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Revista de Cultura nº especial II
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Fortaleza/ São Paulo, setembro de 2000
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OS VIVENTES (NOVOS E ANTIGOS)
Carlos Nejar
agnejar1.JPG (16114 bytes)Não sei a que ponto deponho sobre minhas criaturas, ou elas sobre mim. Não importa. Não deixa de ser uma forma de ficarmos sós com aquilo que amamos, assim pensava Novalis. Ou de expandirmos o que amamos para o mundo.

Em julho de 1967, nasceu o primeiro vivente, na pessoa de Francisco Tesser, vereador de pássaros, que encontrei, em Guaporé, Rio Grande do Sul. A partir dele, criei O anel do vento (espécie de apresentação teatral) e vieram poemas aos filhos, amigos, poetas, seres bíblicos, alguns benditos e outros danados, seres que se inventam e que me foram pelo caminho inventando. Os últimos a brotarem nessa leva foram Damuel Patriarca e Augusto Parreira, malandro de muita fé, aparecidos em outubro de 1978. E o livro saiu no ano seguinte, pela Nova fronteira, com 66 personagens e excelente acolhida, tanto da crítica, quanto do público, pois logo se esgotou a edição. Sobre o livro, assim escreveu Carlos Drummond de Andrade, no ano de sua saída: Estou circulando entre Os viventes e sentindo o calor existencial, a vibração humana que ele contém e distribui. É obra que, sucedendo ao canto anterior e antecipando o canto que continuará extraindo de sua mina poética, nos dá um belo exemplo de permanência e invenção contínua.

E bem previu Carlos Drummond. Em janeiro de 1980, recomecei esse paciente trabalho e novos seres surgiram, tipos, sonhos de nossa atribulada condição humana. O anel do vento ficou intocado. Houve a inclusão de novos capítulos ou livros (dentro do livro), na medida em que poemas tomavam rosto, tais como: A casa dos nomes (onde se enxertaram os viventes familiares, amados e os mais íntimos); A arca da aliança, com as criaturas emanadas do Velho e Novo Testamento, todas ganhando voz, entre experiências e revelações, tendo acrescentado, apenas nessa parte, 25 personae; Os ofícios divinos e terrestres, desde O médico de campanha, Eugênio Taylor até Arão, o peixe, entre outros, trazendo à baila mais 22 seres, além dos já existentes. E em Baldeações, misturei os mitos ( Narciso, Sísifo, Tântalo, a jovem Parca, Caronte) às criaturas da história (Ovídio, Napoleão Bonaparte, Dante e algumas de suas imaginações, Pablo Neruda, D. Fernando VII, Giordano Bruno, Nicolau Copérnico, Luís de Camões, Borges…) ou às criaturas da arte, pintura e escultura ( Os bufões de Velásquez, várias figuras de Goya, Corot, Rodin, Camille Claudel…), ou aos agnejar2.JPG (19127 bytes)servos da fereza, maldade, espanto, poder, amor, usura, sovinice, cumplicidade, literatice, preguiça ou insânia. Sem esquecer O último pampeano (sobrevivente da Guerra dos Farrapos), os constituintes, os moratórios, os cassados ou fantasmas civis, os vitimados das guerras (do soldado desconhecido aos designados heróis), Públio Orégano – o ditador, o garimpeiro da Serra Pelada, ou o Robinson da Silva Brasil Crusoé, perfazendo mais quarenta personagens, além dos anteriores. Adicionei um coro, o coro dos viventes, para que todos, unidos na palavra se fizessem ouvir, reinvidicatórios, conscientes de sua transitoriedade e duração. Pois, o que condena um ser, a outro salva. / O que é vivo se nutre do que é vivo.

Mantive o derradeiro capítulo do livro publicado em 1979, denominado Minudências, inserindo A nuvem de sementes, Ode ao pampa, Genealogia da palavra, Testamento verde e Pedra votiva. E não me contentei com os viventes humanos, voltando ao sentido original de que vivente é tudo o que tem fôlego, sopro de vida. Construí o Livro das bestas e insetos, composto de trinta e três poemas, entre cães, formigas, búfalo, baleia, cabra, águia, gato, mosca, elefante, hipopótamo, urso, zebra, cavalo… Certo de que os animais se parecem tanto com o homem, que às vezes é impossível distingui-los (k’nio mobutu). Terminei minha empreitada de lucidez, perseverança e febre, apenas em maio deste ano, decorridos 22 anos desde o poema inicial e 20 anos após a publicação (apenas núcleo do atual volume) de sua primeira edição. No ínterim, vaguei pelo interior do pampa, morei em Porto Alegre, vivi no exterior, depois aportei no Espírito Santo, primeiro em Vila Velha, Vitória, hoje, aqui, neste Paiol da Aurora, diante do mar de Guarapari, onde encontrei Ulisses. E agora, no prelo da editora Record, ansiosos, aguardam. Porque tudo é deste reino, mesmo que seja de passagem.

agnejar3.JPG (20203 bytes)Quanto aos nomes dos viventes, recordo-me do que salientou Faulkner: Meus personagens escolhem sempre os seus nomes. Não preciso inventá-los. De repente os meus personagens dizem quem são. Às vezes até durante a sua criação, mas nunca muito depois, me declaram a sua identidade. E os nomes estão ligados ao seu destino, como também, se carregam de qualidades, desígnios, defeitos. Ou é somente o tempo que lhes ocupa o nome. Não me cabe julgá-los, nem julgar por eles. Os meus viventes falarão o que calei. Ou falarão, existindo. Sua juventude é a alma. E alma é sem idade. Como os sonhos.

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