Álvaro Pacheco  
   
O ENVELOPE PARDO
 
 
 
 
 
  

O velho retirava as algas do canal sob os plátanos 
no ritual resistente. Perguntei - "Que árvore é esta?" 
"C'est un platane, Monsieur. Um platane très vieux. Je crois 
qu'il a plus de cent ans" - 
e retomou o seu ritual. 

Um outro velho 
imaginava peixes no anzol imóvel 
no fundo turvo do pântano. Sob o plátano,  
entre as folhas caídas, documento do verão que passou, 
Rue du Docteur Peret, Circuit Fleurie, Vonnas, 
descansava de transbordante viagem 
Envelope Pardo 
endereçado a um estrangeiro irredemido 
sem qualquer indicação do remetente. 

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Terá vindo do leilão surrealista 
no sonho e vigília dessa noite angustiada, 
um estranho leilão de quadros eróticos, em Cannes, 
onde cada peça, nas tonalidades jaune e demi-vert, 
representava imagens em movimento contínuo 
e composições do abstrato real 
sobre o vasto écran suspenso na rua?- 

Terá sido daí 
que veio o Envelope Pardo 
contendo um anúncio e o sofrimento 
para o escolhido? 
 
  

- Ou terá vindo 
de alguma remota ilha helênica do Mar Egeu, 
talvez Poros 

com o aviso e a advertência do ritmo 
de Séferis, o poeta grego - "escuta mais uma vez, 
as estátuas estão nos museus. As sombras da noite 
são um efeito da luz". Tu as voyagé, tu as vu 
beaucoup de lunes, beaucoup de soleils. 
Tu as touché morts et vivants 
tu as ressenti la douleur de l'adolescent 
et le gémissement de la femme, 
l'amertume de la verte enfance -  
tout ce que tu as ressenti s'écroule 
si tu ne fais pas confiance à l'espace blanc. 
Peut-être y trouveras tout ce que tu croyais perdu, 
l'éclosion de la jeunesse 
et le juste naufrage des ans. 

....................... 
  

Tenho já os cabelos grisalhos 
a mi-chemim da terceira vida, o Envelope Pardo 
poderia ser também 
a notícia do suicídio de Durrel 
vinda das ruelas obscenas de Alexandria 
ou talvez Corfu. A Letter From Darkness - enfim 
chegamos aos anos mais difícies de suportar 
em que cada cabelo branco é uma ameaça 
e comparamos as cópulas antigas com as recentes 
e descarregamos nosso ralo esperma 
nos corpos dos novos discípulos 
para aliviar-nos da carga acumulada, 
du regret que nous donne leur jeunesse, 
  

"And in the coital slumber poaches 
from lips and tongues the pollen 
of youth, to dust the license of our art." 
  

chegamos enfim aos anos maduros 
os terríveis da agonia 
e não podemos suportar essa maturidade mortal - 
e a febre do sobrevivente se consome 
entre todas as sombras da incerteza do combate. 
  

We have arrived there, after all, the two of us. 

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O Envelope Pardo talvez contivesse 
a última carta de Vincent: 
In medio noctis vim suam lux exerit, 
é no meio da noite que a luz retorna 
ou desaparece para sempre, explicando 
as cores do "Champ de Blé Aux Courbeaux",explicando 
cada detalhe da gênese da loucura - "ma vie aussi 
est attaquée à la racine même". 
  

"Puis, comme le crepuscule tombait, 
représente-toi le silence, une petite allée 
de grands peupliers avec leur feuillage d'automme 
et le large chémin fait de boue, 
tout en boue noire, la bruyère à l'infini 
où le ciel se reflète et où pourissent des racines." 
  

Le troupeau indocile progresse sur le chémin de boue. 
  

Il, comme nous, avance péniblement 
vers le matin du dimanche d'été. 

.......................... 
  

And the Myth endures, "pai 
vejo em Paris, pela primeira vez na vida 
a construção da fome e o mecanismo da máquina, 
  

"Une nuit d'Été en Ville", supostamente 
um filme de amor 
é de plástico - tenho medo 
de pasteurizar-me, contudo 
une autrichienne de Viena 
convidou-me para ouvir Mozart na Madeleine: 
para não correr o risco de me desapontar 
talvez vá a Dublin procurar Joyce - 
parfois 
leio "Paroles" de Prévert" - 
  

"If not you 
how could I clean my brains 
from the tempestuous clouds of my youth and 
from the abyss of passion? I need the shovel 
to excavate my own undergrounds 
and feed, from the roots, 
the expected leaves of poetry -  
  

If not you 
how could I learn to spell emotions 
how could I reach 
that untouchable green stone?" 

..................... 
  

Maybe the Second Letter "Pela Vida". 
  

- "Como nadar no infinito sem fé 
e sem loucura? 
  

O saxofone me fascina, e agora tenho a noção 
pela primeira vez sozinho 
do que é criar um lugar - mas é muito difícil 
escrever uma carta - vou usar 
a mesma máquina que você usou 
para falar dos seus momentos, 
para ver se assim te conheço melhor - 
  

acho 
que te sinto com medo 
de um grande sorriso 
ou de um abraço forte, não sei por que 
você não elimina a distância 
que separa o caminho da sua mão 
dos corpos amigos, daí 
te escrever esta carta pela vida 
na madrugada de Nova Iorque". 

.................. 

Pode ser que o Envelope Pardo 
seja uma mensagem que perdi 
de mim mesmo: ici 
je fais des infusions, pode ser 
que apenas esteja compondo 
uma natureza-morta 
com fotografias de flores artificiais. 
  

Estou esgotado e com frio. 
Arredondo minha vida 
nas calmarias da pequena vila francesa 
e não descubro os instrumentos possíveis - 
  

onde os terei colocado, como 
saíram do meu arsenal? 
  

É preciso 
ensaiar todos os discursos em voz alta 
para reduzi-los implacavelmente 
a uma só palavra  
ainda não pronunciada 
e assim redefinir o que restar 
de minha condição humana. 
  

("La peine de mourir 
m'a si fort embrasé 
que mon feu s'est uni au soleil.") 
  

Chove espaçadamente sobre os pépinières 
onde germinam as plantas e se organiza 
a primavera em estufa, nos vasos de barro. 
  

Escuto outra vez o sussurro 
de Mr. Stratis Thalassinos 
entre os agapantos -  
  

"nenhuma pedra 
marca a passagem dos fugitivos 
ou indica as ilhas de fumaça e mármore 
de onde ressurgem, em vagas, 
as imagens dos poetas" -  

nenhum sentimento 
basta para se possuir uma mulher 
uma ilha ou uma árvore: em toda esta calma 
nada é mais justificável 
do que a alegria perdida 
que nunca espera 
pelo seu dia de ressurreição. 

...................... 
  

Foi uma madrugada intermitente 
de vigília e sono 
pressentindo o caminho 
do Envelope Pardo -  
  

"Une Nature Morte Avec Bible"et, toujours, 
une jeune femme ravie - vagamente 
na recepção do hotel 
me falaram dele, desse arauto misterioso 
de onde poderiam revelar-se 
fantasmas e anjos, 
mas nada me entregaram, embora 
eu verificasse diariamente os plátanos 
la route fleurie e tenha passado várias vezes 
pela manhã e no fim do dia 
pela Rue du Docteur Peret 
conferindo atentamente as folhas caídas, os roseaux 
e o velho que lia sempre o mesmo jornal amassado 
muito circunspecto das notícias. 

................. 
  

C'était à la Poste, enfim, 
por determinação da lei 
que abriram o Envelope Pardo 
para uma verificação de circunstância: 

Havia dentro apenas 
sem nenhum interesse para a alfândega 
ou para as autoridades em geral 
duas revistas periódicas de confissões eróticas 
cartões-postais muito antigo de Nova Iorque, Paris e Londres, 
manuscritos em papel vergé de idade indeterminada 
transcrições de poemas românticos em letra adolescente 
diversas cartas amareladas 
um fac-símile da primeira edição dos Ensaios do Montaigne 
uma folha com uma composição ginasial, 
um cartão de Natal, muito terno, com letra de criança 
uma receita especial de soupe d'écrevisses 
e um velho retrato desbotado, sem bordas, 
datado de 20 de maio de 1943 
que mostrava, num grupo de enterro, 
um menino assustado 
de olhos muito abertos 
vestido solenemente numa farda colegial 
a contemplar 

sua primeira versão de morte. 

Vonnas, setembro 91.
 
 
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Página editada por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  20  de  Agosto  de  1998