Jornal de Poesia

 

 

 

 

 

 

Ailton Rocha


 

Paráfrase e alegoria

 

Os três filhos ingratos
(conto-paráfrase)

 

1 Deus, após criar o mundo e todas as coisas, criou também o homem. Depois descansou, porque amassar, moldar, assoprar e dar vida ao barro não é tarefa para qualquer um.

2 Aconteceu que nesse momento de cochilo, Ele permitiu que o Diabo criasse a mulher, a mesma que induziu o homem a comer a maçã vermelha, descobrindo assim, ambos, o desejo para sempre e todo o sempre.

3 “Serás Deus”, disse o Diabo em formato de Serpente, e riu às largas, lançando esse gracejo burlesco, alimentando no primeiro casal a sua própria ambição de usurpador. E assim foi criada a verdadeira raça que rasteja.

4 Deus tomou ciência da traição de ambos e ficou irado ao observar os atos de sua obra. Chorou pelo homem. Assumiu o erro, pesaroso. Quanto à mulher, fechou um olho, porque não era criação diretamente sua.

5 Um pouco confuso, Deus sorriu no canto dos lábios, que é o modo dos inteligentes diante das futilidades das coisas: “Essa que aqui está é mais filha da Natureza do que minha. E vejo que o anjo rebelde, outrora filho predileto, fez mais uma de suas travessuras. E sendo essa mulher mais neta do que filha, e sendo todos partes de mim, todos os erros eu assumo. Mas é preciso ministrar um castigo provisório”.

6 E abaixou a cabeça, um pouco envergonhado, evitando olhar para cima, temendo o descaso do outro Deus, mais poderoso e que habita alturas mais inacessíveis. Porque não é de duvidar que, nessa hierarquia de Deuses, perdem-se de vista os patamares. Acima de um Deus sempre existe outro Deus mais lúcido e menos sujeito a falhas, sugerindo a nós, vermezinhos, a idéia de quão distantes estamos da redenção, e que nos consolemos uns aos outros nessa condição de sinuosa vertigem.

7 Foi assim que o Deus de nosso círculo celestial mais próximo teve que agir: expulsou a mulher e o homem do Paraíso, condenando-os a tirar do próprio suor a sobrevivência na Terra, deixando-lhes como diversão os prazeres da carne, bem como as delícias da procriação para terem a ilusão de serem pequeninos deuses.

8 Tu, Adão, que veio de um barro gelatinoso, sairás a trabalhar a argila e construirás cidades e retornarás à mesma poeira de que foram feito teus ossos e tua carne. Serás como aquela matéria grosseira, colado às pedras, mal acabado, almejando individualidade mais amena. Às vezes obtuso, às vezes brilhante, reinarás sobre os bichos da terra.

9 Eva, tu, composta de um pedaço de osso, mais resistente e mais refinada, serás o complemento. Onde falhar a praticidade de Adão, tu reinarás pela intuição nos assuntos da alma. Ainda assim estarás associada à matéria. Quando não estiveres rastejando em gemidos de parto, estarás cumprindo o ciclo da lua, limpando o sangue das pernas. Será tua paga pela curiosidade no episódio do jardim, por seres tão tola ao acreditares nos apelos da serpente astuta. E, Homem, tu, mais tolo ainda por não refletires, estarás obrigado por lei a amparar a tua mulher nos dias de fluxo. E aconselho-te que tenhas paciência! Senão os teus dias serão bem piores naquele inferno para onde ireis.

10 Ambos conhecereis o declínio da beleza. Chegará o tempo, Adão, que o teu vigor decrescerá a olhos vistos. Não coordenarás os teus passos. As tuas vistas ficarão turvas. E qualquer moleque de aldeia direcionará as tuas pernas para caminhos alheios à tua vontade. Eva, que tanto valor dás às delicadezas, tu, apesar da sedução do rosto belo e das carnes firmes e dos peitos erectos e das coxas roliças e do púbis ardente, um dia também enrugarás como um pergaminho e tornarás ao pó e nada mais!

11 Homem e Mulher criarão a vida a partir do fruto proibido, mil vezes remoído e triturado, a gotejar um sumo doce e amargo nos vales da Terra. Mas valerá a pena, pois conhecereis o gozo no cio em escandalosos uivos de felicidade. Serão rápidos, é bem verdade, mas vão compensar toda a arrastada dor da existência. Os chistes amorosos e o jogo das seduções não vos diferenciarão dos outros animais da terra. Haveis de cometer os mesmos desvarios e não sereis superiores aos símios, ou aos cães ou às porcas em cio. Rolareis na mesma lama, e perdereis o sentido da dignidade todas as vezes que o desejo correr em vosso sangue. Chegará o tempo em que o prazer não será suficiente para amenizar o desespero pela ausência de afeto. Os filhos de Adão não vão respeitar as filhas de Eva, fechando os olhos à necessidade que elas têm sobre as coisas do coração. E como vingança elas vão amordaçar as próprias entranhas para que não eles não as penetrem totalmente. A estirpe de Adão haverá de pensar que o possui o domínio, ouvirá uivos (simulados) mas, lá no fundo bem fundo, só haverá o ressentimento e posse nenhuma. O membro de Adão chegará apenas nas proximidades do coração de Eva. O abismo da solidão reinará sobre a alma humana. E nada mais.

12 De teu ventre, Eva, nascerão os filhos para que o vazio da existência te seja ilusoriamente preenchido. Abel e Caim, assim serão chamados os da progenitura. Na testa de um, desejoso da prática do bem, estará a marca da ingenuidade, do sorriso manso; o outro será astuto e desprovido de escrúpulos. E o restante da imensa prole será a dos indecisos que correm como o vento sem direção sob a liderança efêmera ora dos bons ora dos maus. Saiba desde já que de todas as maneiras os maus abaterão os bons. E a honestidade será motivo de riso. Nos malfeitores o arrependimento pouco durará, porque na terra do suor e das delícias pouca serventia há em ser bom. E os pais criarão os filhos para o mundo, e estes certamente vão dizer impropérios e vão se lançar nas estradas. Porque desde muito cedo os filhos hão de rir dos conselhos e não vão respeitar as claras madeixas dos velhos, porque naturalmente nada hão de saber das armadilhas do mundo e do vinagre da vida. E quando estiverem aptos para a compreensão e retornarem ao lar para as saudações e gratidões já há muito tempo estarão os genitores irmanados com a poeira da terra.

13 Não queirais me indagar o motivo de tudo isso. Apenas vos digo que dou a prisão para que com o esforço do suor conquisteis a própria abundância. Por ele há de vir a libertação. O fruto que proibi e na curiosa comilança me desobedecestes é o conhecimento que só deveria chegar-vos no momento certo. Tu e ela roubaram o meu jardim, auxiliados por aquele que rasteja, o ambicioso maior. Sim, há inocência em vossos atos. Mas enxergardes, e coisas vistas são coisas conhecidas. Necessário é que arqueis com o peso desse antecipado conhecimento, colhido no impulso da inexperiência. Por isso, dou-vos a dor para que vos liberteis por vós mesmos. No fim de tudo, de todo conhecimento burlado, reinará a Vida. Eva, tu que roubaste a maçã, por muitos milhares de anos verterás o sangue que regará os nascimentos de onde surgirão civilizações. Serás chamada a Mãe da Vida, e por isso redimirás a ti e ao teu companheiro, Adão. E através desse teu ventre de Terra até mesmo o arcanjo rebelde encontrará o portal do retorno. Eva, o teu sangue será a redenção de todos os pecados gerados pela antecipação. Não me queirais mal, filhos e neta. Sou apenas Pai e Avô. E quando vos transformardes, vós e toda a Humanidade, em Deuses também, quando tereis encontrado a imagem da perfeição que almejo para vós, então, abrirei novamente as portas de meu Jardim.

14 O Supremo, por fim, dizendo tudo isso, de repente parou os gestos e ficou olhando o seu jardim. Talvez risse da exuberância de seus frutos proibidos. E não disse mais nada. Indicou a porta de saída aos dois filhos ingratos. Cansado de tudo, ergueu-se e foi empurrando também a Serpente e sua hoste para o abismo.

15 Desde então, o único conselheiro do homem e da mulher tem sido esse mesmo irônico Diabo, que às vezes se veste de misericordioso e cria religiões só para variar.

16 E Deus permaneceu triste, desamparado e sozinho em seu Paraíso. Os arcangélicos Miguel, Rafael e os outros, bem como os serafins e os querubins eram bons e eram justos, mas não podiam compreender a dor humana do Divino.

 

***

 

O quarto filho ingrato
(alegoria)

 

1 Então Deus resolveu criar um outro tipo de filho para fazer-lhe companhia.

2 “Serás masculino e feminino e essa será a única Imagem em cada lado do espelho! Como Espírito serás feito de excessiva inteligência e de exacerbados sentimentos. Revestido de sete cores, de sete sons, de sete palavras, serás profundamente conhecedor da beleza que existe tanto na luz como nas trevas.”

3 Mas esse novo filho cansou-se da companhia de Deus e quis fugir para conhecer a Terra, que é, como foi dito e repetido, exílio de dor e de delícias. Aqui ficou durante um tempo razoável e cansou-se também dos homens e de suas tolas vaidades e de suas estúpidas paixões.

4 E retornou ao Céu, pedindo humildemente a Deus: “Tanto o Céu como a Terra me aborrecem e ao mesmo tempo me fascinam. Quero liberdade para viver em ambos os lugares. E quero também uma diversão para preencher o tédio da existência: quero criar, ter a alegria da criação como o meu Pai tem.”

5 E Deus inclinou-se, e falou quase em sussurros, próximo ao ouvido do indeciso: “Filho ingrato! Dou-te o Céu e queres a Terra. Foges de mim para viver naquele antro e logo para cá retornas. Não queres nem um nem outro e ambos ao mesmo momento. E agora queres o dom da criação?”

6 E responde o filho: “Sim, meu Pai! Quero compreender a lactescência da Vida.”

7 “Queres imitar Deus?” – perguntou o Divino. “Mas nenhum ser imita o Criador impunemente. Queres criar? Pois bem, então criarás. Vais conhecer o dom da criação.”

8 Entusiasmado, responde o filho: “É o que mais quero. Nenhuma alegria pode ser mais profunda do que o ato da invenção. Estou disposto a pagar qualquer preço para ter esse dom a pulsar em todo o meu corpo, em minha mente e na totalidade de minha alma.”

9 E Deus, coçando a imensa e longa barba, sempre sorrindo e rindo pelo canto dos lábios, disse: “Sim, o terás. Serás sempre designado como ‘o escolhido, o artista’, como ‘aquele que tem o dom de ver e ouvir o que outros não podem’. És todo livre. Concedo-te a liberdade de escolha. Um poeta ? um pintor? um músico? Saibas que por onde caminharem os teus pés, hão de te chamar: ‘Ó mensageiro do Céu e da Terra!’. Entre raças e nações serás admirado, mas com inveja e medo. Lembra-te sempre: terás a admiração de quase todos mas nunca serás amado pelo dom que possuíres. Para os homens práticos serás no fundo apenas um desprezível doidivanas. E aqueles de cujos olhos lágrimas florescem diante da beleza oferecida, pelas costas tratar-te-ão de egocêntrico e arrogante. Olhar-te-ão com desconfiança, ainda que beijem as tuas mãos.”

10 E o Sereníssimo interrompeu aqui o colóquio, abaixou a cabeça cansada, olhou longamente a pele enrugada da mão, contemplou os dedos velhos, as falanges muito velhas, aqueles mesmos dedos com que compôs a poesia do firmamento e a música das esferas, os mesmos com que pintou a beleza dos mundos. E com aquele risinho amargo foi continuando:

11 “Sim, viverás o êxtase primordial! Mas também conhecerás a distância e o isolamento. Terás a chance, filho dileto, de compreender a solidão em que vive o teu Deus. E, assim, seremos companheiros na mesma alegria ...e na mesma dor.”

 

 

 

 

 

12.07.2005