Riviere Briton, 1840-1920, UK, Una e o leão

 

 

 

 

 

Márcio Catunda

 

DEMÔNIO ILUMINADO:

(Pensamento e vida de José Alcides Pinto)

(Continuação)

 

Infância e juventude sob o estigma do sofrimento

 

            Durante a viagem que fizemos à fazenda “Terras do Dragão”, Alcides recordou, entre outros momentos de sua vida, aspectos de sua infância e adolescência, as aventuras e as decepções, os sofrimentos e os êxitos que conquistou durante sua permanência no Rio de Janeiro, e esclareceu-me pontos de vista relativos à sua concepção poética. Disse-me, por exemplo, que compreende o homem do sertão [M1] [M2] por ter sido criado a beira do rio Acaraú e ser filho de um sertanejo. Seu pai era lavrador e ribeirinho. Pescava de tarrafa e de anzol como ainda hoje fazem os ribeirinhos da região. Nesse ambiente árido, cercado de serras e palmeiras, viveu as experiências que se tornaram patrimônio do homem adulto e se transpuseram para a sua obra. A infância é prodigiosa na formação de todo indivíduo. Tem imagens que o adulto carrega para sempre na memória.

            Alcides partiu da região de Santana do Acaraú com 10 anos de idade, mas nunca a desprezou. Após haver residido em grandes cidades, voltou sempre às origens. Retorna sempre ao sertão onde tem a satisfação de conviver com seu povo sofrido e humilde, com o qual se identifica e no qual se inspira para escrever seus livros. Recorda-se de que em sua infância muitas vezes passou fome, seu pai e sua mãe eram muito pobres. Houve um tempo em que a situação estava tão difícil que seu pai foi obrigado a colocar os filhos debaixo de um juazeiro, quase morrendo no calor sufocante do sertão, para que quem passasse os levasse. Não a maneira de Abrãao. Não para submeter-se a uma provação divina, mas simplesmente para sobreviver, para que os filhos não morressem de fome. Quando Alcides era criança, seu pai viajava com animais emprestados, comprava pedaços de bofe do mais barato que tinha no Estreito e a família comia bofe com farinha. A penúria o marcou tanto que, segundo afirma, esgotou-se-lhe a capacidade de ser bom. Seu pai, José Alexandre Pinto, conhecido que era como “poeta testamenteiro”, (fazia os testamentos de Judas na Páscoa), também era curtidor. Tinha os pés rachados da cal e da cinza crua --- elementos que utilizava na curtiçao do couro de gado e miunças. Tinha uma vida muito sofrida, pagava suas dívidas, inclusive os estudos dos filhos, com farinha e feijão. Alcides via seus irmãos passando fome e queria ajudar o pai a sair daquela situação miserável. E realizou, com sacrifício, o sonho de estudar e viver em melhores condições que as de sua família, chegando a auxiliar com alguns recursos financeiros os seus pais enquanto eram vivos.

            Aprendeu as primeiras letras no povoado do São Francisco do Estreito e depois fez o ginásio em Massapé, onde trabalhou como operário da construção civil e auxiliar de padeiro. Em seguida foi para Fortaleza. Estudou então no Liceu do Ceará e posteriormente, completou o curso secundário no Colégio Pio Americano, quando foi para o Rio de Janeiro. Em Fortaleza, chegou a morar na Casa do Estudante, onde conviveu com o poeta boêmio Sidney Neto, com quem muito aprendeu. Sidney Neto costumava dizer-lhe: “Pintinho, se você quer ser um poeta, estude”. Disse que com ele aprendeu, entre outras lições, a mania de andar nu dentro de casa. Mas só ficava nu quando estava só. Se aparecia alguém, logo se vestia como o mais recatado cidadão.

            O poeta conta com júbilo as virtudes que aprendeu com seus pais. E seu pai, oriundo da Ribeira do Acaraú, herdou a franqueza, a disposição para o trabalho, a fé em Deus, a capacidade para educação dos filhos e lealdade aos amigos. Mas também o temperamento resoluto e forte. Se um ladrão o atacasse ele lutava até vencer. Saía com 60 animais alugados e apenas um arrieiro, levando couro curtido e cera de carnaúba para vender. Foi muitas vezes atacado pelo caminho e botou pra correr os gatunos. Nesse sentido JAP se considera igual ao pai --- terno, amoroso, mas desabusado. Não leva desaforo para a rua e também não os traz pra casa. Diz que não tem medo de nada, só da palavra de Deus. De sua mãe, Maria do Carmo Pinto, nascida na região de Crateús, aprendeu o altruísmo, a ternura e a dedicação aos filhos. Mas também a firmeza de caráter. Ela dominava os filhos com o olhar.

            O sangre de cigano e a vontade de aprender o impulsionavam para mais além. Sentiu necessidade de partir do Ceará e foi ao Palácio do Governo pedir ao então governador Gomes Muniz uma passagem de navio para o Rio de Janeiro. Recebeu uma passagem de terceira classe e viajou no porão, dias e noites vomitando. No convés do navio encontrou-se com Braga Montenegro, que ia na primeira classe, sentado numa cadeira espreguiçadeira. Durante o trajeto manteve longas conversações com aquele escritor cearense, que já o conhecia através dos artigos que JAP já naquele tempo escrevia para a imprensa de Fortaleza. Mas o acaso, ou o espírito de aventura, não permitiu que JAP fosse direto para o Rio de Janeiro. Quando o navio fez escala em Recife o poeta se encantou com a cidade, com a beleza de suas pontes e de suas mulheres e não voltou ao navio. Passou ali quatro anos, dois em completa vadiagem e dois trabalhando no Diário de Pernambuco, como revisor, emprego que conseguiu graças ao poeta Mauro Mota. Frequentava o restaurante da Faculdade de Direito, onde conheceu Deolindo Tavares. Fez amizade também com Ascenso Ferreira. Em Recife conheceu Maria das Neves Sobreira, alta, magra, bonita, (a moca de blusa azul, de sapatos de nuvem, que menciona no poema). Morava atrás da Praça 13 de Maio. Tornou-se o seu primeiro amante. Ela lhe deu forças para permanecer ali o tempo que permaneceu. Quando se tem amor, ama-se a cidade. Em suas andanças na Veneza brasileira escreveu dois livros: As Pontes e os Catadores de Siri. O poema Rua da Imperatriz começa com o verso: “todas as pontes do Recife atravessadas no meu peito”. Nesse período sua diversão  era observar os meninos pobres que catavam siris nos mangues do rio Capibaribe. Identificava-se com aquelas crianças, sentia-se pobre e marginal, “suando nos mangues de lama. Fezes. Febres”. Sua vida era um osso duro de roer, a liberdade era lama, e via os meninos como bichos dos mangues, espectros da lama.

            Depois dessa fase de penúria em Recife foi para o Rio. Chegou sem dinheiro, procurando a Praça Tiradentes e o jornal Imprensa Popular, onde entregaria a Osvaldo Peralva uma carta de recomendação do poeta Aluizio Medeiros, datada de quatro anos atrás. Mesmo assim conseguiu emprego no Jornal do Partido Comunista, embora não compactuasse integralmente com a sua ideologia. Um dia, quando saía do jornal na companhia do romancista alagoano Airton Quintiliano, de Humberto Teles e outros, foi preso com todo o grupo. Deram-lhes socos, ponta-pés, pancadas na cabeça e os levaram como um carregamento de sacos. Nus, no pátio de penitenciária, estavam diversos companheiros, como José Maria Crispim, João Amazonas e Astrogildo Pereira, capturados na mesma emboscada. Eram mais de trinta na cela. Na pia não havia água. Passaram quatro dias quase sem comer e sem beber. Cuspiram-lhes na cara, deram-lhes bordoadas na cabeça. Por fim dos quais foram libertados, graças a um habeas corpus impetrado por Pedro Pomar, que na ocasião era Deputado Federal. Clotilde Prestes, irmã de Luis Carlos Prestes, também detida, gritava, numa cela em frente, com os olhos de falcão: “Aguentem companheiros, não abram mão, companheiros!” Os policias diziam, “vou tirar tua roupa, sua puta!” E ela retrucava: pelegos, moleques, canalhas, escroques. O povo fará justiça.

            Alcides conta que se decepcionou com o partido, porque ao escrever um poema louvando os seios lindos de Zelia Magalhães, uma dirigente, líder da causa, os comunistas não aprovaram os versos, dizendo que revolucionário não podia ser romântico, tinha de falar era de sangue. Por fim largou o jornal e ficou dormindo ao léu. Vivia com os nervos esfrangalhados, com receio de uma nova prisão, escondido pela casa dos amigos. Tinha pesadelos terríveis: os agentes de polícia o perseguindo com cães amestrados. Foi no tempo em que passou uns meses na pensão de D. Livramento, no Morro de S. Teresa, num quarto de paredes lodosas, coberto de mofo, cheio de ratos e baratas. Com o companheiro de quarto, Agostinho, um estudante maranhense, acadêmico de engenharia, em igual situação, sem emprego, passava fome e perambulava pelas avenidas do Rio de Janeiro. D. Livramento queria expulsá-los porque não pagavam o aluguel e eles decidiram abandonar a hospedaria. Dormiram muitas noites no Passeio Público, com corjas de vagabundos cheios de talhos nos rostos e nos braços. Por fim Agostinho, sempre pessimista e revoltado, adoeceu e foi definhando aos poucos. Morreu tuberculoso num sanatório para enfermos indigentes. A visão e a lembrança do cadáver do seu companheiro de sofrimento o atordoaram durante muito tempo. Guardou-lhe os despojos: calças surradas, camisas esburacadas e alguns livros.

            Alem de Agostinho, Alcides tinha um amigo de nome Airton, um condutor de bonde a quem dava aulas de português, o qual, como pagamento, dividia com ele o próprio almoço. Nessa época dormia num barraco no morro Santo Antonio. Tempos depois reencontrou Dona Livramento, que quando tomou conhecimento da morte de Agostinho ficou muito penalizada, arrependeu-se profundamente de haver maltratado aquele jovem indefeso, que antes considerava preguiçoso e vagabundo. Com pena e medo de que Alcides tivesse um fim semelhante resolveu acolhê-lo de novo. E de fato o poeta já se achava enfermo, com uma úlcera duodenal, cuja operação decidiu antecipar. Foi a primeira de uma série de cirurgias a que se submeteu. Estando internado numa clínica pelo menos estava a salvo das investidas da polícia. O restaurante de UNE vivia infestado de alcaguetes e Alcides, que havia passado uns dias na casa do líder comunista Pedro Pomar, em Laranjeiras, desconfiava que estava sendo seguido por detetives da Polícia Federal. Quase fora preso novamente durante uma invasão da UNE pelos policiais. Os policiais entraram com cassetetes batendo em quem aparecesse pela frente. Umas duas ou três cacetadas resvalaram-lhes pelos braços, sem pegar de cheio na cabeça ou no pescoço. Conseguiu escapulir, correndo. Quando quiseram agarrá-lo, ficaram só com o paletó na mão. Escreveu todas estas experiências no livro Manifesto Traído - Depoimento Memória.

            Depois de ter sofrido estas agruras, com pouco mais de 20 anos de idade, arranjou emprego de bedel no Colégio Pio Americano, em São Cristovão, e conseguiu fazer o vestibular para a Faculdade Nacional de Filosofia. Trabalhou 3 anos como bedel, só pela comida e os estudos. Era um dos maiores colégios internos do Brasil. Para ingressar no colégio, foi JAP atraído por um anúncio no Jornal do Brasil. Apresentou-se para o concurso, mal vestido, despenteado, juntamente com dois candidatos que apareceram na mesma hora. Pensou que fracassaria. Um dos candidatos era um baiano, pernóstico, que levava uma pasta cheia de cartas de recomendação, e outro, um cearense. Ambos pareciam muito inteligentes e que fizeram antes dele a entrevista com o diretor do colégio. Quando chegou sua vez, ele teve um diálogo genial com o diretor. Recitou alguns poetas para o futuro patrão. Sabia de cor alguns sonetos de Augusto dos Anjos, Castro Alves e outros bardos. O diretor perguntou-lhe o que sabia fazer, além de declamar poesia. Ele disse, sou revisor. E o diretor respondeu: “mas aqui não tem lugar pra revisor, eu preciso de uma pessoa pra trabalhar na disciplina com os alunos”. E Alcides respondeu: “um inspetor de alunos é a mesma coisa de um redator ou revisor, basta que seja pobre e necessite de emprego. Além disso, não é o curriculum nem a carta de recomendação que provam a capacidade de trabalho de um cidadão. Mas a educação e a pobreza é que o dignificam”. Então, o diretor olhou bem para a sua cara e mandou que saísse. Depois, o fez entrar de novo e decidiu dar-lhe o emprego. Mas Alcides muito sofreu no trabalho de bedel. A maioria dos alunos, filhos de gente rica, mostrava um caráter perverso e insolente. O chefe da disciplina, cujas ordens obedecia, era um bruto. Perseguia os seus subordinados, procurando achar neles a mínima falha para pedir que o diretor os demitisse. Mas o sofrimento ainda foi maior quando JAP deixou o colégio e quase morre de fome, no período subsequente em que ficou sem emprego. Nesse tempo, lembra-se de uma noite em que, de tanta fome, comeu uma banana podre, roída, que encontrou jogada na porta de um restaurante, apesar do medo de que a fruta estivesse impregnada com veneno pra rato.

            Durante sua estada no Rio criou parte importante de sua obra. Realizou curiosa experiência literária, quando residiu algum tempo numa clínica psiquiátrica. Foi morar no manicômio de livre e espontânea vontade, segundo me assegurou. Essa proeza, por inverossímil que pareça, começou quando resolveu escrever um artigo sobre um livro do Dr. Neves Manta, psiquiatra que o convidou para fazer uma pesquisa na Clínica de Repouso que dirigia, em Petrópolis. Ali José Alcides escreveu O Criador de Demônios e Entre o Sexo: a Loucura/a Morte. Seu método de trabalho era a observação criteriosa do comportamento dos loucos. Anotava-lhes a conduta discretamente, porque eram furiosos. Envolvido no clima do manicômio, confessou que os loucos tomaram conta dos seus sentidos, mas o final foi feliz. Mostrou os originais ao Dr. Neves Manta e este lhe arranjou um editor. Mas ficou com os loucos na cabeça durante muito tempo. Escreveu os livros, fez a pesquisa e aproveitou para fazer também um tratamento. Na clínica, encontrou loucos geniais, como a pintora Mausie, que o amou intensamente, antes de suicidar-se. “Entre o Sexo: a Loucura/a Morte” foi interditado pela ditadura militar. Depois de alguns anos voltou à clínica, para continuar escrever outros livros e tentar melhorar o juízo. “Tracei minha orbita como um astro, minha musa é minha via crucis, minha salvação. Escrevi tanto que perdi a conta, mas pelo menos guardo de memória ao todo 95 títulos. Aleluia! Sou a luz do mito, o reflexo do anjo”. Os Cantos de Lucifer também foram  escritos no Rio, no ano de 1954. Alcides acha que estava fora de si quando o escreveu. Vivia como um marginal, numa época de desespero. Era aluno da Faculdade Nacional de Filosofia, mas estava desempregado, passado fome. Foi na fase em que dormia nos bancos das praças, na companhia de facínoras e meliantes. Já não acreditava mais em nada: religião, amor, família, amigos nada fazia sentido. Estava se transformando num bruto, mas tinha a consciência acesa como um astro cintilante. Escreveu os Cantos de Lúcifer em folhas de jornais sujas de excremento e que eram usados pelos marginais que dormiam nas ruas. A poesia o salvou da escuridão, retirou-o da lama e do caos. Os Cantos de Lúcifer foram prefaciados por Cassiano Ricardo que o aplaudiu com generosas palavras. E pouco a pouco JAP foi conquistando a consciência de uma nova dimensão e as vitórias começaram a surgir. Fez amizade com muitos escritores que o apoiaram e o incentivaram, como Graciliano Ramos, com quem almoçava de vez em quando, e Rachel de Queiroz, que encaminhou a primeira versão do livro “O Dragão” para a Editora O Cruzeiro, cujo responsável na época era Herberto Sales. Muitos desses escritores fizeram resenhas, dando testemunhos favoráveis aos seus primeiros livros. Sergio Milliet, Gerardo Mello Mourão, Assis Brasil, José Louzeiro, Fausto Cunha, Álvaro Lins, Gilberto Amado entre outros, deram depoimento de aprovação de sua obra.

            Viveu ao todo 17 anos no Rio de Janeiro. De 1955 a 1972. Ali casou-se com uma carioca, uma negra que se chamava Beatriz do Nascimento, com a qual teve uma filha de nome Belkiss, que reside em Paris. Depois que separou da primeira mulher, passou a viver com outra, de quem teve dois filhos, Paloma e Junior, que moram no Rio. Confessa e reconhece que era muito boêmio naquela época, colecionava calcinhas das mulheres que formam suas amantes. Uma delas era a Irene Santos Caldas, uma pianista de renome, irmã do Sílvio Caldas. No Rio conheceu e conviveu com os maiores nomes da literatura brasileira. Retornou definitivamente a Fortaleza quando o casamento não deu certo. O trauma do desquite ou o espírito nômade o induziu a largar tudo, o apartamento que tinha e o emprego recém-arranjado na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

 

            A literatura como predestinação

           

            A literatura é efetivamente uma predestinação em sua vida. Escritor de poemas, romances, ensaios, contos, voltado obsessivamente para a arte literária, faceta de sua rica personalidade, alem do seu gosto pela vida no campo, seu lado camponês que curte a fazenda e que já criou gado, nada poderia desviá-lo de seu objetivo primordial. Impossível exercer outra atividade com tal plenitude. Jamais seria outra coisa senão escritor. Diz que é um homem rural e urbano ao mesmo tempo. Um camponês com o verniz da civilização. Viveu na agitação de uma cidade como o Rio de Janeiro, como na pasmaceira do sertão. E em ambos os lugares experimentou e aprendeu o sofrimento imprescindível à criação de sua obra. Trabalhou na redação de jornais e na universidade como professor. Mas para defini-lo de maneira exata bastaria dizer: José Alcides Pinto, profissão poeta. Como poucos artistas da palavra, Alcides jamais viveria sem uma pena na mão, ou como bem disse o escritor Gerardo Mello Mourão, com uma mulher escanchada nos ombros. Em síntese, não se adaptaria a outra modalidade de vida que não fosse a de escritor. Só no exercício de seu ofício sente-se integrado à natureza humana e divina. Não se satisfaria como engenheiro, médico ou aviador. Poeta eclético, que escreve em todos os gêneros da literatura, declara que nasceu para ser escritor. Uma de suas qualidades que mais me impressionam é a obsessão em publicar e divulgar seus livros. Muitas vezes, quando o visitei, como não sabe dirigir, levei-o em meu carro aos jornais de Fortaleza, onde entregaria algum artigo, contactaria algum jornalista para programar entrevista ou procuraria fotografias suas nos arquivos dos periódicos, entre outras coisas. De fato, toda atitude sua e tomada em função de escrever, publicar e divulgar sua obra. De resto, como certamente não sabe fazer outra coisa tão bem quanto escrever, é justo que se entregue por inteiro à sua arte e fuja de pessoas que não têm interesse por literatura. Alcides procura a companhia de pessoas de sensibilidade, criativas. Nesse tipo de companhia é que se compraz. O poema “Angoisse” ilustra sua obsessão literária. Nele JAP diz: “fora do meu antro me desabito --- ostra inexorável --- /decepado e indizível, declino e me elevo/ apalpo o corpo - invólucro diuturno/ maldita composição de sal e carbureto”. Seu antro é a poesia, onde se integra na orbita do imaginário. Sem ela se dissolveria na pulverização do mundo. Fora do seu habitat de poeta, desabita-se qual “ostra inexorável”, vulnerável à mutabilidade.

            Noutro poema que também caracteriza a sua obsessão literária e o seu devotamento à arte de escrever, intitulado “Não estou para ninguém”, revela que a única atividade que o satisfez plenamente é a literatura. Não fora a poesia que escreve certamente não suportaria a vida. Em verdade ela se sobrepõe à própria vida. “Nem amigos nem mulheres me apareçam./Não me chegue o carteiro mesmo com boas novas. Ao mendigo que me bater à porta, fico devendo a esmola. Serei perdulário noutra oportunidade. Agora faço poesia e o mundo que se acabe”. Tudo parece insignificante quando o poeta exerce o oficio órfico, tudo o que não se relacione com o trabalho poético é um desperdício. “Nasci poeta como o rio na foz, a sombra na árvore, o galo na aurora. A arte é uma febre, um momento mágico, divino”, palavras estas que ressoam como um toque de clarim na alvorada.

 

           

            Maldição e misticismo,

            um paradoxo ambulante.

           

            Para interpretar a poesia de José Alcides Pinto é necessário entender-lhe a cosmovisão e a concepção de moralidade. Sua noção de ética é sensivelmente liberal e libertina ou libidinal. Tem, paradoxalmente, aspectos de ortodoxia e certos pontos dogmáticos. Sua filosofia de  vida oscila entre a fé e o ceticismo. O realce que atribui à amoralidade ou a imoralidade de repente se anula, sobretudo quando se trata de honrar os compromissos com os amigos e defender o princípio da solidariedade humana. Embora descrente da bondade dos homens, acredita no valor da justiça. Confia na providência divina, e súbito, duvida do bem e nega a imortalidade do espírito. De revolta, invoca os demônios. Súbito, afirma que Jesus é o seu Mestre e nega a inexorabilidade da vida.

            Embora o misticismo primitivo dos habitantes do sertão seja uma tônica em sua literatura, Alcides não acredita que os fenômenos da natureza estejam vinculados à conduta moral das pessoas, como se crê na mística dos antigos povos orientais e alguns aborígenes. Segundo JAP, é uma ignorância brutal acreditar, como os antigos hebreus, que os fenômenos da natureza estariam condicionados ao merecimento ético das pessoas. Para JAP não faz sentido a aliança que os profetas faziam com o Todo Poderoso, com a promessa de uma conduta fiel em troca da fertilidade da terra e das benesses da natureza. Nem tem cabimento o nordestino pensar que a ausência de chuva pode ser um castigo de Deus. Esse pensamento, no entendimento de JAP, não tem fundamento, pois segundo pensa, a única coisa que altera a natureza são os danos ecológicos, como as queimadas e a poluição, pelas quais a natureza passa a castigar o homem, como uma consequência previsível das leis da meteorologia e da física. Assim, os danos causados ao ecossistema causam perturbações climáticas podem provocar o aparecimento de vulcões e outros fenômenos perigosos. Salvo em tais casos, a natureza vem sempre em benefício do homem. Nessa linha de raciocínio, diz que os deuses egípcios não deram nada ao povo do Egito. Hoje nenhum povo adora o bezerro de ouro, que em nada favoreceu o homem daquela época. Era um atraso cultural a imagem de um boi, mas naquele tempo o homem não podia ter uma visão divina das coisas, não conhecia os princípios superiores do espírito. Os ditadores usavam o bezerro de ouro para manter os fanáticos aos seus pés. Tento argumentar que os rituais de louvor aos bovinos poderiam significar uma forma que o homem primitivo encontrou para reconhecer sua dependência em relação àquele animal do qual precisava na agricultura, atividade imprescindível a sua subsistência. Por isso, de algum modo sentira a necessidade de prestar reverências a quem o ajudava a sobreviver. Mas JAP, em sua ortodoxia, acha absurda esta hipótese.

            Capaz de dialogar com Satã e conservar na parede de sua casa uma foto do Papa, Alcides declara-se um poeta trágico, lírico, social e místico ao mesmo tempo. Por essa razão é que acende uma vela para o príncipe das trevas e outra para o sumo pontífice. De fato, a versatilidade é uma de suas características, já que escreveu livros em todos os gêneros literários, sobre os mais diferentes temas e com as mais díspares nuances de significado e estilo. Entre os estilos adotados, sua criatividade abrange do soneto tradicional ao surrealismo, que prevalece em grande parte de sua obra. E o poema experimental (o concretismo) do qual foi o principal arauto em seu Estado. Nesse aspecto, faz-se notar a fluidez delirante e oracular de certos versos com que, pela escritura automática,  tenta  reconstituir  a  ordem  pelo avesso. A ensaísta Nelly Novaes Coelho destaca, no artigo “Erotismo/Satanismo/Loucura na Poesia de José Alcides Pinto”, os influxos do surrealismo incorporados em sua poética carregada de elementos terrenos e impuros, a saber, a revolta contra a falsidade das instituições burguesas, contra os tabus e preconceitos da moral hipócrita. E relembra com propriedade que esses aspectos terrenos, humanos e perecíveis da materialidade são por vezes ofuscados pelo “visceral apelo de Absoluto”. Nisto consiste a dicotomia radical da arte de JAP. Esse antagonismo básico se configura em sua obra na forma de oposição entre erotismo e ascetismo, amor e morte, ascese e abjeção, lucidez e delírio, etc. O binômio Eros/Tanatos aparece nos Cantos de Lúcifer como forças correlatas, na medida em que o Amor, que afirma a vida, pode anular a ação destruidora da Morte. Não obstante há também o vínculo entre erotismo e satanismo na poética alcidiana. É nesse campo que a idéia de um amor demoníaco, eivado de promiscuidade, se incompatibiliza com a idéia de um sentimento redentor. Nesse particular, há um dado biográfico que suscita curiosidade e ilustra a linha da sua conduta. O poeta passou a reduzir suas incursões na sexualidade promíscua por medo do contágio da aids. Mas o seu instinto de auto-preservação jamais o impediu de escrever, falar e pensar o que quer que fosse, uma vez que seus poemas estão sempre refertos de uma linguagem de desafio e atrevimento, que o emparelha realmente a Lautremont, Rimbaud, Baudelaire e Augusto dos Anjos. Veja-se este exemplo colhido em Cantos de Lúcifer: “Senhor, ensinai-me toda a casta de vícios sórdidos, para que se instale em meu peito o ato da mais vil compaixão. O mal, como o crime, reclama contrição. Prometo, Senhor, ser o mais devasso de vossos filhos, para que me acedas o perdão que apaga as nódoas, limpa o sangue das mãos, varre para distante as sombras negras do coração. Que seriam dos perversos, Senhor, se não obtivessem o vosso perdão?”

            Num artigo escrito e publicado na imprensa cearense louvei o livro “O Amolador de Punhais”, cujo título foi por mim sugerido. Em tom de brincadeira JAP queria pagar-me pela idéia e de qualquer maneira o livro foi dedicado a mim, como agradecimento. Destaquei-lhe a força expressiva dos sentimentos extravasados em vigorosa linguagem. A sua capacidade de combinar o lirismo mórbido com o misticismo, num amálgama de imagens horripilantes em que aparecem esqueletos, megeras, vilões, pederastas, sátiros e sílfides em dança lasciva e sobrenatural. Capaz de perturbar o juízo dos parvos e iluminar o delírio dos loucos, os versos pungentes de ironia e indignação de  “ O Amolador de Punhais” envolvem o leitor pela cadência de inusitado encadeamento frasal e pelas teias de densidade metafórica, cheias de arrebatamento. No aspecto sórdido das perversões e dos instintos, acentuado pelas hipérboles com que descreve as cavernas abjetas da alma, a criatura humana se assemelha ao piolho de cobra e ao escorpião contaminado pelo próprio veneno e perdido num labirinto de maldição e morbidez. A narrativa oscila entre a busca do cadáver de uma criança e a paixão do narrador pela hipócrita Camila, cuja venalidade enseja o questionamento ético e acentua o desespero, o ódio e o terror que exalam das páginas do livro, num clima de pavorosa angústia. Face a realidade do mundo, reduto imundo em que proliferam pragas, chagas e podridões horripilantes, resta a revolta contra a condição do homem degradado pelos vícios e pela sevícia, exposto a fúria infame do assassino a sangue frio e ao escárnio ignominioso do traidor. Resta, na concepção do Amolador de Punhais, realizar um pacto desesperado com a justiça, assumir um terrível compromisso com a verdade, antes que a morte derrame o fel dos seus enigmas sobre o campo de miséria e pusilanimidade da vida.

             JAP se considera um escritor inconformado e seus livros são uma prova dessa afirmação. Por isso, a pecha de maldito lhe soa bem. A revolta fascina os que, como ele, fogem do comum e do convencional e não se acostumam com a hipocrisia. Diz que a burguesia sofre muito em seus romances. Ridiculariza-a a todo momento. O Relicário Pornô, por exemplo, é um livro que se insurge contra a moral estabelecida, e todo o sistema vigente, isto é, a falsa moral, a moralidade burguesa, que é mera opressão disfarçada. Essa pseudo-moral, que reflete os preconceitos de uma classe dominante despreparada intelectual e espiritualmente, é expressa nas escolas e em toda a sociedade. É preciso, pois, repudiar tal forma de entender e dirigir a vida. Portanto, embora seja um místico, acha que nasceu com o estigma da maldição dentro de si. Declara-se um místico em estado selvagem, à maneira de Rimbaud. Não se conforma com a injustiça e a mentira que tornam a vida diabólica. Por isso come as flores do aniversário, é um fauno que vive à margem do sistema e que, portanto, não aceita a fantasia social. É muito angustiado com o tempo e pensa que a vida é desprovida de sentido. Quando reflete profundamente sobre o sentido de existir, a vida lhe parece algo insuportável, ou suportável apenas por causa da literatura.

            O aspecto sórdido e maldito de seu pensamento é consequência de sua concepção existencialista, de sua constante hesitação entre a perspectiva de aniquilamento da vida e a esperança de sua continuidade em outras dimensões espirituais. Mas apesar de sua visão fatalista, vivencia experiências místicas de profunda revelação. Sente a presença de espíritos declamando os poemas que escreve. Ouve vozes e as vezes vê vultos de seres que não identifica. E fica em transe quando atinge o auge do processo criativo. Nesses momentos não ouve e nem sente a presença dos seus familiares, ou das pessoas que habitam sua casa, mas de seres estranhos que povoam o seu imaginário, e que se tornam personagens de suas esdrúxulas narrativas. Depois, estes sintomas desaparecem e, ao que tudo indica, volta à “normalidade”. Assim, o mesmo pessimismo que o impele à maldição e aos embates e conflitos, o conduz ao misticismo, como perspectiva desesperada de salvação. A respeito de seu mais recente livro de poesia, “Silêncio Branco”, disse o mestre Antonio Houaiss: “sua força verbal e mental da a seus poemas normais um conteúdo de canto e espanto que basta para os que crêem que fazer, criar, edificar poesia --- embora por vias infinitamente diferenciadas --  não precisa de simulacros”. Em seu claro depoimento, Houaiss fala ainda de seus “poemas normais e anormais”. 

            A variedade temática da obra de José Alcides converge na concepção do absurdo e do grotesco. Ante a incapacidade humana de desvendar o mistério insondável da morte, resta ao homem a evasão da loucura ou o desespero da rebeldia. Mas estas situações extremas apenas complicam as agruras do pobre mortal, já assediado por demônios e cercado de abismos. Como alternativa à demência e à revolta, haveria ainda o sexo e o sonho, os quais, conquanto soluções  provisórias e paliativas, seriam menos trágicas ou menos diabólicas. No seu inventário criativo, lega-nos, conforme o estado de espírito, a maldição ou o delírio. Duas possibilidades em face do inconformismo que o absurdo provoca. No seu receituário recomenda a danação ou o transe místico. Daí a concepção do niilismo e do fatalismo, passando da maldição ao misticismo desesperado, numa sequência sempre inusitada. Simbolizada pelo culto a Satã e a referência a animais mórbidos, como abutres e morcegos, que aparecem nos romances e poemas, nos Cantos de Lúcifer como nos Verdes Abutres da Colina e em outros textos, a maldição às vezes descamba, paradoxalmente na afirmação do reino divino. Assim, dialoga intimamente com as forças do mal, como no poema “Necrológio”. “Satã, tu, querido Satã, asa rubente de Caim/ à hora vesperal, presto estavas/ à guarda dela, entre as mais cobiçadas de todas”. (Ordem e Desordem). Neste poema, conversa também com o anjo maldito, numa confissão de alto teor metafísico: “a todos bafejaste com teu hálito de vinho podre/ teu ódio ao idílio e tua inveja ao sonho/. Pois nunca conseguiste, ó velhaco mercador de bruxas/ domínio sobre meus áureos pensamentos/ que  não se nutrem de lama podre como os vermes/ mas do fulgor mais alto das estrelas./ Sim, em verdade meus lares desfizeste. Entanto, a alma que anima essa matéria vulgar/ é mais forte que tuas artimanhas/ e jamais terás sobre ela o menor domínio”. No primeiro caso,  o anjo rebelde aparece como aliado. O poeta utiliza o adjetivo que os vincula num laço de afetividade. No segundo, é o inimigo da alma humana, contra o qual precisa precaver-se para que não lhe domine os pensamentos. Outro exemplo notável da ambiguidade espiritual de JAP e da intimidade com que dialoga com as forças do mal se encontra nestes versos do livro “Reflexões-Terror-Sobrenatural”: “Quem te disse, Satã, que minha alma está enferma? Quem te disse que as portas do reino dos céus estão fechadas para ela? Ó velhaco embusteiro, ladrão do óbolo do mendigo, teu farnel de  trevas, roto, só consegue guardar as moedas com que Judas negociou Cristo”. Esse grau de convicção e firmeza pode vacilar subitamente nos momentos em que o poeta se revolta contra a angústia. Nesses momentos identifica-se com luxúria diabólica e assume a necessidade do erotismo satânico. Então, analisa a precariedade da existência corpórea: piolhos, urina e vômitos decoram o palco da vida, já cheio de tarântulas, víboras, pulgas, morcegos, vampiros e serpentes. E uma embriaguês alucinante permeia a trama obsessiva e mágica da fábula alcidiana. Como se vê em “O Amolador de Punhais”: “violei o campo natural e vivo como os escorpiões da lua, de cabeça para baixo, a girar sob as patas, emaranhado em meus anéis, em vôos e círculos precipitados”.

            Sua idéia de um verdadeiro misticismo transparece quando declara, radicalmente, que para pronunciar o nome de Deus, e preciso despojar-se da carne. No entanto não pode abrir mão das tentações do mundo, como a publicidade de sua obra e as delícias do erotismo. Por isso o paradoxo entre o terror e a fé, a aproximação e a súbita negação de Deus: “Porque não existe, Deus existe”. A contradição flagrante se verifica também em Fernando Pessoa, Lautreamont e Augusto dos Anjos, visionários e ídolos de JAP. “O escatológico me persegue e me fascina”, assevera convictamente. “As pessoas malditas assumem sua própria perversidade, possuídas pelos demônios. Os poderosos da política são todos assim. Quanto a mim, faz parte de minha natureza, a integração no universo da condição humana, social, política, mística, religiosa e filosófica”. Alcides julga que certos poetas nascem como o Messias, marcados  pela  estrela dos magos, para sofrer, amar e morrer. E vivem do desespero e da esperança pela salvação. “Sou mais místico do que satânico. O Satanás em minha obra é uma figura de retórica para ridicularizar a mediocridade burguesa. Sou uma montanha de paradoxo. Todos somos tarados. É esta uma faceta da vida”. Acredita que “não existe culpa nem pecado para nada que se faça na vida”. É a consciência do homem que estabelece ou não a culpabilidade. “Não inventamos a natureza, portanto não somos responsáveis por aquilo que não inventamos”. Essas diretrizes  que formam sua verdade íntima o tornam sagrado e profano ao mesmo tempo. Um sujeito mergulhado na sujeira do mundo até a alma. “Não faço concessão ao decoro”. No entanto, acredita que se fosse julgado pelo Tribunal Divino sua bagagem literária lhe “asseguraria o Reino”. “Escrevo por destinação, por uma necessidade orgânica e espiritual. A arte é um tormento e um calvário. Numa entrevista ao jornal Diário do Nordeste, de Fortaleza, perguntado sobre a razão da antonomásia de maldito e fescenino, respondeu: “De que luz São feitos os meus testículos? Meu corpo desprende som e luz, sou uma arca onde guardo poemas e amores mortos, um nicho diante do qual me ajoelho; sou uma boceta que expele urina e proporciona prazer e carrega o orgasmo até o útero onde a vida ser anima. Não faço muita diferença de um redemoinho que levanta poeira da terra, destrói o ninho e a flor, a fragrância e o ócio, mas amo as nuvens, as estrelas e as auroras onde minha alma se ilumina”.

            O sem-sentido da vida está retratado em livros como O Enigma, O Sonho e Estação da Morte, que compõem a trilogia Tempo dos Mortos. Nesses livros o motivo ventral é a situação de um paciente no hospital a espera de sua cirurgia, assaltado pelo sentimento de desespero e expectativa. A angústia dos personagens foi vivida pelo autor, que experimentou semelhante drama em sua vida pessoal. No Poema à Difícil Realidade, publicado no livro Poeta Fui, Ora Direis, sobressai o tom melancólico e as imagens insólitas, características marcantes do poeta maldito: “meu peito é uma arca fechada/ guarda o ruído de um furacão e se contorce como lagarto queimado”. A desolação e o desconsolo em que se encontra o levam a refletir sobre o modo de reencontrar os bens que dissipou: confessa-se um pródigo irremediável. “Que devo fazer para reaver o que perdi?/ Nada; pois perdi o que não tinha/ .../ perdi o que não podia perder: o caminho de casa”.

            Alcides intitula-se “um viadão clássico-moderno” porque está na linhagem de Gide, Oscar Wilde, Proust, Stravisky. Nesse sentido não tem nenhuma objeção a ser assim apodado, e faz mesmo questão de ter esse titulo que considera honorário, de nobreza, uma espécie de lema de vida, um ex-libris, uma legenda, de acordo com sua arte anti-convencional. Dentre os poetas brasileiros, gosta de Olavo Bilac, Raimundo Correa, Alberto de Oliveira,  Castro Alves, Augusto dos Anjos, Cruz e Souza, Gonçalves Dias e Moacir de Almeida, que ele chama de “menino gênio”, morto aos 22 anos de idade, autor de um único livro, “Gritos Bárbaros”, pequena obra prima da poesia brasileira.

            Relembro que, na década de 80, quando íamos diariamente à Praia do Futuro, JAP gostava de recitar, antes de mergulhar, a primeira estrofe do poema Mar, de Gonçalves Dias: “Oceano terrível, mar imenso/ de vagas procelosas que se enrolam/ floridas, rebentando em branca espuma/, num pólo e noutro pólo./ Enfim... enfim te vejo: enfim meus olhos/ na indômita cerviz trêmulos cravo/ e esse rugido sanhudo e forte/ enfim medroso escuto/.  Recordo também que ele costumava citar trechos de seu próprio poema “Unicórnio Dourado”: “a poesia é didática, luz sobre a história e esquecidos altares”. Ao recordar aqueles alegres passeios, JAP diz que somos da mesma idade, entidade e identidade de idéias. E de súbito afirma que a vida é trágica, o destino é cruel, não é um jarro de flores. Então enveredamos pela metafísica, campo onde divergimos em alguns pontos. Diz ele que o espírito se desintegra em 10 mil elementos de movimento de luz e som, mas quanto a voltar a um corpo, não acredita que isso seja possível depois da morte. Argumento que, se o espírito não reencarnar, nós, humanos, teremos uma chance única de nos salvar. Então, faço as seguintes perguntas. Se não conseguirmos nos salvar nesta única encarnação, que acontecerá com o plano divino de redenção da humanidade? Será que uma só encarnação é suficiente para que possamos nos purificar? E quanto aos puros, também se dissolverão? Então JAP entra em contradição e concorda que é possível que a consciência não se dissolva em elementos cósmicos, pois acha que os espíritos que se purificarem terão a chance de ficar ao lado de Deus.

            De repente, quando a conversa está enveredando demasiado no âmbito da espiritualidade, JAP muda estrategicamente de assunto. O terreno do transcendentalismo não é bem o seu forte. Prefere o domínio da escória e da podridão mundana, onde, qual abutre, recolhe imagens repugnantes para cingir a aura do seu poetar. Então reitera que esta no mesmo patamar de Proust, Stravisky, Gide, Oscar Wilde e Baudelaire. Encontra ressonância nesses monstros sagrados, em sua universalidade. Escolheu a transgressão como deusa e musa, como dele afirmou Ivan Junqueira. De fato, veja-se a agressividade destes versos que exprimem, a um só tempo, repugnância, abominação e asco: “És mais perversa que o assassino e tua alma está cheia de piolhos e moscas como um monturo onde se atirou uma carniça. Com nojo de ti as próprias víboras vomitam do ventre amaldiçoado os folhos que acabaram de engolir. Talvez os vermes, que são numerosos, e que se multiplicam debaixo da terra, recuem diante de tua podridão, que não é só a do corpo mas a da tua alma disputada por demônios!” (O Amolador de Punhais - 3 Episodio). De fato, impropérios diabólicos, pesadelos, cemitérios, crimes, imprecações e outras realidades nauseabundas encerram o desatino léxico, a morbidez vocabular de sua obra de ficção e de sua poesia. Por tais atributos, fecundo escritor de têmpera indomável, JAP se credencia à posição de lídimo herdeiro de grandes malditos como Rimbaud, Lautreamont e Baudelaire. Com efeito, ele mesmo confessa seu gosto pela escória e pela prostituição. Já que beijou travestis, pensando que fossem mulheres e quando percebeu já era tarde. Estava com o pé na escada de seu apartamento e “salve-se quem puder...”, como ele próprio diz. Enquanto a maioria dos poetas zela criteriosamente pela reputação moral e pelo prestígio social, José Alcides faz pouco caso se o chamarem de doido. Faz mesmo questão de forjar uma imagem de doidice, insensatez e devassidão em tordo de sua aura. Segundo declara, essa é uma ideologia intrínseca, um atavismo seu, parte de sua própria vida e do absurdo existencial.

            Apesar de todos estes rompantes amorais, JAP diz, surpreendentemente, que o homem não deve largar sua primeira mulher, isto é, aquela com quem se casou. Não deve fazer como ele fez e depois se arrependeu. Nunca mais se encontra outra igual. Mesmo tornando-se velha e fria, devemos nos manter casados com a mulher do legítimo matrimônio, aquele que o padre e o juiz sacramentaram em suas instâncias de poder. Pode-se fazer umas piruetas por aí, mas depois voltar pra casa. Não se deve arranjar cumplicidade com ninguém. Ser cúmplice apenas de si mesmo. Vê-se, por trás da rigidez aparente de sua moralidade, a flexibilidade com que a velocidade com que a reverte em nome da libertinagem.

            Volto ao tema do espiritualismo e lhe pergunto se concorda que no plano astral superior Deus pode nos ter reservado uma vida maravilhosa, plena de êxtase e que pode valer a pena estar naquele lugar. Se ele acredita numa vida espiritual, além desta vida em que encarnados, talvez melhor que esta que vivemos em matéria. Quem sabe nesse reino da eternidade ficaremos em situação melhor que esta do mundo terreno? Quem sabe? E nós  ignoramos tudo sobre tal paraíso enquanto permanecemos exilados na terra. Então JAP argumenta que se Deus eventualmente nos reservou esse prêmio, é preciso que tenhamos mérito para tanto. Mas onde vamos arranjar esse mérito? Que mérito temos nos para que Deus nos entregue tamanha dádiva? Sermos filhos dele, digo eu. Ao que Alcides replica: sermos filhos dele não significa sermos canalhas, bandidos, maltratarmos nosso próximo, deixando as crianças morrerem de fome como fazem os governadores e presidentes? Negligenciando a educação? Quem não tem educação só pode ser um criminoso! brada o poeta. Mas alego que ha pessoas que estão se dirigindo no caminho do bem e os que não estão, também estão purgando, e um dia pagarão toda dívida moral que tiverem, até se tornarem dignos do Reino. Passarão por sucessivas reencarnações até merecer o lugar esplêndido que Deus nos reserva. Quem sabe essas pessoas que você admira, e diante das quais fica perplexo de ver que tiveram de abandonar cedo a matéria, ceifadas precocemente da vida material, quem sabe essas pessoas estejam num lugar  melhor do que nos aqui, que estamos enfrentando as lutas pela sobrevivência no planeta? E Alcides responde então, em flagrante paradoxo: ninguém pode saber os desígnios de Deus. Deus disse: procura e encontrarás, bate e a porta se abrirá. Eu sou o caminho, a verdade e a vida. Portanto, os que não seguem Jesus não podem ter esse destino reservado. Digo, em seguida, que com certeza os que o vem seguindo já estão lá, porque Deus faz tudo da melhor maneira possível e ninguém deve duvidar que Ele faz as coisas com perfeição. Quem duvidar disso está blasfemando. Deus é a perfeição e faz tudo de forma perfeita. Os mistérios de Deus têm uma lógica, nós é que não os entendemos ainda. Eles deixarão de ser mistério quando compreenderemos esta sua lógica. E se Ele faz tudo de uma forma absolutamente perfeita e correta, nós é que precisamos melhorar o nosso grau de compreensão para entender esta verdade. E como melhorar, pergunta ele? Através não só da oração, mas de uma pratica de vida condizente com as instruções do Divino Mestre, respondo eu. Mas Alcides não aceita estes argumentos, que considera “kardecistas”. Em compensação, chamo-o de existencialista radical e de agnóstico. Mas ele dá uma gargalhada de deboche e diz: “a vida é muito trágica. Se acaba tudo num abrir e fechar de olhos”.

            Uma maneira de compreender a vida com tal carga de ceticismo faz lembrar o filósofo espanhol Miguel de Unamuno, um místico martirizado pela sentença de suas próprias dúvidas. Contudo, quando Alcides entra em fase mística, repudia a sua poesia erótica, como uma agressão ao espírito, e se agarra de tal maneira com o socorro divino, que faz promessas e penitências que seriam impensáveis em seu estado de lucidez racional. Aflora súbito sua natureza religiosa, e com incrível força dogmática. JAP explica que esses fenômenos de sua conduta se devem ao profundo misticismo e transcendentalismo que o caracterizam e que se refletem na sua poesia. Esse paradoxo seria normal em pessoas sensíveis como alguns poetas que, como ele, têm traumas espirituais. Mas em seus momentos místicos, sente uma espécie de remorso, um peso na consciência pelo que praticou de errado e abomina as blasfêmias que falou e as patifarias fesceninas que praticou. Segundo me revelou, essas fases acontecem nas mais diversas circunstâncias , e não apenas quando está atravessando um período de crise, pressionado por algum distúrbio de saúde. Quando está amando, por exemplo, também se torna religioso e menos revoltado com a vida. Atualmente apenas uma preocupação o aflige: a idade está avançando, a velhice começando a chegar e a deixar suas marcas. E constata perplexo, perguntando a si mesmo: Que fiz eu para a minha alma? Nada. E tem vontade de pegar o manto que está guardado no armário da fazenda e vesti-lo. Contudo, desiste da idéia, com medo de não poder mais cuidar de suas filhas Alesandra e Jamaica. Para doar-se completamente a religião teria que renunciar a todo conforto material e viver de pedir esmola, comendo apenas quando alguém lhe desse algo. Acha que não tem saúde pra enfrentar uma vida de penitência, pois fez varias operações para extirpar uma série de doenças que sofreu ao longo dos 74 anos de vida. Lembra o dia em que encontrou os dois frades franciscanos na igreja do Carmo, ambos de pés descalços, com os pés cortados e sangrando. Ao vê-los, foi ao encontro deles e disse: “frades, por obséquio, sou uma pessoa mística, religioso e tenho vontade de um dia entrar num convento, mas tenho medo de não conseguir-me manter lá dentro, dar continuidade, e fracassar”. E acrescentou, justificando, deste logo, a sua incapacidade de realizar o ideal místico: “Tenho também crianças que preciso educar”, referindo-se as duas filhas e ao Artaud, cujo nome foi dado em homenagem ao poeta francês que tanto admira. Posso deixar-lhes uma pensãozinha, mas não é suficiente. Preciso orientá-los”. E os dois monges o consolaram dizendo-lhe que sua intenção já significava algum crédito ao prestar contas no Juízo Final. Explicaram-lhe que andavam descalços porque São Francisco não usava chinelo. Então Alcides disse, “mas vocês estão com os pés sangrando ...” E eles responderam: “mas isso não importa, quanto mais cedo se morrer melhor”, concordando com S. Teresinha e S. João da Cruz, que disseram “morro porque não morro”. O exemplo dos dois ascetas lhe deu entusiasmo para renunciar a tudo, mas não teve forças para concretizar esse projeto redentor. Ficou admirando à distância o procedimento daqueles pessoas notáveis, que se entregaram inteiramente a vida monástica e à atividade religiosa. Na lista dessas pessoas inclui a princesa Diana Spencer, pelo exemplo de humildade que ela deixou. Quando tomou conhecimento de sua morte ficou profundamente chocado e chorou muito. Teve vontade de imitar-lhe o exemplo. Abandonar as futilidades da sociedade aristocrática, trocando a ostentação dos castelos da monarquia inglesa pelo ninho frágil das crianças pobres. “Me deu vontade de largar tudo. Não existe nada de permanente no mundo. Se eu ganhasse cinco ou dez milhões na loteria dividiria a metade com os pobres”. Contudo, acha que já pagou muitos dos pecados que cometeu: “Um homem que tem uma vida interior esfacelada como eu, com a alma cheia de punições espirituais ...”

            Entre os momentos felizes da vida, recorda o mais feliz de todos. Foi quando adotou, com oito dias de nascida, Alesandra, que passou a chamar-se Alesandra Maria de Andrade Pinto, e cujo pai não conheceu nem procurou saber quem era. Este foi certamente um ato de extrema generosidade humana, pois trouxe para sua companhia uma pessoa que pertencia apenas a Deus e essa pessoa o fez muito feliz. Recorda também, como o dia mais triste de sua vida, aquele em que Chico, seu irmão, morreu de câncer. O sofrimento foi muito grande e ele acompanhou todo o processo de dor porque passou o inolvidável Chico Pinto. Só a morte poderia separá-lo daquele irmão a quem se sentia espiritualmente tão ligado. O irmão a quem ele queria mais bem. Também um grande amor fraternal o ligava à Gercy, irmã que morreu antes, mas com ela não conviveu tanto quanto com o Chico. Ele era o seu braço direito. Quando viajava e chegava em casa, se a televisão estivesse quebrada, o Chico imediatamente mandava consertar. Quando queria pagar, ele dizia, “deixa de besteira, poeta, vai cuidar da tua vida”. Trabalhava no Banco do Brasil, vivia muito bem e sempre ajudou o poeta nos momentos de necessidade. Mas sentiu sua morte não porque o ajudasse, mas por puro amor e apego a uma pessoa de um coração incrivelmente humano. São os dois extremos que marcam o poeta na terra. Teve inclusive uma experiência mística, uma visão premonitória da morte de sua irmã Gerci. Essa dor que ainda hoje o persegue. Ela era muito bonita e religiosa. Sua morte em plena mocidade abriu um vazio dentro de si. Foi no tempo em que morava no Recife. Sua imagem se fixou em sua retina e está presente em toda a sua poesia.

            A idéia de uma concepção existencial do mundo aparece na maior parte dos seus poemas. Um dos que escreveu num hospital, quando achava-se enfermo e que se chama O Tempo da Morte, bem exemplifica esta concepção: “O tempo da morte/ é o tempo da insorte/ é o tempo do corte/ é o tempo do forte”. Dá testemunho da dura realidade e dos padecimentos porque teve de passar quando se submeteu as operações. O tempo do corte exige do homem a força para suportá-lo, força que só se encontra na fé, pois no momento de angústia, se não recorremos aos poderes divinos, a sensação de desamparo e abandono torna o sofrimento ainda mais desesperador. “É o tempo da foice,/ que ceifa sem dó/ é o tempo-lamento/ das penas de Jó”. A foice aqui adquire dois significados o de bisturi e o da própria morte. A noção de existencialismo está sobremodo ligada a de espiritualidade na arte de Alcides. O medo, os perigos, a perspectiva inesperada, tudo assusta o frágil ser humano em sua condição mortal. A vida é plena de sobressaltos, expectativas fatídicas: “A vida é esta/ armadilha (oculta?)/ entre o passo, o pânico, o grito, o desespero” (Vida-Havida). “Tudo é ventura, mágoa e vão contraste” (Camões). Mas, simultânea à impressão do pânico iminente diante do trágico e do efêmero, sobressai algo de devoção, de confiança e de entrega ao poder da fé: “Com o teu rosário de contas estelares/ e a cruz de Cristo - quem poderá investir contra tua fúria?” Nestes versos dedicados à sua mãe, o arquétipo da mulher se transfigura na mágica da metalinguagem, torna-se a heroína invencível, por divinas razões. Torna-se o sustentáculo da casa, a estrutura sólida da própria vida: “porque tu és os contrafortes, a cumeeira, a cobertura protetora da prole de teu útero/ forte como o amianto. Desse modo, é instantânea na poética de Alcides a transmutação do realismo mágico e do terror na esperança na redenção do espírito. O mesmo impulso que o fez crer e descrer, impele o pêndulo da esperança e do desespero, que o anima a voltar a vestir o manto franciscano e ao mesmo tempo o mantém prisioneiro no cárcere dos sentidos, pois a vocação da carne não lhe permite o gesto desprendido. No formidável texto de “A Pequena Varredora”, do livro “Ordem e Desordem”, há exemplos da perfeita conjugação entre o existencial e o espiritual. A varredora é uma menina frágil e inocente, que inconsciente da grandeza do seu ato, limpa a escória do mundo, a perversidade dos ditadores, o cinismo dos párocos, o vômito dos bêbados, etc. “Tanges a vassoura com tamanha leveza/ tal pássaro que se alça ao morno vento da tarde”. Em versos que relembram Victor Hugo, Alcides acentua o contraste entre a pureza, a formosura da criança e o lixo da hipocrisia e do crime da sociedade. Súbito a varredora se transfigura em mito. É Vésper da tarde, portadora de grande ventura, pois representa o ideal do belo e do verdadeiro, tão caros ao espírito. Tudo nela é delicado e frágil, seu corpinho franzino como uma pétala representa a esperança de transformação do mundo: “Oh princesa do lixo!/ Oh vestal! Oh sílfide!/ Flor que recolhe o lixo em seus perfumados pistilos,/ O rouxinol e o sabiá cessam o seu trinado/ quando tu passas bailando com tua vassoura/ empurrando o lixo para o corpo acéfalo do mundo/”. Como as coisas puras e os seres sensíveis, a verredora se expõe aos perigos de um mundo perverso -- aos micróbios que se agitam no ar quando ela tange a poeira com leveza de pássaro que se alça ao vento da tarde.

            A miséria social é desvelada entre as tênebras do horripilante, em meio ao pavoroso quadro de podridão, de abutres, de insânia e de vezânia que prevalece na vida dos homens. Súbito, o sobrenatural e o fantástico assomam no discurso e a natureza se transfigura. No poema “A Miséria Poderosa”, em Os Amantes, o mar ergue as pálpebras para ver o espetáculo oprobrioso da miséria em seus redutos de lama. O discurso oscila entre a indignação diante da condição humana e a exaltação do mar como fonte de inspiração e alumbramento. Em metáforas inusitadas que configuram um paradoxo entre lirismo e irreverência, entre a admiração ante a grandeza oceânica e a visão indesejável da peste, da chaga que penetra no coração humano, a alma geme, “como um vulcão rompendo suas milenares cadeias”.

            Explica o poeta que os seus procedimentos díspares na vida se devem a natureza bruta, selvagem, contraditória, mística, sensual, lírica e ética de si mesmo. A própria vida é cheia de paradoxos, pois nos traz inesperadamente e aparentemente sem motivo, alegrias e tristezas, vitórias e derrotas, dádivas e sacrifícios. Confessa que já não se empolga como antigamente quando vê um livro seu publicado. Aos poucos se lhe desaparece a mocidade e com ela a alegria de viver. Já não tem boa saúde. Fez várias operações, e atualmente se queixa de dor nas pernas, por causa de varizes. “Não dá mais pra ter uma mulher na vida com essa idade”, lamenta. E reconhece que cometeu pecados. Houve o caso da portuguesa com quem namorou quando morava no Rio e que, anos depois ao regressar aquela cidade, foi visitá-la e ela que não quis nem recebê-lo, dizendo “você acabou com minha vida e não quero lhe ver mais não” e bateu a porta. JAP diz que em seus 74 anos bem vividos já fez muita coisa ruim, “eu sou um homem sensual ...” Trata-se de Adelaide, mulher alta, magra, e linda portuguesa que namorou no Rio. Ela trabalhava no IPEC e morava em Botafogo. Teve um sonho com ela como se estivesse acordado. Ela aparecia velha, gorda, pobre, horrível. O cabelo crestado. Levantou-se apavorado. Depois de uns 4 ou 5 anos que teve o sonho, voltou ao Rio de Janeiro, e foi à rua Farani para encontrá-la. Tocou a campainha, ela abriu a portinhola e perguntou quem era.  E apareceu com a mesma imagem do sonho ... E ao perceber que era ele, gritou: “você acabou com minha vida ... vá embora ...” E bateu a porta, como uma maldição. Ele hoje tem remorso pelo que fez e diz que viveria com ela, mesmo com aquela cara de espantalho. Mas ela deve nutrir grande ódio pelo poeta, pois disse ao vê-lo, “você acabou com minha vida”. Soube depois, através do porteiro do prédio, que a mãe de sua ex-musa morrera havia alguns anos e que desde então ela sofria constantemente com crises nervosas. A propósito de sua vida dissoluta, JAP confessa que só veio criar juízo depois de velho. Antes era um bandido honesto e decente. Mas sempre foi um visionário do sonho, pois só o sonho da arte e o extravasamento do sexo podem redimir o ser do absurdo existencial.

            Alcides acredita que uma pessoa não é culpada pelo sofrimento causado a outra por falta de conhecimento. No entanto, terá de pagar por tudo quanto faz de errado, mesmo se o fez pensando que estava certo. Constata o quanto é difícil aniquilar todo o orgulho: só Deus pode dar força pra se cumprir uma destinação destas. Se assumisse a condição de asceta resolveria o problema da angústia espiritual, pois perderia todo o amor próprio, imerso na solidão metafísica. Seria a renúncia total ao mundo. Então pergunto-lhe se em sua opinião essas pessoas renunciadas, como os dois monges que conheceu na igreja do Carmo, estariam realmente na plenitude de sua satisfação espiritual. Ele me confirmou que acredita que aqueles anacoretas já não estão sofrendo com o mundo, pois as coisas mundanas já não os interessa. De todo modo estão causando sofrimento físico à matéria, à carne, mortificando-a, mas estão salvando a alma através do jejum e da maceração do corpo, como fazem os santos. Pergunto se esse sofrimento imposto ao corpo não seria mais cruciante que o sofrimento da não-renúncia, ou seja, a dor de viver sem uma entrega total à vida religiosa. Diz ele que deve haver um conforto espiritual para quem pratica isso. Tem certeza de que se chegasse a acabar com o orgulho e se suas filhas tivessem uma melhor condição material, se se tornassem independentes e não corressem o risco de morrer de fome, ele seria capaz de pedir esmola tranquilamente. Renunciaria à beleza e à sensualidade do mundo em busca de uma beleza maior, da verdade maior que é Jesus. Seria um ato impessoal, ditado pelo espírito. Teria a coragem de viver sem qualquer ambição literária, anônimo perante os homens, mas reconhecido por Deus. E mesmo que pensassem que ele estava doido, não se incomodaria. Jamais se incomodou com o que quer que pensem a seu respeito, e não seria agora que se perturbaria com a opinião dos outros. Argumentei que considero possível a plenitude espiritual sem a renúncia, isto é, com a pessoa usufruindo dos bens do mundo, ao que José Alcides redarguiu que alguém usufruindo dos confortos materiais teria mais dificuldade em entrar no reino do céu: “mais fácil seria um camelo passar  dentro de uma agulha. E acrescentou: “Meu reino não é deste mundo”, como reforço ao seu argumento.

            De súbito empolga-se com outro assunto e começa a falar de poesia. Colocamos duas cadeiras no meio do terreiro, no terreno em frente à entrada da fazenda e vimos o por do sol e o aparecimento das primeiras estrelas no céu do sertão. Um espetáculo que só quem viu sabe a beleza que se revela. As Terras do Dragão estão circundadas pela Serra do Mucuripe, que no crepúsculo se envolve de cores de diversos tons e uma brisa balsâmica vem nos deleitar e reconfortar do calor sufocante do começo da tarde. Depois de alguns minutos de contemplação da paisagem, o poeta recomeça a falar, velozmente: “Todos reconhecem o meu talento”. E sabem que sou um marginal clássico-moderno. Qual o escritor que tem esse desprendimento que eu tenho, de viver com uma nêga, uma cabocla? Só Camões. Viver com mulheres sem nenhuma condição moral, passear com elas na frente de todo mundo e assumir. Eu não minto, é muito difícil eu mentir ... Já ouvi certo poeta amigo dizer que queria o caixão mais caro, as vestes funerárias mais bonitas para as pompas de seu enterro. E a melhor classe de amigos, pessoas nobres para acompanhar o féretro. Eu prefiro uma rede, um caixão de terceira classe. Se me dessem a sereia de ouro eu mandaria empurrar no rabo, não quero sereia de ouro, não quero academia. Pra que? Eu nunca quis academia. Só aceitei uma placa na casa onde morei porque foi uma homenagem a mim dedicada pelos artistas que pintaram os murais”. Na casa na rua Rodrigues Júnior, onde morou durante alguns anos e que foi vendida e um advogado para servir de escritório, tem hoje uma placa de bronze como tributo ao poeta.  JAP vendeu-a e com o dinheiro comprou a fazenda Terras do Dragão e a casa da Vila Cordeiro, onde atualmente reside. Para não parecer que saiu perdendo, disse-me que se não a tivesse vendido ela teria caído por cima dele. O advogado a reformou. Foi um mal que veio para o bem. Os pintores vão morrendo mas a obra fica eternizada. Disse isto referindo-se aos murais pintados por diversos artistas plásticos cearenses nas paredes da casa. Na parede de sua casa atual na Vila Cordeiro, conserva a foto em que figura, vestido com o hábito franciscano, ao lado de uma plêiade de poetas, todos seus amigos: Antônio Girão Barroso, Otacílio Colares, Caetano Ximenes de Aragão, Milton Dias, Barros Pinho e Artur Eduardo Benevides. Destes amigos só três ainda estão vivos. Oh vida terrível! exclama, meditativo.

            Na época em que estava trajando o hábito franciscano, no ano 1980, em cumprimento a promessa que fizera, por recuperar a saúde, ficou ressentido com um certo confrade, um escritor de renome em Fortaleza, que ao vê-lo andando de chinelos, parou o carro e o criticou, asseverando que um escritor de sua categoria não deveria andar de chinelos, pois envergonharia a classe. O beletrista não entendera o seu gesto e certamente, pensou: isso é um doido! Um irresponsável! Só faltou dizer... E depois de fazer-lhe tal advertência, arrancou o carro bruscamente. Mas Alcides compreendeu a atitude do amigo e acha que não foi uma estupidez, mas uma atitude que traduz o modo de pensar dos burgueses. O cidadão ia dentro de um carro de luxo, tinha muito dinheiro. E é natural que com o status social que tinha não tivesse a coragem de trajar um manto franciscano e nem mesmo a sensibilidade de entender a dimensão de tal atitude.

            O poeta me recomendou escrever tudo isto, para servir de exemplo ao pessoas que como ele erraram e hoje estão pagando. Noutra ocasião em que vestia o hábito, quando passava por baixo de uma construção com sua filha Jamaica, uns operários gritaram: “Respeita a moça, padre safado!” Alcides fez pouco caso da ignorância daqueles trabalhadores que jamais leram sobre a vida de um místico e jamais entenderiam o procedimento de um monge. Ao invés de ficar magoado com as zombarias de que fora alvo, andava com níqueis nos bolsos para dar esmolas a quem lhe pedisse, de tanto que já estava afeito ao hábito. Contudo, mesmo de balandrau não pôde evitar o assedio de uma freira. Tudo bem: a carne é fraca e o demônio é forte, tem muita astúcia. E a promessa foi com São Francisco, não com as mulheres ... Também na época em que estava de batina uma mulher pediu-lhe que fizesse uma promessa para seu marido deixar se beber. E o seu conselho foi o seguinte: largue esse vagabundo e arranje coisa melhor.

            A cirurgia que motivou a promessa foi devida a uma pedra nas vesícula. A radiografia acusava um tumor. Daí a promessa. Comprometeu-se a não mais escrever poesia obscena e a rasgar os poemas imorais que já publicara. Então, depois que teve a confirmação de que não se tratava de um caso grave, começou a portar o manto franciscano em sinal de gratidão a Deus pela graça alcançada. “Sou um cristão primitivo e a meu modo:, declara convicto. “Tudo o que vem de Deus é bom, mesmo que venha com a aparência do mal. Ao todo fez dez operações: vesícula, úlcera duodenal, hérnia inguinal, cisto na garganta, apêndice, amígdalas, próstata, etc. Em todas as ocasiões se sentiu desesperado no período pré-operatório e recorreu a Deus, tendo encontrado amparo na Providência Divina.

            “O’, o vento, o vento, este higiênico ladrão universal. Oh frase bonita, é um viado! exclama “elogiando” a si mesmo. Não existe nada no mundo a não ser poesia ... Como é que morre uma mulher linda daquela com trinta e poucos anos de idade?”, (refere-se à princesa Diana). Contou-me então o que sabia sobre a vida da princesa. “Ela nunca teve prazer na vida. Casou-se com um cara que era um bruto, que já tinha outra mulher e ela não sabia. Então  começou a sofrer estupidamente. Pegou uma doença estranha, em que a pessoa come e depois vomita tudo em seguida”. Depois veio a frustração e Diana tentou o suicídio várias vezes. Renunciou ao trono e à riqueza e veio o divorcio, que foi uma humilhação terrível. O mundo veio acusando-a de prostituta. Depois de tudo isso ela chutou todos os prazeres da vida e começou a se dedicar a viajar e visitar os pobres, as crianças da Etiópia, da Bósnia. No Brasil subiu o morro de pés descalços, vestida com roupas comuns. Passou mais de dez anos peregrinando assim e fundou sua própria irmandade beneficente, com a ajuda de Teresa de Calcutá. Deu quase tudo o que tinha para a irmandade. E quando havia encontrado o cara com quem poderia viver um grande amor, subitamente perdeu a vida. Diana renunciou a tudo, a riqueza, a beleza, etc. Esses nobres são um bando de devassos, só ela teve a coragem de tomar uma atitude desprendida desse tipo. Alcides confessa-se fã incondicional de Diana Spencer. Disse que chorou imensamente a morte da jovem princesa e acha que o seu exemplo deveria ser imitado principalmente pelas pessoas ricas. Colecionou seis revistas sobre Diana e leu tudo o que foi publicado sobre o assunto na imprensa brasileira.

            Continuamos a falar sobre temas metafísicos. Digo-lhe que, em minha opinião, pode ser que haja uma lógica por trás dessa aparente absurda realidade, a qual, por falta de conhecimento, não estamos ainda capacitados a entender. Mas há pessoas que entendem isso. Essas pessoas que adotam o procedimento de renúncia certamente têm um esclarecimento, por inspiração mística, sobre essa realidade. Mas Alcides me interrompe e assevera: Só o Messias sabe. Ninguém mais conhece os desígnios de Deus. Quanto a explicação do kardecismo, de que certas acontecimentos na vida são consequências de atos praticados em vidas anteriores, ou nesta mesma vida, acha que este conhecimento não nos dá nenhuma paz. Argumento que pelo menos se pode saber que existe uma lógica, que nada é tão absurdo. E JAP contesta: de nada serve essa lógica para a conformação do nosso espírito, nossa paz interior. Só Deus sabe se voltaremos ou não reencarnados. Insisto no tema. Digo que existe o ensinamento dos profetas, dos sábios antigos e que se obedecermos tal ensinamento poderemos nos aliviar de muitos perigos e evitar muitos danos. Mas não se pode evitar a morte e o envelhecimento, e ai reside todo o problema, retoque Alcides. Ninguém aceita a morte. O sofrimento é a purificação, mas é preciso renunciar a todas as comodidades do mundo renunciar à saúde, como os frades franciscanos da Igreja do Carmo. A própria irmandade não aceita o ascetismo deles, e por isso vivem como marginais e mendigos, atirados num cubículo no subúrbio de Fortaleza. Porque São Francisco era assim. Viver como São Francisco viveu é renunciar a tudo, prazer, dinheiro, fama ... Replico que cada pessoa tem o seu caminho, seu método de evolução ... E JAP interrompe, taxativo: “não se pode seguir o caminho de Deus sem renunciar aos bens materiais”. Insisto em que seria possível aceitar os desígnios supremos de uma forma serena. sem temores ou conflitos, sem necessidade de viver como um mendigo, pedindo esmola irresponsavelmente. Ademais não adiantaria forjar uma aparência de santidade, o que importa é o sentimento interior de desapego e de amor ao próximo. A conversa vai tomando um rumo excessivamente polemico e resolvemos mudar de assunto. É justamente nesse momento que sobrevém a inspiração e o poeta começa a recitar, criando de improviso, os seguintes versos que anotei num caderno:

            “Há um urubu voando no céu escampo./ Contemplo as pedras, as pedras milenares./ Que alma possuirão?/ Como as fogueiras, elas ardem em seu interior./ As pedras ancestrais como os poetas/ e como os poetas ancestrais as pedras também se comovem, /diante do homem, da grandeza, da firmeza/ e da fragilidade do homem,/ pois tudo o que existe é frágil,/ menos as pedras, os rios, os mares e os astros./ Por acaso uma mulher é frágil?/ Uma mulher que fecunda o homem não pode ser frágil./ Ela é a matriz e o homem é apenas uma fonte de referência./

            ... Belas e afagantes carnaubeiras,/ que belos seios possuis?/ Que coração de morto os suspeitaria?/ Não, vos sois a vida, que nasce do caule,/ das raízes, da terra e chegais a uma altura invejável?/ Vossa cor, no verão ou no inverno é sempre verde,/ como a esperança, o amor, a vida nascente,/ a vida de todas as horas, de todos os dias, eterna./ Vós sois o cálcio da terra, a sutileza do olho, o gesto abençoado de Deus, a menina que cresce em esperança. E como a fada sonha, como a vaga emerge sob a dança do vento.

            Oásis onde impera o verde e a vertigem/ e onde a imagem da Graça se reflete/ na superfície tranquila e solitária das águas./ Por um momento só,/ oh lago, oh lago, estou, estaremos,/ eu e meu amigo, dois poetas aos teus pés para que nos abençoes/ e nos faças teu irmão/ na comunhão do espírito e do corpo de luz que afagas/ com os teus beijos imprevisíveis”.

            Os urubus sorvendo a linfa da caatinga,/ enfileirados à beira dos açudes,/ como um exército negro,/ como um cortejo de vampiros/ devorando restos de uma raposa no asfalto,/ em plena tarde como frades malditos encapuzados e mórbidos./ Oh relação estranha de feiticeiros, oh ato inquisitorial de íncubos./ Voai, dispersai-vos no azul que tanto conheceis./ Maldita ave negra que lembra Baudelaire,/ corvos da noite, embriagai-vos,/ fugi, feiticeiras do medo,/ tabacaria do ócio, luz do ícone.

            Apesar de parecer cético em muitas ocasiões, Alcides demonstra ser dotado de profunda religiosidade em outros momentos. Antes de comer, por exemplo, sempre reza agradecendo pelo pão de cada dia. Roga a Deus que “olhe para os vossos filhos que passam fome, injustiça, desespero, aflição e doença”. Foi criado em ambiente místico, onde se rezava antes das refeições, pela manhã e ao deitar. Isso ficou gravado em sua memória. Embora rebelde, jamais perdeu o sentido religioso. Tendo estirpe de cigano, andando sempre com uma rede a tira-colo e uma mulher escanchada no ombro, mesmo assim sempre obedeceu a ditames de ética. Procurou ser bom filho e bom amigo. E se já mentiu a algumas mulheres, é que elas também lhe mentiram muito mais. Aliás, como escreveu no Relicário Pornô, toda mulher mente, e as que ainda não mentiram estão na fila esperando sua vez.

            Sua obra reflete o lado cristão do homem. Fazia-me essa revelação quando chegou uma família pobre ao portão da cerca de arame, pedindo-lhe um resto de esterco que havia num monturo em frente a fazenda Terras do Dragão, para utilizar em sua plantação. Alcides deu-lhes o estrume e deu-lhes também pão e rapadura. Depois, continuou falando: “a quem pedir ou suplicar Deus ouve e atende. Pois tem o coração magnânimo e bom. A prece é um pedido. É preciso rogar a Deus que tenha piedade de nós. Deus também precisa de nós para que a palavra do Pai se cumpra. Ele precisa salvar o rebanho humano, torná-lo eterno, reunir os pecadores. Sua bondade é incomensurável”. E ai esta o exemplo da mulher humilde, que ficou feliz de carregar três sacos de bosta seca. Uma mulher e duas criancinhas colocaram dentro de sacos o estrume para plantar sementes que Deus tornou pródigas para o mundo. Semear no seu canteiro, já que não pode comprar. Para ela, a mulher que lhe pediu aquele presente, o esterco seco de gado era mais precioso do que o ouro. A pobre mulher sentou-se sobre os sacos para descansar, quando eles estavam plenos. Depois seguiu com as duas crianças sob a quentura do sol, no meio do sertão. Perguntei a Alcides como faz sua oração noturna. Ele reza sempre em pé, pois deitado seria uma falta de reverência. “Jesus, dai-me força para morrer, assim como me deste para viver. E não vos ausentai do meu leito de morte”. Acrescentou que já tem o seu epitáfio:  "aqui repousa JAP, um servo de Deus. Orai por ele”.

            Seu misticismo tem momentos de transe e vidência. Viu a sua irmã Gerci, em pleno meio-dia, quando escrevia uma reportagem. Ela apareceu em sua frente, caminhou quatro passos sem se deter, esboçando um sorriso triste,  passou como um vulto errante e desapareceu na parede ao fim da sala. Isso lhe suscitou maus presságios. No dia seguinte veio a confirmação de sua morte. Outro acontecimento extraordinário, uma espécie de revelação, foi quando encontrou a pedra discóide ou fóssil sideral. Considera o tal fetiche, encontrado na fazenda Equinócio, um signo do sobrenatural, algo que o distingue como uma criatura extraordinária dentre os humanos, “pois o mito só se revela a quem está destinado”. Trata-se da imagem de um disco voador em miniatura, diz o poeta. Encontrou o objeto quando fazia a sesta, andando a cavalo. Sentiu uma inquietação estranha e foi ao final do terreno da fazenda, onde os trabalhadores faziam uma cerca. A certa altura freou o animal, mergulhou as mãos em um seixo à beira do riacho e o objeto saltou-lhe aos olhos, estranho e enigmático. Logo pensou tratar-se de um segredo da vida extraterrestre, um fóssil sideral. Esse objeto místico foi alvo de reportagens de diversas revistas especializadas em temas espiritualistas. O tal pedregulho espacial fez tanto sucesso que, segundo me revelou, vendeu-o por 14 mil reais a um engenheiro, que lhe paga o valor a prestação, até o ano 2000. Noutra ocasião, impelido por uma força estranha, descobriu na fazenda de seu irmão Chico Pinto, uma pedra com a forma de um braço, espécie de totem que denominou de “o braço do primitivo”. Estes achados seriam sinais de sua missão de poeta místico, prodígios de sua vidência. A poesia é sentido e revelação em si mesma, enquanto enigma.

 

            Erotismo e lirismo

 

            Quando lhe perguntei qual a maior fonte de inspiração para um poeta, respondeu-me: a mulher. Ela é a única coisa essencial para alguém que nasceu sensual. Gerardo Mello Mourão, poeta amicíssimo de José Alcides, diz que, como Lawrence, Alcides só sabe andar com uma mulher escanchada no ombro. Veja o exemplo de Deus, que fez Eva, como um complemento para Adão. “Eu jamais viveria sem o sexo, e quando digo o sexo, digo a mulher, digo a virtude, digo a religião, o misticismo e tudo o que é belo no mundo. As plantas, os animais, tudo tem sexo, todo ser da natureza tem o seu par, até as flores. A própria aurora tem seu dia. Ela se levanta sanguínea como um menstruo, depois sua luz é pálida como uma mulher, como uma camélia, romântica. Tudo isso é o amor e tudo parte da mulher. Sexo envolve tudo. Nesse ponto lembrei-me de um poema em que Walt Whitman diz exatamente a mesma coisa: “Sex contains all”. A coincidência do seu pensamento com o do poeta norte-americano prova a existência da sincronicidade de idéias, que faz coincidir a maneira de pensar de alguns poetas. E prossegue, dissertando sobre o tema: “só o mito pode viver sem uma mulher, porque está acima do bem e do mal e não possui um corpo como nós. Não se pode avaliar a dimensão enigmática do espírito. Mas o homem tem que ter uma mulher e ter sexo, no bom sentido”.

            A aceitação total do erotismo é uma proposta de vida para a falta de sentido da existência humana. Na fusão de hormônios e sensações do ato sexual dá-se uma catarse, uma liberação dos males e da angústia do absurdo do  mundo. A sua tese sobre a comunicação erótica figura no livro "Comunicação: Ingredientes-Repercussão", escrito para servir de material de consulta para os seus alunos da Faculdade de Jornalismo da Universidade Federal do Ceará. Num dos ensaios JAP expõe que o erotismo impregnou sempre a história da humanidade, desde os primórdios, mas acentuou-se hodiernamente com o surgimento dos meios de comunicação e seu aparato tecnológico. Todo esse aparelhamento audiovisual e cinematográfico, que esta absorvendo os sentidos e subjugando a mente humana na forma de um condicionamento inexorável, tem como fundamento o apelo sexual. O certo é que, desde os povos primitivos, as imagens e a escrita pictórica já eram plenos de erotismo. A força de Eros atravessa o tempo e se revela no sincretismo religioso dos anjos e na conduta dos deuses e demônios da mitologia, pois se trata de uma energia que deriva da própria natureza. De resto, o sexo é indistinto da religiosidade, estando impregnado dela nas seitas orientais e na vida dos santos e ascetas, que maceram o corpo com flagelos e jejuns exatamente por causa do sexo. Tentam reprimir a força libidinosa que se apresenta maior do que a capacidade de reprimi-la ou sublimá-la. Na mente dos humanos, como no instinto dos animais  e nos processos da natureza, existe um sentido de sexualidade. Sua obra não poderia desviar-se de tal realidade, que se apresenta como alternativa para o caos do mundo e como cumprimento de uma lei natural. O erotismo em sua poesia consiste  na tese de que o imoral não existe, e sim a hipocrisia, que é revoltante. Embora se considere de natureza voltada à pureza, diz que não pode renunciar as vibrações do corpo, pois até as pedras amam. “Veja o orgasmo de Netuno boiando nas espumas do mar, o gemido voluptuoso e lascivo das sereias nas ondas”. Não se pode viver negando a fonte do prazer da vida. Mausie, personagem de Entre o Sexo, a Loucura/ a Morte, representa sua idéia de erotismo, de necessidade liberdade para o extravasamento da energia sexual. Ela é uma espécie de deusa do amor, dotada altíssima sensibilidade e vidência, mas possuidora de um furor lascivo incontrolável. Outro exemplo é o do vigário fornicador que mantinha relações sexuais dentro da própria igreja. Também o Coronel Antônio José Nunes, de Os Verdes Abutres da Colina, personificação do garanhão que cobre as fêmeas da região, inclusive as próprias filhas, conduta inspirada pelo demônio, que em sua fábula terminaria por destruir todo o povoado de Alto dos Angicos. Recordemos que o apetite sexual do personagem se transfere para o bisneto, autor do livro, cuja caricatura pode revelar uma versão de Príapo pós-moderno. A esse respeito Alcides declara-se capaz de enxergar uma bunda a uma légua de distância. Frases doidas como esta se encontram abundantemente no livro Relicário Pornô, que mereceria um capítulo à parte para comentá-lo. Há nele tanto versos de pesada pornografia quanto de mavioso lirismo. Por exemplo: “Que natureza possuo, capas de amar a mulher mais desprezível dos prostíbulos ébria e carregada de piolhos e afastar de minha presença, com uma estocada, uma infanta linda como a lua e mais sorridente do que o lago”. “Prostitutas! Ó virtuosas amantes! Antes que o pároco execute os ofícios da morte, ide colher boninas nos campos e entregai ao coveiro para semear na minha campa mortuária”. O escritor Pedro Nava elogiou, num artigo magistral, o talento e as dissolutas confissões do poeta pornógrafo. Viu nas revelações lúbricas do Relicário um banho poético fornecido com a palavra livre de peias. Disse que só um imbecil não reconheceria a necessidade de investir contra o preconceito e o tabu imposto pela moralidade burguesa contra certas palavras, as quais, assim como os direitos humanos devem ser preservados, têm também direitos a serem acatadas. E identificou como poesia da melhor qualidade os versos de Cantiga: “Flor bonita é a da moça/ como a do maracujá./ Roxa per fora, e vermelha/ por dentro, se mergulhar/ Nas bordas que cor bonita!/ nos cachos do pentelhar. Que achado soberbo! exclamou o grande memorialista a respeito da palavra pentelhar, “um reencontro como espírito da língua (em todos os sentidos que se queira)”.

            Perguntei-lhe sobre a origem do nome Terras do Dragão, com o qual batizou a fazenda. Explicou-me que se deve a uma profecia do Frei Vidal da Penha, segundo a qual, um dia aquela região viraria mar e um dragão correria sobre as águas. A terra se transformaria numa cama de baleia, por causa dos pecados de seu povo. Alcides, como autêntico nativo da região, não pode fugir das origens nem escapar da influência primitiva dos seus conterrâneos, dos quais herdou algumas taras imprescindíveis. Portanto, não abre mão de seu misticismo e do erotismo que o faz andar sempre acompanhado de mulheres com os quais pode satisfazer os clamores da própria ancestralidade. “Esse homem parece que tem o diabo nos couros”, disse-lhe certa vez uma mulher depois de alguns momentos indescritíveis. Ficou apavorada: “com essa idade é capaz de tal proeza!” E ele respondeu: “é genético en mim, é orgânico”. Também o seu avô, personagem de O Criador de Demônios, tinha um caráter exacerbadamente libidinoso. Cobria as fêmeas como um touro reprodutor. José Alcides demonstra sua convicção fescenina, escolhendo, para as capas dos seus livros, fotos ou gravuras de mulheres nuas. O lirismo é indissociável do erotismo em sua poética. Veja-se o poema “A posse”, do livro “Ordem e Desordem”, onde há versos como  “arranquei-te do sono - teu sorriso morno ainda dormia/ como as parcas nos túmulos marinhos./ E disse: despe-te - e tu te despiste/ pálida estrela morta na tarde transparente./ ... E te penetrei, como num rio seco uma fonte de água granulosa/ cansada de sedimentos pesados. No ato da posse, a integração com o elemento telúrico, a imagem da mulher vinculada à fertilidade da terra e à vibração sensual da matéria. A mulher é “uma terra sofrida, úmida de lágrimas, sob a inclemência do sol”. Há um contato estreito entre o amor físico e a comunhão com a natureza. No poema “Amada” diz JAP: “amor - palavra estranha - e risonho/ canto de pássaro tristonho”.

            O erotismo se mistura ao lirismo também nestes versos: “o amor não foi feito para a felicidade do coração, nem da alma, mas para a saúde do corpo. (Idílio, em “Os Amantes”). O corpo existe impregnado dos desejos inerentes à carne, intrínsecos nos ossos e nos nervos. O amor não pode prescindir do ato sexual como satisfação fisiológica que o corpo tem direito de exigir. Mas em sua poesia há também um sentido de enigma que transcende a dimensão do vulgar. E este é certamente o aspecto mais autêntico de sua arte. O misterioso que há no lirismo metafísico de poetas de grande estatura espiritual como Rilke, Shelley, Vallejo, Emilly Dickinson, Valéry, Borges, Jorge de Lima, Garcia Lorca e Antônio Machado, entre outros. No poema “Eu”, publicado nos Cantos de Lúcifer, mergulha na essência do existir e emerge com revelações transcendentes: “Eu sou eu. Íntegro e inviolável dentro de mim mesmo”/ O que não se descobre. Anônimo sob minha sombra incorpórea, sem faltar um só dos meus gestos físicos”. Esta busca de si é tarefa primordial de quem se sabe inviolável em si, mas anônimo e incógnito, no instante do desvelo e da auto-revelação. “Diverso sobre mim e sob eu mesmo./ Oculto e visível como a lua caída no poço. Intocável e impossível como o que não se conhece e não morre”. Nestes fragmentos do poema apresenta sua compreensão do fenômeno enigmático da vida e trata de um dos temas eternos da poesia. Há temas que jamais envelhecem. A lua, por exemplo, é uma tradição na trajetória universal da poesia. Os poetas sempre adoraram o arquétipo lunal. Sobretudo os românticos. Mas cantar a lua não é apenas uma subjetividade da poesia romântica. A lua representa uma espiritualidade profunda e permanente. Disse S. Agostinho a respeito de Deus: “tarde vos amei, beleza tão antiga e tão nova. É que estáveis dentro de mim e eu estava fora de mim”. A lua é uma beleza antiga e nova e por isso é sempre bela, assim como a arte mesma e tudo o que há na natureza. Nós humanos é que envelhecemos, porque somos frágeis. A árvore morre mas continua a existir através de sua semente. Os insetos, os pássaros e as árvores, tudo o que aparentemente desaparece, está sempre presente no mundo. E a lua, como toda a natureza, é eterna. Se um poeta moderno escreve sobre a lua, sobre o encantamento de contemplar o plenilúnio, apenas mostra ser dotado de sensibilidade para amar o belo e reconhecer a semelhança entre sua natureza e a da lua. A lua sempre foi decantada porque é um astro que ilumina o mundo inteiro. Porque ela é suave como a companheira, a mulher. Como música ao longe ela transmite o que há de mais romântico e eterno. E sendo ao mesmo tempo eterna, bela e divina, ela é de todos os tempos, de todos os poetas, cantores e trovadores. Perene em sua beleza, sua antiguidade é sempre nova e eterna. É um símbolo de musicalidade, sua luz suave cobre o mundo e deixa nas almas o romantismo dos poetas antigos e novos. Única e soberana, reina no espaço como uma monja em sua cela.

 

            A família, a cátedra e os amigos.

 

            Há muito tempo Alcides perdeu contato com a mãe de Belkiss, sua filha mais velha que vive em Paris. Escreve e ela não responde. Belkiss também escreve à sua mãe inúmeras cartas registradas. As cartas teriam que voltar, mas não voltam. A mãe não ficou desgostada com Belkiss porque ela criou sua própria independência, emancipou-se e viajou para Paris com os hippies. Mas em ela estudou jornalismo em Paris. Em sua carta mais recente Belkiss diz que nunca o esqueceu. Ela partiu de Fortaleza quando tinha 17 anos. Há mais de 20 anos que Alcides não a vê. Diz que gosta muito de Belkiss, porque ela é muito inteligente, porque é negra, e porque ele praticamente a abandonou, o que considera um de seus pecados. O próprio Alcides a incentivou a ir viver em Paris. Arranjou dinheiro para a passagem de ônibus até o Rio de Janeiro. Naquela época Alcides achava um estorvo que sua filha fosse hippie, mas hoje reconhece que foi um erro seu pensar dessa maneira. Há cerca de dois anos não tem contato com ela, pois as suas cartas ficam sem resposta. Preocupado,  JAP me pede que escreva a Belkiss, recomendando-lhe que mande notícias a seu pai. Uma carta que lhe remeti há alguns meses, ao endereço que me dera desde que nos encontramos em Paris, em 1996, voltou com anotação de “destinatário ignorado”. Na ocasião em que a encontrei, achei um tanto estranha a sua conduta. Ela trajava calça e camisa pretas e um lenço negro sobre os cabelos. Disse-me que sua principal atividade na França consistia em retirar objetos de magia negra  colocados nas igrejas. Conversamos durante várias horas exclusivamente assuntos de tal natureza e fiquei tomado de um sentimento depressivo depois do nosso encontro. Por enquanto permanece um mistério o paradeiro de Belkiss.

            Outro erro que acredita haver cometido foi a reação que teve quando tomou conhecimento de que tem mais duas outras filhas com uma das mulheres que trabalhou em sua casa como empregada. Alcides pensou que fosse mentira da mãe delas. Não acreditou quando a mãe trouxe as duas meninas para ele conhecer. Recusou-se a reconhecê-las como filhas, porque pensou que fosse uma chantagem. Uma delas disse: “eu sei que sou sua filha, a minha mãe me disse”. Era bem bonitinha, de 12 anos de idade --- diz o poeta --- parecida com a Jamaica, uma de suas filhas. Pensou que a mãe queria apenas tomar-lhe dinheiro. Ele morava ainda na mansão da rua Rodrigues Júnior, na Aldeota, e poderia parecer aos olhos daquela mulher ambiciosa que ele tinha muito dinheiro. O poeta guarda um sentimento de remorso por essa atitude.

            Todos tivemos algum ato inabonável, alguma atitude da qual nos arrependemos, por outro lado já tivemos tantos atos de magnitude, disse eu, tentando confortá-lo. “Mas uma ingratidão desta nenhum ato cobre”, disse ele, contrito. “Hoje em dia não faço mais esse tipo de coisa. Se eu pudesse reunia todos os meus filhos e viveria com eles o resto dos meus dias”.

            Quanto aos amigos, Alcides fala com muito senso de humor a respeito de alguns deles, que considera tão doidos quanto ele. Diz que, por incrível que pareça, existem alguns com o juízo pior que o dele. Um deles é o Carlos Emílio, cujo talento admira, mas de quem, segundo Alcides, não se pode negar certo grau de insensatez. Conta o seguinte caso acerca do escritor Carlos Emilio Correa Lima: um dia, quando estavam os dois conversando na sacada de seu apartamento da Praia do Flamengo, ia passando um avião e Carlos Emilio disse para Alcides: “atenção, vai um amigo meu dentro desse avião, ele vai me mandar mensagens, vai acenar para mim da janela do avião...” Disse que eu também figuro na lista dos amigos doidos, pois acompanhá-lo à fazenda Terras do Dragão, no meio dos matos, nos confins do sertão cearense, já é um ato de insensatez. Mas reconhece que é pior do que eu, e diz que o Jarbas Júnior ocupa posição intermediária entre as nossas respectivas doidices, sendo que “os piores são o Paulo Garcez, (poeta baiano falecido em 1998), o Carlos Emilio e o Mário Gomes”. “Só tenho amigos doidos”, declara. Doidos varridos como ele próprio, que é o mais doido de todos, pois largou a cátedra e abandonou tudo para dedicar-se exclusivamente a literatura numa província como o Ceará. Dentre os amigos sem juízo, alguns talvez sejam piores, pois são irresponsáveis. A loucura em sua vida é atávica. Sua família esta cheia de loucos, um vendaval que só não o pegou fatalmente por causa do sexo e da arte. Mas viver é uma espécie de loucura, ou uma maneira de estar-se exposto à loucura do mundo, cujo absurdo maior é a morte, essa megera que temos que carregar nas costas desde que nascemos. Só o sexo (o amor) é uma benção divina, nos salva da maldição. O sensualismo é uma religião.

            Uma das idéias doidas e geniais que teve foi a de reunir 35 pintores,  liderados por Barrica, para pintar o mural na casa da rua Rodrigues Júnior. Enquanto pintavam, Barrica cantava óperas, outros dançavam, sapateavam, contavam anedotas. Parecia um bando de doidos fugidos do hospício. Outros episódios hilariantes se registraram quando  JAP comprou um piano, talvez na ilusão de que poderia ainda tornar-se um Beethoven. Naquele tempo acorria a mansão do poeta de toda sorte de boêmios, músicos, poetas de toda estirpe da cidade de Fortaleza de Nossa Senhora da Assunção. Todos queriam dedilhar as teclas do instrumento. Todos os dias, infalivelmente, na hora do pôr-do-sol, comparecia ao reduto do Alcides o poeta Alano de Freitas, que chegou a compor algumas canções obscenas no piano. Meses depois, entediado com a frequência dos menestréis que permaneciam em sua casa até as primeiras horas da madrugada, Alcides resolveu se desfazer do piano, tendo convencido o gerente da loja a aceitá-lo de volta. A respeito do famoso piano, o professor e escritor Juarez Leitão escreveu belíssima crônica intitulada José Alcides Pinto e as Fúrias do Oráculo, em que relembra a noite em que se reuniram alguns amigos na casa de Alcides para inaugurar o instrumento. “Um instrumento lindo, que havia comprado na Mesbla sem a menor condição de pagá-lo. Não importava a nós este detalhes medíocre; o piano estava ali, na sala do Zé Alcides era um ícone, um totem, um símbolo solene da arte. Nenhum dos jovens e embebedados amigos de Alcides sabia tocar piano, mas todos passavam a mão no móvel preto e reluzente, como fazem os muçulmanos com a Caaba, a pedra negra do centro de Meca, para expiar os pecados. E voltamos daquela estranha noite leves, felizes e saciados de ternura e paz, e pelas ruas de nossa euforia cantávamos, bradávamos poemas sobre o piano do Zé Alcides. O piano, naturalmente, foi devolvido à loja: já cumprira sua missão”.  

            Apesar dos momentos difíceis que já enfrentou, Alcides reconhece que Deus lhe deu tudo o que queria. Tornou-se uma pessoa realizada. Sua vida sempre foi uma busca do eterno e acredita que Deus já lhe deu mais do que merecia. “O que eu queria de Deus era a paz interior pra suportar os meus sofrimentos com dignidade e essa dádiva divina eu tenho. Não posso querer mais do que isso. Deus foi comigo sempre muito pródigo e muito misericordioso. É claro que eu aspirava a ter uma vida melhor. Mas será que essa aspiração teria me dado a tranquilidade espiritual? Eu acho que não. Veja a minha vida pregressa, larguei a universidade, comprei uma fazendazinha e passei um ano sem vir a Fortaleza”. Faltavam 14 anos para se aposentar como professor concursado da Universidade Federal do Ceará. Pediu rescisão do contrato de trabalho, por livre e espontânea vontade, a partir de 31-12-77. Abandonou tudo para se dedicar a literatura. Comprou a fazenda, perdeu as comodidades, mas sua obra cresceu. A aposentadoria que recebe, embora pareça contraditório, é por invalidez, e foi concedida quando se encontrava doente. Perguntei-lhe qual a doença. Respondeu-me: a loucura. A loucura em sua família é bem de raiz: genético. “Minha família é pontilhada de doidos, a começar pelo avô materno, Chico das Chagas Frota, personagem de O Dragão. Também o tio João Pinto de Maria, de “Biografia de um louco”. A loucura não se separa de sua vida. Se tivesse a mente sã não teria deixado a Universidade, mas rescindiu o contrato e ficou sem nada. Mas acredita que não foi propriamente uma loucura. Foi antes uma destinação, pois agiu de maneira coerente com o que faria seu pai, que também era despojado de bens terrenos, orgulhos, vaidades e preconceitos. A humildade é o principio mais exemplar do verdadeiro cristão.

            Contou-me sua experiência de professor na Faculdade de Jornalismo da UFC. Ensinava História da Cultura e dos Meios de Comunicação, disciplina em que abordava os processos culturais da humanidade, desde os hieróglifos egípcios, a pedra roseta e a ideografia dos chineses ate o classicismo, os filósofos, poetas e dramaturgos, com ênfase nos 4 mestres do teatro grego, pois o anfiteatro é a origem da comunicação. “E quem disser que não é que vá pra baixa da égua”, dizia para os alunos. Depois passava à comédia francesa, Racine, Moliere, passando pelo teatro inglês de Shakespeare até o modernismo, com Camus, Cocteau, Ionesco, Oswald de Andrade, Nelson Rodrigues, etc. Teatro é comunicação. Comentava os autores, fazia súmulas, sínteses. Utilizava o método peripatético. Dava aulas andando. Os alunos da faculdade saíam das classes de outros professores para assistir às suas perorações. Pedia que voltassem, mas em vão. Certos professores ficavam irritados porque os alunos deixavam suas salas vazias para ir assistir à aula do poeta. Sentavam no chão. Perguntava aos alunos porque preferiam suas aulas às dos demais instrutores, eles respondiam que pelo fato de alguns deles não saberem responder às perguntas que faziam. Diziam, “na outra aula eu trago a resposta” e jamais traziam, por falta de conhecimento. Falando sempre rápido, os alunos pediam que falasse devagar para melhor aproveitar as aulas, mas ele argumentava: isso em mim é genético, orgânico. Se vocês vissem duas irmãs minhas conversando não aguentariam. Nenhuma das duas se entende e ninguém as entende. Jogava o apagador e o giz no chão, gritava e gargalhava como um sátiro. Falava do papiro, do pergaminho, de cada desenho que representava um sentido. Também dos povos peruvianos, os quipos, cordõezinhos cheios de nós e os vampumes, conchas geométricas coloridas. Daí vem a pictografia... Batia com a mão nos ombros dos alunos. Alguns deles se deitavam no chão. Os alunos lhe davam biscoitos, o levavam de carona à sua casa, pois  JAP nunca teve carro. Pagavam-lhe cerveja. Mas teve de abandonar a cátedra, pois sua ambição sempre foi ser escritor e não professor. Faltavam dez anos para aposentar-se. Achou que ser escritor era mais importante. Para que acumular riqueza? O que tinha dava para uma vida simples. A Universidade foi um tempo perdido. Tinha de trabalhar o dia todo. Trabalhar nunca foi a sua atividade predileta: “Não me arranjem emprego. Não criem obstáculos à minha vida”.

            Sua atual situação financeira é precária. Para sobreviver escreve artigos e prefácios para os livros de amigos, cobrando pelo trabalho. Alguns poetas amigos o ajudam eventualmente, contribuindo financeiramente para seus tratamentos de saúde. Muitos de seus livros são dedicados aos médicos que o operaram ou trataram de sua saúde quando esteve acometido de diversos males. É uma forma de gratidão e de obter estrategicamente algum desconto no pagamento dos honorários.

            Admira-se da riqueza de Francisco Carvalho. No mundo em que vivemos é difícil um poeta rico. Ele é dono de uma mansão e dois grandes sítios de centenas de hectares. Ele merece, confirma. “Carvalho é madeira de lei”. Mas afirma também que a fé em Deus vale mais que toda fortuna material. Ter fé vale por 100 escritores ou 100 cientistas. Não interessa arte, ciência, tudo vira pó. E a fé, a luz da fé não morre, é eterna como o vento, o mar e o amor pelo próximo. Assim como é grande a sua estima e gratidão em relação aos amigos leais, os que sempre foram corretos ou o ajudaram, como Juarez Leitão, Dimas Macedo, Francisco Carvalho e outros, aos quais dedica poemas e livros, também não esquece a ingratidão daqueles que foram cafajestes. Decepcionou-se com um deles, que pensava que fosse amigo, mas que só depois se revelou um velhaco, prometendo pagar-lhe duzentos reais por um prefácio e jamais pagou. Outro ex-amigo, qual lobo vestido em pele de cordeiro, ofereceu-se para editar-lhe as obras completas, sumiu com o dinheiro que Alcides lhe adiantara, e só apareceu quando um advogado amigo já estava colocando o caso na justiça. Por desgosto, depois do livro pronto, Alcides soterrou toda a edição numa vala em seu quintal. Apesar de me haver dito os respectivos nomes, pediu-me apenas que contasse os casos sem decliná-los, para dar-lhes mais uma chance para que se redimam. Em outra ocasião, também foi lubidriado pelo dono de uma gráfica que ficou com o dinheiro que lhe havia adiantado e jamais publicou o livro. Por incrível que pareça o caloteiro também era escritor... Contra esses vilões JAP descarrega a violência de suas imprecações poéticas. A eles os adjetivos espúrios que o poeta prefigura em seus textos. Se não fosse a existência de tais calhordas não existiria a poesia maldita. Por causa deles é que surge o poema sórdido, contundente, para acusar a desonestidade dos patifes, a falsidade dos infames. Chego a acreditar que a arte de JAP transparece um profundo teor moral, disfarçado em rebeldia. Na realidade, trata-se de um grande moralista às avessas, pois prega a ordem dissimulada em desordem, e enquanto acusa o crime, condena o vicio. A realidade do mundo exige que se combata o mal, mas torna o homem presa das armadilhas da condição terrena. E é preciso lutar com palavras e atitudes em defesa da Verdade.

            Se alguns o decepcionaram ao ponto de inspirar-lhe a máxima “podendo ter cinco amigos não tenha dez”, outros souberam merecer-lhe a estima. Assim e que alguns dos amigos que lhe tem apreço telefonam-lhe todos os dias, como Soares Feitosa e Rui Câmara, que não deixam de contactar o maldito iluminado, que a todos atende generosamente qual avoengo mestre. Duas gerações dos mais competentes poetas cearenses o louvaram em prosa e verso no livro Guerreiros da Fome, entre os quais também o inolvidável baiano Paulo Garcez de Sena: “...enxergas para alem dos abissais horizontes...” Alano de Freitas também participa de tal coletânea com um texto em que recorda as mechas de cabelo das musas que Alcides guarda em suas gavetas. Francisco Carvalho consagrou-lhe monumental poema em cordel. Faria Guilherme no cordel “O cigano, o vate e o frade, narra o gracioso episodio do uso da batina franciscana. No artigo intitulado “José Alcides Pinto, o Espetáculo Permanente”, Adriano Espinola lembra-lhe a magreza absoluta, os gestos tempestuosos, os braços longos e as mãos que se movimentam sem parar, sua eletricidade teatral e sua fala torrencial, matizadas de emoções mutáveis, em que conforme o seu estado de humor, e capaz de criticar severamente determinado escritor e elogiá-lo em seguida com a mesma ênfase. Acerca de Alcides, escreveu Gerardo Mello Mourão artigo publicado no jornal Diário do Nordeste, em que o menciona como um nome avançado nas melhores aventuras revolucionárias do texto poético e ao mesmo tempo como um François Villon urbano e rústico. Ao elogiar a obra de ficção de JAP, cita o romance O Dragão como um texto violento e agônico, que pela carga poética de sua escritura demonstra o quanto é tênue a fronteira entre a as metáforas da ficção romanesca e as da ficção poética. Trata-se da história do povoado do Alto dos Angicos, “um pequeno bando de viventes entregues à indolência, à superstição, aos inocentes vícios dos pobres, a desolação, a fúria dos elementos e ao salubre fanatismo de um pobre padre com os miolos torrados pelo sertão, mas ainda assim com um sentimento medular da presença de Deus e da razão sem razão de seus castigos cruéis”. Situa o autor de “O Dragão” ao lado dos grandes ficcionistas modernos do Brasil, como José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, José Américo de Almeida, Graciliano Ramos e José Candido de Carvalho. E pelo êxito alcançado em seu texto, chama-o de poeta de Jerusalém, escriba de Canaã e cronista da atormentada ribeira do Acaraú.

            Na condição de admirador e discípulo, não poderia deixar de expressar-lhe minha estima na forma de poesia. Penso que só um poema delirante, em tom de alumbrado arrebatamento, poderia descrever o inimitável caráter de JAP. Assim foi que escrevi o escatológico poema “Perfil de José Alcides Pinto Vislumbrado num Instante de cosmovisão”, que considero condizente com sua personalidade e cujo teor reproduzo aqui: Alcides, cavaleiro dos mangues/, arauto dos poderes litorâneos,/ nervoso pássaro de olhar faiscante,/ maldito santo, arrasta com teus uivos a podridão do mundo./ José, ícone dos povos transatlânticos,/defensor da justiça, sagaz e triunfante,/ arguto como o cavaleiro da triste figura,/ só tu que oscilante na ponta dos punhais,/ conheces o misterioso anfíbio da vida./ Sete vezes a fatalidade galopou nos teus ombros o calafrio/ --- peçonhento animal rastejou sobre as tuas vértebras/ e tu esmigalhaste com os dentes as vespas, os pistilos e os lagartos voadores./ Príapo da Kaliyuga, intimo dos chacais,/ venerado pelas princesas do Peloponeso,/ pelas fêmeas do Reino Mórbido/ estimado e estimulado pelas bailarinas de Lesbos,/ heráldico espadachim pantomímico,/ as ninfas gemem de pejo e os planetas estremecem quando passas./ O descendente de Belial,/ aniquila os súcubos, doma os morcegos, o pastor dos unicórnios,/ ordenhador das bruxas de Lúcifer,/ um simples pensamento emanado de tua fúria/ faz gemer os demônios, os patifes e os furacões/. Es um ser da lama dos alagadiços/ porque devastas os pântanos de lesmas e besouros./ Messiânico, fescenino, és o faquir dos outonos arcangelizados/ e eu, o devoto, conclamo teu poder purificador./ Verte o grito transido de gelados sobressaltos,/ afugenta os antílopes, cose a teia dos infortúnios./ O tempestuoso irmão de Zoroastro,/ és impiedoso com os tiranos e brincas na ventania./ Do inferno sazonaste as peras, sufocando as borboletas./O misericordioso arcanjo./ Lembro-me com que desvelo perfuraste o peito tísico dos vampiros,/ por ocasião das bodas de Satã./ Ó potestade do Cáucaso, José,/ a raça humana deve tanto a tua fecundidade/ que andas extasiado sobre os flagelos/ e destróis a vileza dos biltres./ Tu que bebes urina no crânio dos sarcófagos,/ gane, uiva, lobo esfomeado./ Abutre e fauno, vocifera contra o esterco  do Nada,/ transmuta o excremento das Parcas,/ gargalha ante a ignomínia/ porque reténs a fortuna de impérios inimagináveis./ Ruminando as messes douradas,/ berraremos como os animais santos que a morte esculhamba./ Tu que mijas na cloaca do organismo social/ pois a falsa moral fede muito, o grande possesso./ O espreitador de precipícios,/ ouve estas reflexões utópicas enquanto espancas a felicidade./ Tu que cagas na face dos invejosos, das hidras,/ pois só tu, anjo e demônio,/ podes escandalizar os deuses ostensivamente./ Nenhum mortal ousa desafiar a tempera dos monstros malignos,/ só tu, mendigo afortunado,  possuis o farnel das coisas dissolutas./ Em verdade, tens um pacto com os anofelinos/ que fuçam as paredes dos cemitérios,/ farejando a resina mineral./ A resina das origens./ O filho do opróbrio,/ ermitão que ministras polens venenosos aos sátiros,/ por que te debruças sobre os abismos/ e dissipas candeias pelos caminhos perdidos?/ Do teu claustro de vertigens,/ ensina-me a hipnotizar os hidrófobos,/ a soprar o cautério sobre os coágulos./ Em nome dos Arcanjos da Natureza,/ ensina-me a viajar no infinito como os filhos de Orfeu./ Tu que és eterno como os vampiros entediados,/ desvairado amigo,/ tu que sabes os signos mágicos dos antropófagos da própria desgraça,/ sultão, califa, faraó,/ Afrodite te persegue por tua fama degradante,/ gnomo de delirantes ilações e paixões caóticas./ maldito santo, maldito iluminado,/ tu que exorcisaste o amolador de punhais,/ tu que és cruel com os hermafroditas/ e cantas o desespero eterno,/ argonauta do mar do absinto e do sacrifício,/  silfo da Oceania,/ só o Mar pode aplacar o teu desatino”.

            Outro renomado escritor que não perde uma chance de tecer apologias ao maldito iluminado e o jornalista Blanchard Girão. Transcrevo um trecho de artigo publicado na imprensa cearense, em que Blanchard afirma o seguinte: “Espírito inquieto, rebuscando múltiplas verdades e contestando-as, procurando resposta as duvidas através da poesia, que acabaria por ser a sua única opção verdadeira na vida. Ora crédulo e temente a Deus; ora rebelado; tímido ou atirado, um ser humano complexo, onde  a mente em permanente efervescência se derrama em caudalosas idéias em prosa e verso. ... De longe, contudo, ou perto de seus escritos --- versos, contos e crônicas que tenho lido -- me parece, antes de tudo, um homem profundamente liberto, sem as peias das conveniências, dessa hipocrisia que tutela o chamado “bicho social”que somos ou que fomos obrigados a ser.”

            Dos amigos que lhe fizeram apanágios em prosa ou verso, a meu ver, quem melhor configurou-lhe o perfil foi Juarez Leitão, na  crônica citada nos parágrafos antecedentes. Para finalizar este esboço da personalidade do poeta, transcrevo alguns trechos do mencionado texto: “... Assim esguio como uma pintura de Modigliani, vive do oficio de inventar na terra das insânias, dos condenados da paixão, dos filhos da dor e do medo. Suas historias e cantigas armadas sobre o lado cinzento da vida se afirmam na densa maravilha da condição humana, em todas asa suas ambiguidades e contradições. Com a mesma espantosa profundidade Jose Alcides trata dos reflexos corriqueiros do cotidiano e dos grandes mistérios humanos. O confronto constante entre o real e o fantástico alimenta a peripécia de seus personagens, entre os quais ele figura como o mais estranho e singular protagonista. ... Travestido de compadre do diabo, e, entretanto, um romeiro devoto, capaz de fazer promessas e vestir o balandrau do Pobrezinho de Assis. Finge regar os caminhos de Satã para vencê-lo de tocaia e ganhar aas graças de Deus. É um homem cheio de riquezas e muito pobre de bens. Nunca mediu barreiras ou calculou os custos de sua aventura individual. Sua única medida e o prazer do salto e a vertigem do vôo. Constrói-se, como se diz, na contradição de si mesmo. E um saltimbanco, um mágico manipulador de faíscas nesse arame esticado de inconstâncias... A grandeza de Alcides resulta de sua autenticidade. O poeta e verdadeiro quando reza ou ate quando mente. Pôs-se diante da vida como rebelde porque conseguiu ser original, singular. Ivan Junqueira afirma que Alcides, tanto do ponto de vista estético, quanto do angulo existencial, escolheu a transgressão como deusa e musa”.    

           

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