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Revista de Cultura nº especial II
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Fortaleza/ São Paulo, setembro de 2000
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CRUZEIROS SEIXAS, UMA RETROSPECTIVA
Mário Cesariny
agseixas1.JPG (16405 bytes)Se existe ou existiu ortodoxamente uma pintura surrealista há que dizer-lhe depressa que Cruzeiros Seixas só se inserirá nela pela porta dadá: liberdade. Como em Duchamp ou Ernst ou Hans Arp cujos surrealismos, corroborados sempre por Breton, e pelos próprios, não mudaram uma linha às direções que cada um traçara antes dos anos 20.

Que sabiam de surrealismo ou de dadá todos aqueles que apareciam jovens no Café Hermíneos no dealbar da década de 40? Absolutamente nada. Nem era só de surrealismo ou de dadá que não sabiam. O que a inteligência ou ininteligência do lugar e da época lhes dava para ser sabido constituía amostra bastantemente hórrida daquilo que ainda estava por saber. Sabíamos (vagamente) da guerra mundial; da arte que se expunha no Secretariado de Propaganda Nacional; da arte mais ou menos da Sociedade Nacional de Belas Artes; dos cortejos de Leitão de Barros; de Alexandre e de Clotilde Sakaroff; da pintura de Antonio Pedro e de matemática elementar. Ainda era cedo para se saber de Pessoa, de Sá-Carneiro, de Souza-Cardoso, de Vieira da Silva. Sabíamos de Régio, de Torga, de Casais, mas não gostávamos tanto. Apanhados numa desjuntura sinistra (de gerações, de poéticas, de políticas), juntávamos a custo o próprio corpo. O aparecer de um livro de Ruy Cinatti, Nós não somos deste mundo, forneceu uma tarde de gáudio geral: todo o mundo fez ilustrações, após o que o livro foi deitado fora.

Também sabíamos da existência de um novo movimento poético, o neo-realismo, reivindicador da revolução pela imagem.

[…]

"Em 1944, escreve Pedro Oom, se pode limitar a fronteira do nosso magnífico isolamento; pois logo a seguir surgiu a imensidade de caras e de gestos que ainda hoje nos assustam". Este hoje refere-se a 1965.

É ainda sobre este pano de fundo que vejo a obra de Cruzeiro Seixas, tateando sempre o terreno-limite onde liberdade coincide com libertação. Os quinze anos de África decerto o ajudaram a distanciar a imensidade de caras que assustam, outras terá encontrado, mas com caminhos de milhares de quilômetros para a fuga e mates do princípio do mundo para a refração. Mesmo em Lisboa, era do continente desconhecido que trazia desenhos como retratos do inominado, esculturas e objetos impossíveis de haver, de abordar, de adaptar. Embora familiares de livros de Picasso, de agseixas2.JPG (14253 bytes)Chirico, dos expressionistas alemães, ignorávamos completamente Schwitters, Arp, Duchamp, e aquelas máquinas infernais ou celestes, imersas da combinação de detritos das ruas, de ferro, tábua e ossos encontrados no mar e súbito implantados em ambiente civil eram para nós, com a grande intentona, a grande revelação. Mas nenhuma fragilidade, ou frágeis, só, da hostil força massiva que desencadeavam e os foi desagregando, faltos do amor de perdição que exigiam.

Alguns deles chegaram à I Exposição dos Surrealistas, em 49, como à Exposição que os mesmos organizaram, ainda em Lisboa, no ano seguinte. Francamente dizendo, ninguém deu por isso - por eles, pelas exposições, pelas nossas pobres vidas. A não ser José-Augusto França, também é verdade, que embora em atrito direto com o e os expositores, fez crônica sobre eles na Seara Nova, tentando mesmo a consagração de dois.

agseixas3.JPG (17437 bytes)Passados todos estes anos, é com o maior júbilo que vemos quase toda a gente a fazer humor negro pintado ou escrito, provando-se a fortuna de antologistas que aproveitam sem medo as teses de Breton para reabilitação de literatura pátria, enquanto por outro-lado-o-mesmo-lado, a subsequente crítica de artes plásticas vai outra vez no começo, de que, di-lo-á alguém, abandonando-se assim às margens do grande rio o significado de certas inundações. Bom tempo, mau tempo, sempre passa um barco para o banhista ver e a comissão de festas premiar. Se é bom, se é mau, não sabemos - deve ser bom, quando não, ia ao fundo. Como foram ao fundo as figuras de proa cujos nomes passo porque nem sempre os que desistem ou morrem são quem vai mais morto.

De qualquer forma, não é hoje mais fácil surgir de olhos limpos a detectar a forma inicial com que Cruzeiros Seixas ironiza a forma e ironiza a sua própria vida, mesmo onde ela seria a mais dramática. Se os desenhos à pena são rumores de catástrofe, braços de bichos cegos, ciclistas despernados, vítimas todos de naufrágio na luz, nos objetos e na pintura, talvez pelo socorro da cor, é sempre de ironia que se trata, comentário à maneira com que o sol se põe. Ou a janela se abre. Ou a perna se estica. Não haverá maneira ainda mais incômoda de habitar o planeta? Suntuoso ou selvagem, amável ou terrível, Cruzeiros Seixas dá a outra hipótese, visão objetiva de quem está mas não vai demorar: não é para nós o consumo das coisas. em arte. Mas todo o ser heteróclito, todo o chapéu-funil, todo o telhado-ovo, todo o peixe-torre realissimamente objetivos da pintura de um Bosch toma o seu chá por estes Vinte bules e dezesseis quadros de Cruzeiro Seixas, acrescidos, aqui, de propostas de vida que podiam levá-los a sair para a rua, deixar as janelas verdes, beber o infinito terrestre.

Uma retrospectiva mais sistematizada do que aquela que Rui Mário Gonçalves pôde organizar na Galeria Buchholz, em 1967, mostraria como e a que ponto a pintura de Seixas, sem todavia levar ao esgotamento os rumos delineados - seriam necessários: a) disponibilidades materiais e horários que nunca teve, desde os anos 40 até esta risonha década de 70; b) menos amor à vida, é dizer, aos segundos de vida, de não-trabalho, de não-almoço, de não-dormir escravos que as vinte e quatro horas destes dias nos dão, quando dão, se dão -, tal retrospectiva, dizíamos, mostraria como a obra de Seixas representa entre nós não só confirmação da pintura surrealista que correr até à II Guerra Mundial, como a adivinhação de modos futuros. A presente exposição não deve pois ajudar a limitar esta obra à série de trabalhos que ora expõe. Tal série é devida, primeirissimamente, a Francisco Pereira Coutinho, que, constatada a persistente ausência de mecenas úteis, dispensou por um tempo o empregado e animou o expositor.

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