1969
– Jorge Luis Borges: o tempo é o tema essencial de minha poesia
María
Angelica Correa
Entrevistar
Borges não me seduz em nada, não somente pelo respeito que me
inspira o escritor que é, como também por suas maneiras.
Conheço
há muito esse seu modo de entrincheirar-se detrás de um gracejo
ou de uma frase brilhante, o horror à publicidade, esse
sentimentalismo unido ao medo de deixar-se adivinhar, sua
incondicional admiração pela coragem e a maneira tangencial de
referir-se a ela; pertencem a uma Argentina que me é entranhável
acima de toda ponderação. Mas também, e sobretudo, conheço
essa aguda sensibilidade a qualquer intenção de transgredir o
invisível limite que traça nossa reserva. Estou, portanto,
duplamente inibida diante dele e somente porque sua cordialidade
me anima, depois de lutar um instante contra o gravador - do qual
Borges felizmente se esquece logo em seguida -, decido-me a
fazer-lhe a primeira pergunta. [MAC]
MAC
- Algum
vez você escreveu: “quisera ter sido outro homem”? Queria ter
sido outro escritor, ter feito outro tipo de literatura?
JLB
- Sim. Claro, julgo-me, com toda razão, inferior a tantos outros
escritores…, mas me consolo pensando que cada um escreve o que
pode e não o que quer, e isto se refere também aos mestres, aos
modelos. Por exemplo, creio, digamos, que Stevenson foi um
escritor infinitamente superior a Kafka. No entanto, imitei Kafka
e não Stevenson, embora só tenha feito isto porque a imitação
de Kafka está dentro de minhas modestas possibilidades, enquanto
que a de Stevenson não.
MAC
- A
quais poemas seus não renunciaria?
JLB
- Espero que me recordem, se é que me recordam - e naturalmente a
recordação é transitória -, por poucos poemas, porque, quando
se conhece toda a obra de um escritor, observa-se que os bons
poemas parecem bastante com os medíocres ou são essencialmente
iguais aos medíocres. Se tivesse que escolher alguns para essa
antologia ideal que você me propõe, creio que esses poemas
seriam: “El poema conjetural”, no qual trato de imaginar, não
de um modo realista, mas sim de um modo poético, o que pode ter
sentido Laprida antes de sua morte; há também um poema, “Límites”,
que me agrada, e também o “Poema de los dones”, em que me
refiro à curiosa circunstância de que a revolução libertadora
me fizera diretor da Biblioteca Nacional quase no momento em que
comprovei que não podia ler. Falo ali da magnífica ironia de
Deus, que me deu ao mesmo tempo os livros e a noite…
Também
gosto de alguns dos sonetos: o soneto sobre Spinoza, o soneto
sobre Quevedo…
E, além do mais - esta será talvez uma desentoada minha -, gosto
de algumas milongas
que escrevi ultimamente. Mas isso pode responder ao fato de que
todo escritor está interessado no que acaba de escrever e nada
interessado no que escreveu há anos.
MAC
- E
fora dos poemas?
JLB
- Talvez alguns dos contos. Há um que ainda não foi publicado,
“La intrusa”, que, até que alguém o leia e me mostre o contrário,
creio que é o melhor conto que escrevi. Tem a vantagem de não
ser um “conto de Borges”, prescindi de meus tiques ou manias:
de tigres, de labirintos, de facas, de espelhos, dos quais me
encontro hoje ainda mais cansado do que meus leitores.
MAC
- Quais
são seus temas? Qual vê como o tema essencial de sua poesia?
JLB
- Responderei com um lugar-comum, mas os lugares-comuns são as
verdades. O tema essencial é o tempo e, dentro do tempo, o enigma
da identidade pessoal que se mantém e das contínuas mudanças.
Ou seja, por um lado, temos o rio de Heráclito:
ninguém desce duas vezes ao mesmo rio, não somente porque o rio
flui, mas também porque o próprio homem é um rio que está
fluindo; e, no entanto, há uma identidade que se mantém, uma vez
que recordo minha infância e minha adolescência e não a dos
outros.
Creio
que o tema essencial - se é que há algum tema essencial no que
escrevo, e se é que vale a pena indagá-lo - é esse. Se
compreendêssemos o tempo, compreenderíamos tudo. Sempre se diz
em filosofia o tempo e o espaço. O espaço não tem maior importância,
é uma das percepções que nos dá o tempo. Teoricamente,
poder-se-ia imaginar um universo sem espaço. Um universo
puramente mental. Mas um universo sem tempo, sem sucessão, é
inconcebível. Mesmo que os homens tenham inventado uma palavra
para aquilo que não podem conceber: a palavra eternidade.
MAC
- Torna
a propor a si mesmo alguns temas?
JLB
- Sim. Isto me fez notar Alberto Hidalgo
há muitos anos. Não sei se essas foram suas palavras - creio que
não -, mas podemos atribuí-las a ele agora. Disse que eu era um
escritor binário, que escrevia sempre duas vezes o mesmo poema. Há
muitos anos, por exemplo, escrevi um pequeno poema intitulado “Límites”,
que atribuí a um imaginário escritor uruguaio, Platero Haedo, e
publiquei na revista Anales, de Buenos Aires. Esses versos são um esboço do poema “Límites”
que escreveria anos depois. É a mesma idéia de que, sem sabê-lo,
estamos executando atos últimos, que pela última vez vimos uma
pessoa, abrimos um livro, que vivemos em um mundo de adeuses, de
adeuses involuntários. Se fôssemos imortais, a vida seria muito
menos patética.
MAC
- Por
que retorna sempre ao tema da coragem?
JLB
- Possivelmente por ser algo que falte em minha vida,
possivelmente também porque descendo de militares. Meu avô
Borges foi morto no combate de La Verde, guerreou contra os índios
em Tapalqué e depois em Junín; esteve na guerra do Paraguai e,
aos dezessete anos, na batalha de Caseros. Meu bisavô Suárez
combateu na batalha de Junín e em muitas outras. Talvez haja uma
nostalgia dessa vida possível de meus antepassados. Além do que
a história argentina é uma história de façanhas militares;
mesmo que, por pudor, não o recordemos nunca, não perdemos uma só
guerra. Nunca se fala disso, mas ao mesmo tempo costumamos
recordar a coragem de bandoleiros e marginais; é uma coisa
bastante rara…
MAC
- A
contenção emocional é, em você, disciplina ou uma característica
argentina?
JLB
- Não a imponho como disciplina. O que ocorre é que temo ser
insuportavelmente sentimental. Costumam me perguntar porque não
escrevo versos de amor. Se lessem com algum cuidado o que escrevi,
veriam que há muita poesia erótica em minha obra.
[Como
aludo aos “Prose poems for J. B.” (dois admiráveis poemas de
amor), Borges diz:]
Vê,
eu os escrevi em inglês, que é também uma forma de pudor.
[E
depois acrescenta:]
Criou-se
uma imagem falsa de mim, a de uma pessoa fria. Estela Canto foi a
primeira que, em um artigo em Sur, afirmou que eu não era um poeta intelectual mas sim um poeta
emocional. Não sei até que ponto a expressão “poeta
intelectual” não é uma contradição, salvo que se trate de
poetas como Emerson, para quem a inteligência também é uma paixão.
Mas talvez por torpeza minha tem-se a idéia de que escrevo versos
como quem está desenvolvendo uma equação.
MAC
- Escreve
muito?
JLB
- Escrevo pouco e publico demasiado [diz
sorrindo]; me custa muito escrever.
MAC
- Como
escreve, se é que se pode perguntar isto?
JLB
- Antes escrevia de um modo absurdo. Punha a primeira frase e a
corrigia até que ficasse perfeita, e assim prosseguia com cada
uma. Agora me dou conta de que o melhor é fazer um texto inteiro
e corrigir depois, senão o texto perde fluência. Por outro lado,
ao final de certo tempo, um escritor dá com seu tom de voz, com
sua entonação e não pode nem piorar nem melhorar muito.
MAC
- Quando não sente que
“em vão te demos o oceano, em vão o sol”, o que pensa que
restará de sua obra? [Borges
trata de eludir a resposta. Insisto. Ao final, diz:]
JLB
- Penso que algumas páginas ficarão. Três ou quatro contos, dez
poemas…, o que é bastante para uma antologia. Ninguém vive
muito além das antologias.
[Depois
fala de valentões que conheceu “de ouvir falar”: Muraña, Suárez
o Chileno, Albornoz, “quase meu vizinho”, cuja morte, que lhe
contou o comissário Olave, lhe inspirou uma milonga: “No un
cuchillo sino tres, / Antes de clarear el día, / Se le vinieron
encima / Y el hombre se defendía. // Un acero entró en el pecho,
/ Ni se le movió la cara; / Alejo Albornoz murió / Como si no le
importara.”
Volto
a pé para minha casa, através da praça de San Martín, pensando
que alguém, com a autoridade que não tenho, deveria referir-se
alguma vez aos traços mais óbvios de Borges no plano pessoal:
seu estoicismo, sua incrível modéstia, essa simplicidade que às
vezes chega a ser caritativa, seu porteñisimo
sentido do humor.
Penso,
tanto com admiração como com afeto, neste homem que rejeita ser
“um literato” no mais antipático sentido da palavra, enquanto
ele, de costas para a glória literária, “como se não lhe
importasse”, inclina-se sobre si mesmo para escrever: “vida e
morte faltaram à minha vida”… “não vivi, quisera ser outro
homem”.]
|