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Revista de Cultura nº especial II
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Fortaleza/ São Paulo, setembro de 2000
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AMEDEO MODIGLIANI: DOLOROSOS DIREITOS DA BELEZA
Floriano Martins
agmodigliani1.jpg (8885 bytes)No início do século XX a Europa é tomada de assalto por inúmeros movimentos artísticos: o inaugural Fauvismo – termo oriundo de fauves (feras) –, os dois cubismos (analítico e sintético), o Futurismo, o grupo expressionista alemão Die Brücke (A ponte), o holandês De Stijl (O estilo), o furor dadaísta, até chegarmos à grande soma que sugeria o Surrealismo. Dali surgiram alguns importantes artistas, a exemplo de Henri Matisse (1869-1954), Georges Braque (1882-1963), o escultor Umberto Boccioni (1882-1916) – seguramente a grande contribuição do Futurismo –, Wassily Kandinsky (1866-1944), Piet Mondrian (1872-1944) e Marcel Duchamp (1887-1969).

Na verdade, não se trata tão-somente da Europa, e sim de toda uma circunstância de fundamento da criação artística em todo o mundo. Tínhamos os olhos voltados para o Velho Mundo, e ali foram dar todas as vozes que buscavam algum reconhecimento. Para ali foram o russo Kasimir Malevich e o brasileiro Vicente do Rego Monteiro, entre inúmeros outros. E mais do que para a Europa, todos iam para Paris, centro magnético de toda a revolução artística daquela época. Não foi diferente para o italiano Amedeo Modigliani.

Nascido na Toscana, em julho de 1884, Modigliani foi desde cedo um impetuoso apaixonado pela vida, disposto por natureza a não seguir regras de espécie alguma. Sua infância dividiu com uma série de complicações de saúde e a desdobrada atenção de sua mãe, que o levava a visitar os museus. Foi assim que tornou-se aluno do estúdio de Guglielmo Micheli, um paisagista algo distanciado das tendências do que então era dado como vanguarda. O agravamento da saúde o conduz a várias cidades, sempre em busca de tratamento. A passagem por Capri, Nápoles, Roma e Florença alia um roteiro de cura à oportunidade de dedicar-se exclusivamente ao desenho.

Sempre acompanhado de sua mãe, Modigliani segue revelando um espírito irreverente, dotado de intenso sentido de independência. Pouco afeito às aulas nos estúdios em que se inscrevia, segue preferindo os passeios por museus. Sua última instância na Itália é Veneza, quando conhece obras do Impressionismo e sobretudo apaixona-se pelo expressionismo alemão. Tem pouco mais de 20 anos e logo compreende que não pode seguir residindo na Itália. Muda-se então para Paris, em 1906, e logo passa a conviver com os artistas do Bateau Lavoir, um grupo que se encontrava freqüentemente nas mesas do Lapin Agile, em Montmartre.

agmodigliani2.JPG (24031 bytes)Modigliani trazia consigo alguns sinais de resistência que já o singularizavam: sua rejeição a pintar natureza-morta ou paisagens. Tinha uma exacerbada preocupação com o humano, e buscava sua expressão justamente onde melhor poderia encontrá-la: no olhar, nos rostos, nos retratos. Paris urdia sua revolução artística. Exultantes à luz estavam os pós-impressionistas, enquanto que ardia sob a escuridão a arte rebelde, marginalizada sobretudo no que trazia de ousadia para os padrões morais da época. Modigliani conhece então Brancusi (1876-1957) e Max Jacob (1876-1944), amizades que o marcarão bastante. Com Brancusi passa a aprender modelagem e escultura.

Em 1908 expõe pela primeira vez, no Salão dos Independentes, em Paris, uma vez que havia se tornado membro da Sociedade dos Artistas Independentes. Foi uma de suas raras exposições coletivas. Participa de uma mostra de telas com o português Amadeu de Souza-Cardoso, no atelier deste último, em 1910. Dois anos depois expõe no Salão de Outono, juntamente com dois outros escultores. Nova exposição, em 1917, ao lado de Picasso e alguns mais. Pequenas mostras coletivas. E uma única exposição individual: a mostra de seus nus, em 1917, na galeria Berthe Weil, graças ao empenho do poeta e marchand Léopold Zborovski, um de seus mais dedicados protetores.

A exposição provocou um natural escândalo. Modigliani punha à mostra uma série de mais de vinte nus, alguns deles revelando os pelos pubianos. Na verdade, desvelava dois aspectos: o desnudamento do olhar e a irreverência diante dos temas tipicamente abordados por sua época. A cidade luz era tão conservadora quanto qualquer outra província do planeta. Os pelos nus das modelos de Modigliani faziam cair por terra toda aquela fanfarra estética de luz, sombra, cor, princípio de composição e construção de uma nova realidade, cópia ou não cópia do real etc. Modigliani dizia que as personagens de Cézanne, "como as belas estátuas antigas, não têm olhar". Descobriu na pupila uma exímia forma de contestação da moral reinante.

Não pintava nus, e sim pessoas despidas de suas máscaras sociais. O nu propiciava uma revelação do corpo, tão ocultado quanto o sentimento. Modigliani captava com exímia facilidade a expressão ulterior de cada modelo seu, tendo retratado alguns várias vezes. Era um obsessivo da condição humana. Na infância certamente tomou conhecimento dos renascentistas italianos, sobretudo Giotto (1266-1337). Um homem assim, em um século que ansiava por inovações formais, teria que ocasionar um escândalo. Modigliani não se prendia às escolas. Esteve nas noites estridentes do Cabaret Voltaire, nas mesas de todos os bares parisienses etc. É curioso observar que esta sua individualidade o deixe de fora atualmente de inúmeros estudos sobre as décadas iniciais deste século: os movimentos foram afinal convertidos em escolas.

agmodigliani3.jpg (10712 bytes)Críticos de Modigliani dizem que seu alcoolismo ou o vício em haxixe foram empecilhos da aceitação de seu trabalho. Modigliani adorava beber enquanto pintava. Tinha uma personalidade fustigadora, de se entremear pelos olhares das pessoas, buscando seus sinais de humanidade. Uma saúde precária, uma sociedade ainda mais precária. Não buscava formas e sim expressões humanas. Já havia adquirido as formas de seu dizer. Cantava quando pintava. Era um homem tomado de urgências. Pintava e bebia exaustivamente. Nada que seu tempo pudesse lhe dizer importava tanto quanto o que seguia lendo nos olhos das pessoas que pintava.

Havia um largamente tradicional equívoco em relação ao corpo. Seu sentido de movimento e conseqüente erotismo foi ressaltado por Modigliani. Ao expor uma indecente carnalidade buscava mais do que o escândalo em torno dos pudores disfarçados da época. Modigliani revelou, no traço, na singeleza com que buscou o delineamento de seus retratos, e na significação do olhar de seus modelos, uma essencialidade do corpo, ou seja, uma carnalidade essencial à filosofia. Definiu assim uma erótica, em contraponto a um brutal preconceito carnal existente. Foi naturalmente considerado obsceno. Situou a importância do corpo antes que surgisse sua aceitação por vias freudianas.

Quando garoto, disse: "a beleza tem seus direitos dolorosos: cria, porém, os mais belos esforços da alma". Morreu aos 36 anos, encharcado de tuberculose, álcool e haxixe. Sua morte ocasionou o suicídio de sua esposa, logo no dia seguinte. Modigliani foi deixado de lado por várias décadas. No início desta década foram apresentadas 400 obras deste artista que pôs em discussão um fato simples: não se pode discutir ou propor uma nova estética se baseada apenas em um artifício formal. Não importa quantos -ismos surgiram neste século. O Ocidente ainda está tomado por uma Guerra Santa. Modigliani acentuou as contradições artísticas de sua época. Não esteve com nenhum grupo. Foi apenas Amedeo Modigliani.

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