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Aleilton Fonseca

 

A musicalidade explícita do
poeta José Nêumanne

 

 

Em As Fugas do Sol, CD em que o escritor 'canta' 30 de seus poemas, poesia decantada e música se envolvem e dialogam, ressaltando a lírica e a cadência particulares de seu autor
 

Por Aleilton Fonseca

in Jornal da Tarde,
10 de julho de 1999


 

As Fugas do Sol é um expressivo título tanto para um livro de poemas, como para um disco de música. No caso, é as duas coisas: poesia e música reunidas num CD, em que o poeta e jornalista José Nêumanne Pinto declama 30 poemas de sua autoria, escolhidos do livro Solos do Silêncio (1996). As músicas que acompanham os textos foram compostas por Marcus Vinícius de Andrade especialmente para a edição.

A publicação de poesia em CD é ainda pouco cultivada entre nós. Mas já é hora de se considerar esse objeto lítero-musical, desenvolvendo uma crítica que avalie a qualidade dos textos, a declamação, a música, enfim o projeto como um todo. As Fugas do Sol é uma produção exemplar do gênero. O registro da voz do autor agrega um valor especial, tornando o CD um marco e um testemunho importante de sua carreira. Aliás, a performance de Nêumanne vai além desse registro. Sua voz tem qualidade elocucional, é firme, atraente, bem impostada, não perde a naturalidade. Além de recitar bem, ele se dirige indiretamente a quem o ouve, dando breves explicações sobre a escolha, a concepção e as circunstâncias de criação dos textos. Esse procedimento aproxima o ouvinte, que tem a sensação de estar assistindo, frente a frente, o autor "falar" seus poemas.

De fato, o contato com a voz do poeta é um atrativo a mais. A audição não substitui nem ameaça a leitura do poema no livro, experiência particular em que o próprio leitor projeta sua voz, sua entonação, seu ritmo. Entretanto, na leitura silenciosa ou mesmo em voz alta, nem sempre a musicalidade do texto é bem (re)produzida pelo leitor. A gravação, com tratamento artístico profissional, acrescenta uma outra possibilidade de apreciação em que a voz, o ritmo e a entonação refletem mais fielmente a vontade do autor. Enquanto isso, o fundo musical desperta ou intensifica a sensibilidade do ouvinte, criando condições mais propícias à recepção estética. No CD de José Nêumanne isso é bastante evidente. A música de acompanhamento não é um mero enfeite, mas se coloca em diálogo, ocupando as pausas normais da declamação e evoluindo ao lado dos versos sem se sobrepor. O compositor Marcus Vinícius utiliza recursos da ambiência musical nordestina, mistura elementos eruditos e populares, cria frases e acordes precisos que enfatizam os temas, numa perfeita conjunção com a voz e a emoção do poeta.

Mas tudo isso seria um esforço vão se os poemas fossem simples "letras", se não tivessem a qualidade que garante seu estatuto poético, mesmo no silêncio das páginas de um livro. Ora, José Nêumanne Pinto é, sem favor, um dos nossos melhores poetas contemporâneos. Críticos exigentes como Ivan Junqueira, José Paulo Paes e Nelly Novaes Coelho já destacaram as virtudes de seus temas e de sua linguagem. Nota-se a sua força lírica ao tematizar a cultura sertaneja, haja vista "O encontro de Cristino com Virgulino na viola de Seu Raimundo", "Desafio de viola repentina e guitarra elétrica", "Na casa avoenga" e "Seresta sertaneja". Outra fonte criativa são as experiências de viagem, como se observa nos cinco poemas da série Barcelona, e as vivências paraibanas, poetizadas nos sete textos da série Borborema. As composições breves, como "Discurso" e "Tríptico marinho", são momentos de condensação lírica, em que o poeta mostra a sua habilidade, o seu "drible curto" e inventivo com as palavras. É preciso citar também "Lua no lago", dedicado a Octavio Paz, cuja figuração plástica, sonora e semântica encanta o leitor mais exigente. Os versos de Nêumanne têm uma eloqüência envolvente, fluem com agilidade e não se dispersam. O autor sabe extrair os significados viscerais das palavras e das frases, fazendo associações e criando metáforas surpreendentes. Um exemplo disso é "A seara de Saramago", dedicado ao escritor luso, um canto de crença e louvor à língua portuguesa. Neste e em outros poemas, como "Decomposição da folha", as referências intertextuais extrapolam a mera citação, se reelaboram e se impõem com sutileza, de modo que os sentidos originais se agregam a novas conotações poéticas, bem ao estilo neumanniano.

A poesia recitada por Nêumanne tem uma estrutura melódica que mescla os recursos da oralidade e dos cancioneiros populares com a dicção da lírica erudita. Talvez venha daí a força do ritmo, da acentuação e da pontuação de seus versos, à feição do ágil compasso binário. Quem solfejar os poemas vai perceber o valor musical das pausas. Elas suavizam a cadência, criam uma expectativa agradável e cedem espaço para a música instrumental emergir. O equilíbrio entre a fala e a recitação garante a espontaneidade do discurso, que nunca se torna solene ou cansativo.

O título do CD é sugestivo. As "fugas", como canto lírico, seriam um modo de conjurar a transitoriedade da existência. Por sua vez, "sol" representa o tempo e a fonte da vida que é a matéria dos poetas. Na forma, os poemas tendem a reiterar o ritmo, a cadência e a melodia. Por isso comportam a acepção musical de "fugas" como variações sobre um mesmo tema, que não é outro senão a própria vida imersa no mundo da cultura. Enfim, se ler As Fugas desperta emoção estética, melhor ainda é ouvi-las, saboreando a música de Marcus Vinícius e a poesia de Nêumanne.
 


AS FUGAS DO SOL, de José Nêumanne Pinto. CD, CPC-Umes, 40 min., R$ 15,00.

Aleilton Fonseca é escritor, doutor em Letras (USP) e professor (UEFS)
 

 

José Nêumanne Pinto

Página de José Nêumanne Pinto

 

 

Albert-Joseph Pénot (French, 1870-?), Nude with red flowers in hair

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Carlos Felipe Moisés