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Revista de Cultura nº especial II
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Fortaleza/ São Paulo, setembro de 2000
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AS CARTAS LITERÁRIAS DE ADOLFO CAMINHA
Sânzio de Azevedo
agsanzio1.JPG (16484 bytes)Poucos desconhecem o fato de que, no Brasil, o Simbolismo não conseguiu sobrepor-se ao Parnasianismo, passando a coexistir com ele, mas como uma corrente subterrânea, segundo sugeriu Andrade Muricy. E a prova disso é que, ao se pensar, em 1896, para a composição da Academia Brasileira de Letras, não foi lembrado um nome sequer de simbolista.

No Rio de Janeiro de então, centro das letras nacionais, os poetas mais prestigiados eram os parnasianos, como Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira, sendo que os ficcionistas mais reverenciados eram Machado de Assis, com seus romances realistas, e Aluísio Azevedo, chefe dos naturalistas em nosso país. Os simbolistas, seguidores de Cruz e Sousa, hostilizavam os ídolos do tempo: Gustavo Santiago, por exemplo, tirava o chapéu para Machado de Assis, não, entanto, como uma homenagem ao literato sem talento e sem obra que vive, por aí, assinando futilidades que se conhecem pelos nomes de Quincas Borba, Memórias de Brás Cubas e D. Casmurro, mas ao funcionário exemplar da Secretaria de Viação, que ele o é (Luís Edmundo, O Rio de Janeiro do meu tempo, s/d).

Adolfo Caminha, cearense que, em 1893, havia engrossado as fileiras do Naturalismo com o romance A normalista, publica em 1895 (antes de fazer editar o Bom-Crioulo, desse mesmo ano), seu único livro de críticas, as Cartas literárias, impressas na tipografia Aldina.

Logo na abertura do volume há uma expressiva dedicatória: A Isabel C***. Quero que o nome dela fulgure como uma legenda de ouro à primeira página de meu livro… Quem conhece os dados biográficos do escritor, sabe que ele, quando oficial da marinha, na Fortaleza de 1889, se uniu a Isabel Jataí de Paula Barros, que abandonou o marido, um alferes do Exército, o que gerou um escândalo na cidade provinciana e hipócrita, levando o jovem tenente a abandonar a Armada. A dedicatória é assim uma homenagem à mulher que transformou sua vida e como que uma resposta à sociedade que condenou a ambos.

Formado por artigos que haviam surgido na Gazeta de Notícias, do Rio, de novembro de 1893 a julho de 1894, aos quais acrescentou o autor pelo menos dois trabalhos aparecidos na Revista Moderna, de Fortaleza, em 1891, o livro revela, como seria de se esperar, mais que os outros, o espírito combativo do escritor.

A maior parte dos artigos, no jornal carioca, tinha como assinatura as iniciais C. A., e isso levou Alceu Amoroso Lima (Estudos,1934), por volta de 1925 (antes de conhecer o livro), a atribuí-los a Capistrano de Abreu ou a Constâncio Alves, já que as iniciais eram C. A., e não A. C. Advertido por João Ribeiro sobre a autoria real dos trabalhos, confessou o crítico não haver pensado em Adolfo Caminha por uma razão ainda mais forte: o artigo inicial da série era justamente a apologia de um livro de … Adolfo Caminha.

agsanzio2.JPG (11779 bytes)O que mais nos parece é que o escritor cearense, vendo-se atacado pela crítica do Rio de Janeiro (José Veríssimo, Valentim Magalhães e outros), e não tendo no momento um nome de peso que saísse em sua defesa, apelou para esse artifício, supondo que, assinando o próprio nome, talvez não despertasse o interesse dos leitores, que o julgariam suspeito para falar em causa própria. Mas nas Cartas literárias, assumiu a autoria dos trabalhos, e o primeiro da série no jornal passou a sétimo no livro, com o título Em defesa própria; nele o autor se defende das acusações que se haviam feito ao romance A normalista, considerando-o hoje fora de moda, emprestando-lhe feições libidinosas, e, por conseguinte, nocivas à moralidade social. Reage o escritor, dizendo, entre outras coisas: Aluísio Azevedo, cujos processos diferem dos meus, não foi mais escrupuloso nem menos cruel quando pintou a vida fluminense nas páginas admiráveis da Casa de pensão e do Cortiço.

Percorrendo-se as Cartas literárias, pode-se ver como o ficcionista se comportava no âmbito da crítica e, com isenção, pode-se constatar que o livro apresenta altos e baixos, com inegáveis equívocos ao lado de admiráveis conclusões e até mesmo predições. No primeiro capítulo, Novos e velhos, lamenta Adolfo Caminha o quadro desolador a que, segundo ele, havia chegado a literatura nacional, e fazendo ligeiro retrospecto das letras no Brasil, afirma: Com José de Alencar morria o romance brasileiro, que ele criara cheio de zelo pelas coisas do seu país. É que, para o crítico, os leitores não suportavam mais o sentimentalismo de Macedo: dos contemporâneos de Alencar, para ele, somente Machado de Assis pudera escapar à indiferença pública, e precisamente porque se fora desembaraçando cautelosamente dos velhos moldes e enveredando pela psicologia. Mas o ideal, para Caminha, era o Naturalismo, tanto que, ao tratar das Memórias póstumas de Brás Cubas (a nosso ver um dos pontos mais altos da ficção machadiana), conclui: Não é tudo o que se poderia desejar, mas difere muito dos velhos contos e fantasias. O mulato, romance de estréia de Aluísio Azevedo, é, na sua opinião, um primoroso romance de cunho nacional.

agsanzio3.JPG (11964 bytes)Há no livro não poucos ataques aos simbolistas. Apesar de o escritor admirar Antônio Nobre, o fato de o Simbolismo ir contra o domínio do Realismo-Naturalismo faz com que ele escreva coisas como esta, referindo-se aos novos poetas: Essa aristocracia, que se pretende criar na arte, não consultando a intelectualidade da maioria, redunda em um monopólio odioso e incoerente. Em outro passo do livro censura essa mocidade que anda se iludindo com os simbolismos de uma arte falsa e pobre, rebuscada em Verlaine. Entretanto, logo no primeiro trabalho afirma: Se me perguntassem, porém, qual o artista mais bem dotado entre os que formam a nova geração brasileira (…) eu indicaria o autor dos Broquéis, o menosprezado e excêntrico aquarelista do Missal, muito embora sobre mim caísse a cólera do Parnaso inteiro. A explicação, porém, para Caminha atacar os simbolistas e exaltar Cruz e Sousa, o maior deles, está nessa observação do mesmo trabalho: Não tem escola; sua escola é o seu temperamento, a sua índole, e este é o maior elogio que se lhe pode fazer. Opinião que, supomos, o poeta catarinense não deve ter endossado…

É interessante a independência como Adolfo Caminha fala de escritores já consagrados. Ao analisar A Capital Federal, de Coelho Neto, faz-lhe elogios, mas acompanhados de restrições a certas personagens que não têm vida própria, e ao estudar Praga, do mesmo autor, condena-lhe o amaneirado inútil da adjetivação e o emprego desnecessário e mesmo antiestético de vocábulos raros.

Comentando o romance Lupe, de Afonso Celso, ataca o jacobinismo em arte e indaga: Por que razão havíamos de negar talento às gerações que nos precederam? E, em Musset e os novos, investe contra os que, empolgados com a arte de Baudelaire, desmerecem nos versos do poeta de Nuits, fazendo esta profecia admirável: As escolas desaparecem, ficam as obras; amanhã, quem sabe? Outro poeta virá, outro gênio com idéias novas, com uma forma absolutamente original; mas nem por isso Baudelaire será esquecido.

Três artigos não poderiam ter boa repercussão no Ceará: Uma estréia ruidosa, praticamente o mesmo que, sobre os Versos diversos, de Antônio Sales, fora estampado na Revista Moderna, de Fortaleza, em 1891; A fome, da mesma revista e da mesma época, abordando a estréia de Rodolfo Teófilo no romance; e A Padaria Espiritual, falando da originalíssima agremiação criada por Sales e da qual ele, Caminha, fora um dos fundadores, na Fortaleza de 1892.

Há, nesses três artigos, algumas observações interessantes, mas o que predomina neles são os traços de flagrante injustiça, o que levou Antônio Sales (O Pão, n. 25, 01/10/1895), assinando-se M. J. (Moacir Jurema, seu nome de guerra na Padaria Espiritual), a sentenciar: Caminha é arroubado, birrento, rancoroso, e não é dessa massa que se fazem os críticos dignos de tal nome. Até Frota Pessoa (Crítica e polêmica, 1902), grande amigo de Adolfo Caminha, reconheceu que nem sempre sua crítica foi impassível: Algumas vezes exagerou o encômio e outras vezes a censura; mas dentro dela estava inteira a sua alma de lutador vibrante no seu entusiasmo renascente. Em nossos dias Lúcia Miguel-Pereira (Adolfo Caminha, 1960) observou que o autor de A normalista, nas páginas impressionistas de Cartas literárias, deixou vários juízos e depoimentos de interesse para o estudo de sua época, e, sobretudo, para o seu próprio estudo. Nem precisaremos nos alongar mais neste comentário, porque, graças à iniciativa das Edições UFC, está sendo pela primeira vez reeditada essa obra, que há muito se transformou em raridade bibliográfica.

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