Álvaro Pacheco

Asas de Criança
                                                             para Anatole Dauman e Win Wenders
                      
  
“Quando a criança era criança
e balançava os braços sem saber
imaginava que o riacho fosse rio
e também o mar fosse rio, embora
pudesse ser mar, mas não sabia
que tudo não passava de uma  pequena
poça de chuva, quando  por acaso chovia”.

Quando a criança era criança
a vida era uma só e ela não tinha
nem opiniões nem hábitos, desconhecia
as ruas e não fazia poses para fotos, nem\
erguia a cabeça contra o céu aberto -
o universo era uma  casa de um andar
e um homem tomando banho no quintal.

Como no parto,   as mulheres
acabam com suas vidas, não é possível
esquecer o pôr-de-sol - e os tempos
e os acontecimentos que passaram 
são fluidos. Há  colinas
não muito altas - chega um avião
e as árvores se encrespam contra o ruído.

O guarda-chuva está encharcado 
e já não protege - o homem se resigna
e enfrenta a chuva, os livros antigos 
exorcisam o pensamento e o calor
das  mãos diante da imagem imóvel
evoca a música sacra e o enlevo
de se sentir, como as crianças, perpétuo.

Vou contar
sobre o contador de histórias
que revelava o tempo ás criancinhas :
na letargia dessas histórias,
como poderei deixar de estar  perdido, 
mesmo louco e sozinho? Meu pai
foi um pai sem lágrimas e tristeza.

Você está livre porque  esqueceram de você
e  era tempo desta pergunta: porque eu
e não você? Estou aqui e não lá
sinto e vejo e ninguém me vê - e isto
é uma simples miragem  do mundo anterior
ou posterior talvez, e quando 
não serei mais quem eu sou.

Os deuses se cansaram
de sentar-se no lugar vazio
sem ninguém ao lado, precisam
excitar-se pelos contornos do corpo
ao invés do apelo aos desvios da alma,
do entusiasmo pelo mal, exercitar os pés nús
em outra carne expectante, á distância.

A moça triste, sozinha, flutuando no ar,
para voar no trapézio  com as asas de um anjo
para uma grande multidão - mas não conseguia
porque suas asas eram de galinhas, e esse sonho
não era próprio de anjos, mas de trapezista caindo
sem nenhum público para aplaudir
como é sempre na vida. Na última noite

não vem ninguém para ver o espetáculo
as asas de galinhas voando pelo ar adentro:
Só o tempo cura. Mas, se não fôr doença?
Alguém está pairando. “- Todos os que passam
perdem o fôlego e ficaram em minha cabeça -
e não houve uma só palavra de carinho
para encher meu coração e o som do acordeon.

O que prende a solidão que segura as asas
é o olhar do pequeno animal perdido na floresta.
Não devo chorar - o vazio
preenche tudo quando se está sozinha -
ah, eu queria fazer amor, mesmo que fosse
com uma aparição - quando se é estrangeiro
vale qualquer pele, qualquer corpo.

qualquer indício de que se pode viver.
As côres, o neon no céu escuro: os homens
não devem olhar - e uma onda de amor
vem perturbar-me
e ao meu desejo de amar - morrer
não é tão simples:
não basta cair do trapézio”.

Os olhos das crianças,
as primeiras gôtas de chuva
o primeiro sol depois da chuva
as pedras brancas no leito seco do rio
um jovem dorso nu ao teu lado na cama
a carne jovem esperando.
Meu pai.

As esferas brilhantes e a luz do desejo
e, depois da passagem dos séculos, 
as  impertinências do futuro
cruzando o pântano - ninguém segue
a inspiração da paz. Devo
desistir agora ?  Não encontro mais a praça
que era aqui - suas grandes árvores,

meu pai, meus amigos mortos, tenho
de esperar que ela passe outra vez
mesmo mais estreita e em ruínas, mesmo
sem ter havido guerras e bandeiras e tambores
não posso desistir de encontrá-la: é como
fugir da infância, aqui, onde ficaram
meus filhos pequenos que fugiram de mim.

Porque não estou ainda morto
não irei sair daqui - disfarço-me
em arbustos e em grandes árvores
para procurá-los entoando os cantos de guerra
e as canções de ninar - quanto tempo
se passou? Perpassa-me a ternura
de um quarteto barroco . A igreja.

Esta mulher em cima das ruínas
(quantas ruínas!). Quando foi?
Disse o general para a prostituta:
“- Se eu não te possuisse sentiria falta
da ausência do prazer, mesmo 
sem qualquer amor, como o peso 
de duas maçãs em cada mão”.

Quando subias as montanhas
indo da sombra para o sol
um barco flutuava no lago,
esse grande lago dos ursos  
entre as casas das crianças
e os olhos azúis da infância,
como o último salto para o infinito.

Providence. A mesa foi posta
entre as árvores
para o almoço no horizonte:
há uma mulher que não chega e um homem
que já não mais espera o baile.
Os clarins ao longe, como nas caçadas,
convocam  para a festa.

Apenas se inicia outra vez 
o caminho dos séculos,
tão íntimo como o tronco
do velho oitizeiro, contudo
a paz não te deixa sossegar:
onde está a velha praça
e as ruas estreitas de pedras pontudas

segurando teus passos
sob o velho guarda-chuva de teu pai,
onde o menino era menino
e o coração estava aberto
para todos os desafios?  Onde
esconderam esse coração, e onde
se esconderam as crianças?

A terra de ninguém se disfarça com arbustos
e obuzes, e os jornais
são líderes sem escrúpulos, a môsca
presa no âmbar liquefeito
que só escapa 
com a senha  da alma cega e conquistada
mais cedo ou mais tarde.

Esta mulher conquistou minhas ruínas, as mulheres
aliás, apenas sobrevivem em nossas ruínas
porque morremos muito antes - o amarelo
e sinônimo da morte, que é a côr dos girassóis
que se queimam na vaidade da luz. “- Cinza - 
disse o general para a prostituta - não é côr”.
Por que? - respondeu ela - Não sou  um anjo”.

Não necessito de proteção. O circo
é muito triste para quem não é criança:
os palhaços são patéticos.
Quando a criança era criança
não sabia o que era couve-flor, espadas
e o fogo de  Deus ou uma banda taurina,
mas gostava muito da banda do circo.

Ao som da banda, os saltimbancos da nostalgia
as flôres sem côr na ausência do céu
as galinhas com os arcos
e a mulher que chora sem amor
com a carne exposta, a alma sangrando
sem mais esperanças. “Eu queria
eu queria muito fazer amor, uma vez so que fosse”.

Passaram-se as manhãs e as noites
e o rio encontrara seu leito para dormir
e então as abelhas perderam as asas e vieram as nuvens
os javalis e os gatos selvagens povoar o fogo.
Aprendemos a falar através das fogueiras
e quando a roda se quebrou houve uma fuga
para começar a história, um monólogo

de anjos intermináveis, eis que somos muito poucos.
O que nos ensina de verdade é olhar para baixo - para o alto
são vertigens e plumas, o rio primitivo
e as gôtas de chuva que secam  ainda entre as nuvens.
Nem todos vêem, desde a infância,
os desfiladeiros e as portas do céu,
o sol e a estrela com seus pequeninos pés

com que andam no infinito. Esses
não conhecem nem rios nem lagos mágicos
e assim desperdiçam a vida.
As imagens geométricas são apenas
reflexos da luz nas câmeras, nada
de coisas vivas, como fogo, fumaça e morte -
a pobre trapezista

vai voar pela última vez
na noite de lua cheia, graciosamente
em movimentos de dança aérea, em tons de amarelo
com medo da morte e da solidão.
Não é essencial ser bonita:
diante do espelho todos estão nus
com a alma á mostra

e não há beleza suportável
diante dos gestos teatrais da mágica.
Este é o último espetáculo, o último
orgasmo com os ombros colados no trapézio
na solidão do ar, como um pássaro sem asas
caindo para a morte, agarrando-se nas cordas
rindo-se da morte. É pior sem o amor.

Figuras caóticas no baile dos perdidos
a música banal, mas alucinada, imagens
desconexas descentradas da geometria,
a mão que te aperta por dentro os órgãos vitais
e a pergunta da criança, quando já não era mais criança,
“- Quem me protege e o que existe
em cima do sol e cortejando as estrelas? “

E o anjo se transforma em criança
e faz as mesmas perguntas
sem acreditar em Deus e seu último espetáculo:
a  solidão é como um pássaro
sorrindo para a morte
e o rio tem apenas duas margens, e quase nunca
quase nunca se está na definitiva -

também o ar tem suas margens, como o céu,
os corações, a  solidão, os elementos, as crianças,
o trapézio no ar, o amarelo, as plantas secas, 
o orgasmo, a decisão de morrer ou de viver,
olhar de frente, o ciclo das framboesas,
a tristeza das prostitutas e dos generais
e todas as coisas que já foram negadas ou explicadas - 

e jamais se poderá
mudar de margem, nem mesmo os anjos,
com suas asas e seu mistério insolúvel
que instruem as crianças e os muito velhos,
poderão mudar de lado, sair
de cada cidade procurando outra menor,
as framboesas e as maçãs nascendo

de suas mãos, esperando a primeira chuva
- que até agora ainda aguarda -
e ver a mulher por fim encontrar o amor,
uma eternidade em deleite, mais embriagante
que o vôo no trapézio e uma grande multidão,
como quando a criança era criança e pensava
que o riacho era rio e o rio era mar . E o retrato.

Foi quando
arremessou um lança de madeira contra o velho oitizeiro
- que nele ainda balança até hoje - e  as  suas asas
foram em busca do destino
que era puramente humano
mas jamais fôra um sonho humano
mesmo com todas as suas cores possíveis.

“Quando a criança era criança
andava balançando os braços
e não sabia que era criança
queria que o riacho fôsse rio
que o rio fosse torrente, e  poça d’agua, mar
e tudo era cheio de vida
e a vida era uma só”.

Quando a criança deixou de ser criança
o mar já se transforma em rio
e o rio em poças  e as poças em gotas d’agua
e as gotas d’agua  no vento seco do deserto
e desapareceram as asas e houve   o regresso
ao único átomo e suas derradeiras partículas
e a criancinha loura então aprendeu a dançar.

E quando a criança não era mais criança
ficou imóvel com os braços e o sorriso
e não acreditou mais que o  riacho era rio
e o rio torrente e a torrente era o mar
e viu que nem tudo era cheio de vida - e também
que já tinha hábitos e opiniões e sabia dançar
e a vida, enfrentando-a, não era uma só

e já não havia mais nem asas nem a magia do tempo.

                                       
                                                  Norwergian Star, no mar do Caribe, 9 agosto 97
                                                                                   

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 Página editada por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  20  de  Julho  de  1998