Álvaro Pacheco

Este Homem
                      
  
I –
  
E então um deus  falou:

Este é  um homem condenado
por todos  seus sonhos,  
e deveria, mas nunca
será redimido
ou conhecerá a  salvação
porque  conheceu o fogo
e é,  em sua carne, o fogo
que queima mas não destrói
como a música desesperada
o instinto incontrolável e suicida
de todos os sonhos condenados,

este homem
é  um ritual autofágico
de tambores 
dos trumpetes extranhamente silenciosos
com seus sons diabólicos,
a  mágica do inferno
no cérebro, na alma, nos ouvidos
e as perdições humanas e suas cadeias
e as cordas dos instrumentos e  as flores -

este homem
estará para sempre condenado,
não existe caminho
por onde lhe escape o  destino
e que o proteja das profecias -

talvez alguém
lhes diga um 
quem era este homem.

II -

E o outro deus disse:

Este homem está salvo
porque foi tão esmagado
e tão repleto e consciente
dos sons, das tristezas, do fogo ,
das condenações e das mágicas
(como o funeral de um anjo)
que ele irá conquistar -

e fará explodir
todos os trumpetes,  tambores,  peias,
destinos e profecias ,

que será salvo
como os fios de ouro
que costuram o céu
e tecem as flores
e  os sonhos da terra,
como foi prometido
a cada um dos homens.

Algum dia
talvez alguém
venha lhes dizer..
 

III -

Agora eu lhes revelarei:

este era o seu segredo, como uma herança - e ele  nada jamais revelou sobre isto. Em voz alta: escapar é fugir. Algumas vezes, ficar é tambem um esforço humano para continuar fugindo. Ele conhecia bem o inferno e ainda os seus segredos. Jamais sonhou com a salvação enquanto esteve condenado. Tentou perceber todos os seres humanos e dissecar a saga da humanidade. Percorreu todas as florestas de sua infância, andou por dentro das árvores, no coração das flores, no mistério das abelhas. Aliás sempre lhe fascinaram os mistérios e as magias. Mas, veja bem, nunca preocupado ou  imaginando o que fosse a salvação, porque ele tinha consciência de que nenhum ser humano merece salvar-se. Nenhuma carne merece salvar-se. Nenhum espírito pode ser salvo - a mente humana não apreende a salvação. Nenhum destino foi preparado para a salvação. Porque salvação, desde que é um conceito sobrenatural, está alem da carne e do espírito, os quais, de certa forma, igual a ela, tambem são ficções humanas. Conheci este homem profundamente. E agora posso informar-lhes : ele sempre tentou. Qualquer coisa poderia acontecer: não lhe interessava. Conscientemente. O que  viu o tempo todo foi exatamente o que ele disse e no que sempre acreditou: nada. Desde que nasceu, por algum inexplicável  acidente ou milagre, como, aliás , todos os de sua espécie, ele não compreende. Tudo que existe são apenas palavras - e nenhuma palavra faz sentido quando se  trata da vida real. A salvação não é um objetivo da vida, porque a vida, quando ela se inicia, já está de todo perdida. E isso , este homem sabia. Não o atormentava salvar-se ou ser condenado. Mas a morte.

 Isto eu devo lhes dizer.

                                       
                                                                                                                                  Rio, 20 março 96.
                                                                                   

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 Página editada por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  20  de  Julho  de  1998