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Jornal do Conto

Ana Guimarães


 


Peter Pan



 

Ao contrário de Peter Pan, que não se lembrava do que vivera momentos atrás, jamais esqueci do impacto que me causou a primeira leitura das aventuras desse menino que não queria ( porque tinha medo, porque não podia) crescer. Lendo agora a bela tradução de Hildegard Feist do original de J.M.Barrie, logo após assistir ao filme, tudo me veio à lembrança novamente.

É perigoso não recordar, não trazer de novo ao coração, à emoção: o resultado pode ser a repetição, sintomaticamente falando, incorrer nos mesmos erros. Sem história nada se aprende e não se cresce mesmo. Por outro lado, na escuta repetida do relato dos contos de fadas, Peter intuitivamente soube estar a direção de sua cura, ou pelo menos, a que estava a seu alcance.

“Depois que mato alguém eu esqueço” dizia Peter referindo-se à morte do Capitão Gancho. Ou seria a (simbólica) de sua mãe?, visto que “desprezava todas elas”. Tendo “... assistido a muitas tragédias, se esqueceu de todas” para sobreviver emocionalmente. Contudo, seu esforço constante para o esquecimento do trauma, o bloqueio de lembranças indesejáveis faz com que sofra de lapsos de memória de outras pessoas e coisas.

“Dois é o começo do fim” assinala o narrador logo no primeiro parágrafo do livro. Isso se dá quando deixamos de ser um só com nossas mães, quando nos percebemos distintos delas, concomitante ao surgimento de um terceiro que, cortando a simbiose, nos fará crescer. Além do mais, com dois se faz mais um. Estamos falando de sexo, portanto, de deixar de ser criança e passar a ser adulto, por isso Peter Pan não pode entender, muito menos corresponder (sequer sabe o que é um beijo) aos olhares de Wendy. Por isso a música cantada pelos eternos meninos:

“As roseiras nós fizemos
Não fizemos os bebês
Pois decerto não podemos
A nós mesmos nos fazer”

 

A Terra do Nunca, do impossível, da imaginação, é pra lá que as crianças estão sempre indo e aportando. Adultos também, toda vez que o encontro com o real se torna insuportável. Artistas o fazem com mais facilidade e freqüência, e ainda com elegância: sua extrema sensibilidade talvez os habilite a isso.

“Quando as crianças morriam (Peter)... as acompanhava um pedaço do caminho, para que não tivessem medo”. Seria ele um anjo? O espírito de uma criança morta prematuramente por desleixo? Por maus tratos? Abandonada? Perdida? Abortada? Fugida de casa porque rejeitada?

Já Sininho é uma fada. Fadas são sonhos e sonhos são como Deus, se deixamos de acreditar nele, ele deixa de existir (pra nós), morre. E são elas (a crença nelas, na magia) que nos fazem voar, levitar, sentirmo-nos nas nuvens, ver estrelas, transcender, criar. Se a gente se lembrar do trauma, da decepção, cai. “Ninguém se recupera da primeira injustiça, exceto Peter. Ele muitas vezes a encontrou, mas sempre a esqueceu” – é sua maneira de se defender. Preso no amor a si próprio, no narcisismo: “Eu não sou maravilhoso?” Pergunta freqüentemente, com arrogância.

As fadas, nos conta ele, por serem tão pequenas, só tem lugar para um sentimento de cada vez, são radicais, ao contrário de nós, pobres mortais, humanos, porque divididos, contraditórios, mas também maiores porque abrangentes em nossos sentimentos. Não precisamos ter emoções excludentes, somos grandes o suficiente, temos espaço para sentirmos muitas coisas ao mesmo tempo.

Uma outra leitura pode ser: só crianças freqüentam a Terra do Nunca, pois “só as crianças entrarão no reino dos céus”, ou quem se mantiver como elas, sua porção infantil intacta. Fé. Acreditar em tudo. Não se lembrar do ontem. Hoje é o que importa. Amanhã será um novo dia. Zerando, recomeçando.

Sempre que fico muito séria, compenetrada, alguma coisa dentro de mim grita como na Wendy adulta: “Mulher, mulher, deixe-me sair”. Deixe-me ser criança outra vez, alegre, inocente e sem coração, no sentido de inconseqüente, imprevisível. Deixe-me voar! Só assim viver (e quem sabe? morrer) será uma grande aventura.

Wendy, na verdade, pode ser vista como a protagonista desse enredo já que é dela que emana toda a história, é sua vida que é contada desde o início, enquanto que de Peter Pan o pouco que se sabe é envolto em mistério, verdadeiro enigma.

Ela é instada a crescer, se comportar como uma mocinha, ser treinada pela tia para freqüentar – ou enfrentar – a sociedade. Para ver e ser vista. Escolher e ser escolhida. Encontrar um parceiro com quem formará uma família. Mais realidade e menos brincadeiras doravante. Deve assumir responsabilidades, deixar de ser criança (já que não o é mais), com tudo de bom e de ruim que isso implica. Ela vê a ginástica que seu pai tem que fazer para se adequar às normas, para ser aceito, os desafios que encara, seus medos e inibições, o quanto tem que paparicar os outros para se dar bem, e isso naturalmente a assusta e a desencoraja.

Quando aceita o convite de Peter Pan para fugir rumo ao mundo da imaginação (onde ninguém cresce) é por sentir-se tentada a isso. Mas acontece que ela já tinha sido mordida pela vida adulta, pela pulsão sexual que latejava. Já quer um beijo dele e já tem inclusive a malícia de, na segunda oportunidade que se apresenta trocar a palavra beijo por dedal a fim de ser bem sucedida. Já o envolve numa atmosfera romântica, embora sem resultado. Então se desilude, cogita até em ficar com o pirata, o Capitão Gancho, que no filme é representado pelo mesmo ator que faz o papel de seu pai, não por acaso: aqueles mesmos olhos azuis quase lhe seduzem, como se fosse para lembrá-la do Édipo vivido e sua necessidade de superá-lo, de elaborá-lo, e partir para outros objetos desejados, não proibidos, não mais paralisada na imagem paterna interditada, encarar a sexualidade com as dores e delícias inerentes a ela. Cansou de voar (eufemismo para transar, em sonhos).

E quando percebe que está se esquecendo de seus pais (e o que eles representam) sente que é hora de voltar. Pra crescer é imprescindível recordar, e ela levará quem quiser crescer com ela: seus irmãos e os meninos perdidos (Peter Pan não quis, ou não pôde).
No final do livro ela aceita amadurecer desde que tenha férias periódicas na terra da imaginação, como se a cada ano avaliasse o que serve e o que não serve, fizesse uma faxina na sua porção infantil até que tenha filhos e passe para eles (e assim por diante) esse buraco do impossível (a terra não é do Nunca?), pois essa é a única transmissão possível de pais para filhos, é essa falta, essa incompletude que possibilita desejar, fantasiar, criar, produzir.


 

 

 


 

11/11/2005