrada que agrade a outras pessoas. É um amor assim, ciumento.
Quando estava fora do país, por exemplo, nos Estados Unidos, e
alguém me dizia que ia visitar a América do Sul, eu o incitava a
conhecer a Colômbia, por exemplo, ou lhe recomendava Montevidéu.
Buenos Aires, não. É uma grande cidade demasiado cinza,
demasiado grande, triste - digo-lhes -, mas faço isso porque me
parece que os outros não têm o direito de gostar. Além do mais,
geralmente o que agrada aos estrangeiros é o que nunca nos
importa. A idéia de encantar-se com o reservatório de água de
Palermo, com o Obelisco ou com a rua Florida é bastante triste. O
fato de extasiar-se diante dos arranha-céus Cavanagh é uma coisa
de loucos. Ou com lugares do sul da cidade, que são totalmente apócrifos.
Um portenho sente que foram edificados na semana que vem, digamos.
MEV
- Você
é ciumento?
JLB
- Sim, trato de não sê-lo, mas o sou. Compreendo que é um
defeito.
MEV
- Quais
são seus defeitos?
JLB
- Creio que uma vaidade desmedida.
MEV
- Não
parece sê-lo.
JLB
- Sim, é que sou com certa astúcia.
MEV
- Mas
se não lhe importa em nada o êxito…
JLB
- Mas o êxito é algo tão efêmero… E além do mais, quando se
chega à minha idade, já se viu tantos êxitos que se converteram
no esquecimento. Vou citar-lhe um caso notório. Em 1910
acreditava-se que o melhor escritor da literatura francesa, ou
seja, da literatura mundial (porque assim se media então), era
Anatole France.
Atualmente isso pareceria uma ironia um pouco grosseira, mas
naquela época era tido como um escritor tão grande quanto
Voltaire. Claro que Anatole France havia chegado a Buenos Aires,
havia nos descoberto; todos nos sentíamos um pouco mais reais
porque Anatole France sabia que existíamos. E inclusive lhe
perdoamos alguma gafe. Quando chegou a Montevidéu, disse que ele
sempre havia querido o Uruguai porque sempre havia gostado muito
do café uruguaio. Ainda se está por descobrir, não?… Claro
que se tratou de um erro de informação do secretário, que lhe
disse: “No Uruguai, deve falar de café”.
MEV
- De
modo que você se considerava vaidoso.
JLB
- Sim, creio que o sou, e no entanto me parece impressionante que
as pessoas me levem a sério. Creio também que tendo facilmente a
ser dogmático. A pensar que os demais devem pensar como eu.
MEV
- Isso
pensamos todos.
JLB
- Lembro de uma frase de Swift
que dizia: “Que inteligente é este escritor quando diz o que eu
havia pensado durante a vida inteira!”.
MEV
- E
quais acredita sejam suas virtudes?
JLB
- A modéstia. Creio que tenho um sentido das palavras, da
literatura, um sentido do verso - não quando o executo, mas sim
quando o leio - que outras pessoas não possuem. Creio que posso
me emocionar com uma palavra. Além do mais, contrário ao que
geralmente se supõe, creio que a beleza não é uma coisa rara,
mas sim muito comum. Por exemplo, não sei nada da literatura húngara,
e no entanto estou seguro de que se soubesse encontraria nessa
literatura o que encontro em outras. Não sei nada da poesia dos
afegãos, e creio que pode dar-me o que me dão as outras. Claro,
confesso que não encontrei nenhum escritor australiano que me
tenha chamado a atenção, mas confesso que não li nenhum, o que
é um argumento contra. Por que não se fala deles nunca? Ou dos
canadenses? Quando estive no Canadá perguntei: “Quais poetas
vocês têm?” me disseram: “temos o poeta Pratt”. O nome não
parecia prometer muito. Há dois poemas seus: um à
estrada-de-ferro que vai de Toronto a não sei onde… (De uma ode
ferroviária, o que se pode esperar?). E o outro é um poema
extraordinário onde fala de um bloco, de um pedaço de gelo. Eu
disse: “E?” “E então - disseram-me -, outros poetas teriam
falado dos bosques nevados do Canadá, mas ele se dirige
concretamente a um bloco de gelo e isso já é muito”. Depois
disso pensei que devia contentar-me com a idéia de que haver
escrito um poema concreto já bastara. Mas me chama a atenção
que os Estados Unidos, em New England, próximo da fronteira com o
Canadá, tenham produzido gente como Emerson, como Melville, como
Henry James, e que, ao lado, no Canadá, não se tenha produzido
nada, salvo, como disse Kipling, que se tenha produzido o país de
maior ordem e talvez essencialmente mais culto que os Estados
Unidos. Claro, haver produzido uma civilização é muito, mas não
é emocionante. Um país civilizado é superior a um país bárbaro,
mas pode não ser muito interessante.
MEV
- Gostaria
de ser ou de realizar alguma coisa que não tenha feito até
agora?
JLB
- Teria gostado de ser um homem de ação, como foram meus
antepassados. Desgraçadamente, confesso que não morri em 1874,
no combate de La Verde, e tampouco derrotei os guerrilheiros de
Rosas, como meu bisavô Suárez. A verdade é que não fiz nenhuma
dessas coisas; a verdade é que tampouco participei da Revolução
de ’90, porque nasci nove anos depois…
MEV
- Lembro
que uma vez lhe perguntei, caso pudesse eleger seu destino, o que
teria preferido ser, entre San Isidro de Sevilla e Harold…
JLB
- Se tivesse sido Harald Hardrada
teria sido outra pessoa; ao contrário, mesmo que não seja San
Isidro de Sevilla, sou, digamos, da família… Quero dizer que
sou uma pessoa que me interesso pelas etimologias, pela linguagem,
ou seja, pertenço a essa paróquia. Ao contrário, se tivesse
sido um homem de ação, como foram alguns antepassados meus,
seria interessante, mas desejar isso é como dizer: “Que lástima
haver nascido homem e não tigre!” Imagino que a vida de um
homem de ação é talvez mais interessante para o que a estuda do
que para quem a vive. Um homem de ação deve viver…
MEV
- …a
rotina da ação.
JLB
- E além do mais vive de presentes muito efêmeros, como todo
presente. Terá que tomar decisões, executá-las. Talvez um
historiador compreenda melhor a vida de Harold do que o próprio
Harold, que simplesmente vivia. Talvez os que somos inativos, e
que vivemos vicariamente as vidas alheias, sentimo-las mais que os
próprios que as viveram. Para eles, deve ter sido uma espécie de
vertigem de momentos presentes; talvez nunca viram o desenho que
forma essa vida.
MEV
- Não
puderam saboreá-lo.
JLB
- Creio que não. Claro que seria bom pensar: “Comandei uma
carga de cavalaria”, como meu bisavô, mesmo que talvez para ele
esse momento tenha sido como quando alguém atravessa rapidamente
uma rua para que não o atropele o tráfego, ou o momento em que
uma pessoa enojada dá uma bofetada. Ainda que na recordação
tenha aumentado e pensado: “Fui o herói dessa jornada”, mas não
o pensou enquanto ocorria e depois já era algo possivelmente tão
alheio a ele como a mim.
•
A música. A pintura. A morte.
MEV
- Que
músico lhe interessa?
JLB
- Não sei se tenho direito a nomeá-lo, porque não o entendo:
Brahms. Creio que é a única música
fora das milongas ou dos spirituals
ou do cante jondo
que me emociona. Ao mesmo tempo, me dou conta de que não tenho
direito de admirá-la.
MEV
- Por
que?
JLB
- Porque se me perguntassem em que difere de outras ou em que
consiste, ou em que teorias está baseada, não saberia dizê-lo.
Sinto-a de um modo físico, mas talvez o importante seja isso, e
talvez seja a definição da poesia também, o que se sente como
poesia imediatamente, quando a ouve. Estou ouvindo continuamente
rajadas assim de poesia pela rua. Ouço que as pessoas mais
cotidianas e mais vulgares dizem frases muito lindas e que as
dizem sem que percebam, com inocência.
MEV
- E
nunca lhe interessou a pintura?
JLB
- Sim, me impressionaram muito Rembrandt, Turner, Velázquez,
Tiziano; me impressionaram alguns pintores expressionistas. Ao
contrário, alguns aos quais é ritual admirar, como El Greco,
nada. O conceito do céu que ele tinha, cheio de bispos,
arcebispos, de mitras, parecia com o conceito que eu teria do
inferno… A idéia de um céu eclesiástico me parece espantosa,
de um céu parecido com o Vaticano. Possivelmente lhe desagrado ao
dizer isto, não? Mas se o céu de El Greco era isso, estaria
desejando ir para outro lado. Teria feito por sentir nostalgia do
Purgatório ou do Inferno. Mas, no caso de El Greco, isto se deve
a que ele não acreditava nessas coisas e nota-se essa indiferença
nos quadros. Ele estava seguro de que não havia outra vida; então,
“para quedar bien con el comisario”,
como diria Macedonio Fernández, pintava todos esses bispos.
MEV
- Você
acredita que haja outra vida?
JLB
- Não. Tenho a confiança de que não haja nenhuma outra e não
gostaria que houvesse. Quero morrer inteiro. Sequer me agrada a idéia
de que me lembrem depois de morto. Espero morrer, esquecer-me e
ser esquecido.
MEV
- O
que é para você o mundo?
JLB
- O mundo para mim é um incessante manancial de surpresas, de
perplexidades, de desventuras também e, alguma vez, não há por
que mentir, de felicidades. Mas não tenho nenhuma teoria do
mundo. Em geral, como usei os diversos sistemas metafísicos e
teológicos para fins literários, os leitores acreditaram que eu
professava esses sistemas, quando realmente a única coisa que fiz
foi aproveitá-los para esses fins, nada mais. Agora, se eu
tivesse que definir-me, definir-me-ia como um agnóstico, ou seja,
uma pessoa que não crê que o conhecimento seja possível. Ou, em
todo caso, como se diz muitas vezes, não há nenhuma razão para
que o universo seja compreensível por um homem educado do século
XX ou de qualquer outro século. Isso é tudo.
|