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revista
de cultura # 46 |
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Gnose, gnosticismo e a poesia e prosa de Hilda Hilst Claudio Willer
Lembrando: Amavisse,
de Hilda Hilst: pacto com o hermético é a transcrição de um artigo
publicado em 1990 no Jornal do Brasil. Desde então, muita água rolou. Pesquisei mais o
gnosticismo, e preparo uma monografia ou capítulo de algo sobre essa
doutrina. Hilda Hilst publicou outros livros importantes, depois de Amavisse. A bibliografia sobre ela cresceu. Retornei em algumas
ocasiões à sua poesia – a mais recente, em uma palestra para um ciclo
no SESC, organizado por Beatriz Azevedo, em março deste 2005. É preciso, antes de mais nada,
deixar claro o seguinte: blasfêmias, religiosidade herética, misticismo
pessoal, afinidade com gnosticismo, com sistemas filosófico-religiosos do
oriente, budismo e hinduísmo, com outras doutrinas, hermetismo inclusive,
e com poetas-místicos cristãos – tudo isso, já observado pela própria
Hilda Hilst ou por comentaristas, é inseparável de sua densidade, de sua
dimensão propriamente metafísica e ao mesmo tempo transgressiva. Contudo, o que a torna uma grande
poeta é, em primeira instância, a capacidade de criar imagens
poéticas através da aproximação de realidades distantes. Por
exemplo, ao enxergar (aqui citando Amavisse,
na edição de Massao Ohno de 1989, toda anotada por mim – esses poemas
foram republicados em Do Desejo,
editora Pontes, 1992, e pela Globo, em suas obras completas) Os
ponteiros de anil no esguio das águas. Ao dizer que uma mulher dentro
dela tinha o rosto de uns rios,
e a viu no roxo das ciladas. Ao
criar títulos como Rútilo Nada.
Ou ao falar de Um peixe raro de
asas/ As águas altas/ Um aguado de malva/ Sonhando o Nada, em Da
Morte. Odes Mínimas (Ed. Globo, 2001). E, no vertiginoso Cantares
(Ed. Globo, 2001), ao descrever Um
cemitério de pombas/ Sob as águas/ E águas-vivas na cinza.// Ósseas e
lassas sobras/ Da minha e da tua vida. Essas imagens rompem com o
discursivo, com o prosaico. Seguem o pensamento analógico, a lógica do
sonho que desconhece os princípios da identidade e não-contradição –
O que restou de nós decifrado nos
sonhos, como diz em Amavisse –,
da alucinação e da loucura: estendi-me
ao lado da loucura/ Porque quis ouvir o vermelho do bronze. Deixando de lado esses
componentes do valor poético, interpretações filosófico-religiosas
podem ser redutoras. Mas isso não impede a identificação, como o fiz no
ensaio anterior, do Deus em passagens de Amavisse
– como Que
vertigem, Pai./ Pueril e devasso/ No furor da tua víscera/ Trituras a
cada dia/ Meu exíguo espaço ou em Deus, um cavalo de ferro/ Colado á futilidade das
alturas – a Ialdabaoth,
o Demiurgo gnóstico. Essa visão de Deus acentua-se,
chega a um paroxismo, em outras das obras de Hilda, especialmente, de sua
prosa, em A Obscena Senhora D
(cito da edição Massao Ohno – Roswitha Kempf de 1982): olha Hillé a face de Deus E em Estar sendo, ter sido (Nankin, 1997), seu último livro, um vigoroso
testamento literário: as coisas que
o Criador faz. deve rir sem parar das coisas que constrói. […] Aqui
estou eu, eu Vittorio, Hillé, Bruma-Apolonio e outros. eu de novo
escoiceando com ternura e assombro também Aquele: o Guardião do mundo. São representações de Deus que correspondem àquela de
Georges Bataille, autor lido por Hilda (citado em passagens de sua obra,
inclusive em uma epígrafe de Amavisse),
em sua exacerbada crítica ao antropomorfismo e ao idealismo: Deus
saboreia-se, diz Eckhart. É possível, mas o que ele saboreia parece-me
que é o ódio que ele tem de si mesmo, ao qual nenhum, cá na Terra, pode
ser comparado
[…] O que, no fundo, priva o homem
de toda possibilidade de falar de Deus é que, no pensamento humano, Deus
torna-se necessariamente conforme ao homem, na medida em que o homem é
cansado, faminto de sono e de paz. […] Deus
não encontra repouso em nada e não se sacia com nada. Cada existência
está ameaçada, já está no nada da Sua insaciabilidade. E assim como
Ele não pode se acalmar, Deus não pode saber (o saber é repouso).
[…] Ele só conhece o seu nada, e
por isto Ele é, profundamente, ateu: Ele cessaria tão logo de ser deus
(só haveria, no lugar da Sua horrível ausência, uma presença imbecil,
abobalhada, se Ele se visse como tal). (a citação é de Bataille, A
experiência interior, Editora Ática, São Paulo, 1992) Conforme observa Eliane Robert de
Moraes, especialista em Bataille, em ensaio sobre Hilda Hilst (no Cadernos
de Literatura Brasileira – Hilda Hilst do Instituto Moreira Salles):
Não por acaso, o alvo primeiro
dessa violência [contra o ideal, belo e inatingível] será
o mesmo Deus que antes habitava a Idéia e sustentava a ilusão do Todo
– esse equivalente algébrico e abstrato das vãs promessas de salvação.
Ou, como resume Leo Gilson Ribeiro (também no Cadernos
do IMS): Durante certo período de
tempo, Deus lhe apareceu como o Baal de Brecht, monstruoso, sádico. É um Deus gnóstico. Os adeptos
do gnosticismo não apenas atribuírem a criação e regência do
mundo a um Demiurgo, “pequeno deus”, de segunda ordem – nisso
acompanhando Platão – mas descreverem esse cosmocrator,
regente do mundo – chamado de Ialdabaoth, Samael ou Saclas – como
cego, orgulhoso, arrogante, prepotente e obtuso. Conforme A realidade dos Governantes, uma das “escrituras gnósticas” da
Antiguidade (publicada em As Escrituras Gnósticas de Bentley Layton, ed. Loyola): Abrindo
os olhos, ele [Ialdabaoth, engendrado pela fé e sabedoria, ou seja,
Pistis Sophia] viu uma vasta quantidade de matéria sem limite; e ele se
tornou arrogante, dizendo: “Eu é que sou deus, e não há nenhum além
de mim.” […]
Este governante, por ser andrógino, fez para si mesmo um vasto reino, uma
extensão sem limite. E ele pensou em criar filhos para si mesmo, e criou
para si mesmo sete filhos andróginos exatamente como o pai deles. E ele
disse a seus filhos: ‘Eu é que sou o deus da totalidade. Para o historiador das religiões Henri-Georges Puech
(autor de de En quête de la Gnose,
Gallimard, 1978), gnosticismo é reflexão sobre o mal, buscando entendê-lo
e descrever sua origem. Conferiu-lhe estatuto ontológico e dimensão cósmica: O
firmamento, os corpos celestes, especialmente os planetas que presidem ao
Destino, à Fatalidade, são seres maus ou a sede de Entidades inferiores,
tais como o Demiurgo e os anjos criadores, ou Dominadores demoníacos, com
formas bestiais: os “Arcontes”. Em uma palavra, o universo visível,
de divino que era, torna-se diabólico. O homem nele sufoca, como em uma
prisão, e, longe de ser manifestação do verdadeiro Deus, traz a marca
de sua enfermidade ou de seu malefício congênito: nele não se
reencontra nada, a não ser a mão de um Ser decaído ou perverso. Jean Doresse, outro estudioso importante do gnosticismo,
expõe a crença comum a uma diversidade de cultos gnósticos, ao que
consta fundados por Simão o Mago, e que competiram com o cristianismo
entre os séculos I e V d. C (para em seguida reaparecerem como maniqueístas,
bogomilos e cátaros): […] a Lei de Moisés é má,
pois não havia sido o Deus supremo, porém certos anjos os que haviam
criado o mundo inferior. São talvez essas mesmas doutrinas as que se
ocultam no prólogo do Evangelho de João
(o mesmo João cujo Apocalipse
evidencia uma grande cólera contra as seitas), cujas definições refutam
implicitamente, ponto por ponto, o ensinamento de que o mundo de modo
algum é obra do Deus Supremo: a luz se viu atacada pelas trevas, o Logos
não assumiu a carne mais que em aparência, vindo a este mundo só para
certos eleitos ou privilegiados. (Doresse, La Gnosis, em Puech, Henri-Charles, org. Historia
de las religiones, editora Siglo XXI, Madrid, 1979) Conforme observou Octavio Paz em A dupla chama – Amor e Erotismo (Editora Siciliano, 1994), a propósito
dos cátaros, gnósticos e maniqueístas tardios da Provença medieval,
…o dualismo é nossa resposta
espontânea aos horrores e às injustiças da Terra. Deus não pode ser o
criador de um mundo sujeito ao acidente, ao tempo, à dor e à morte; só
um demônio pode ter criado uma terra manchada de sangue e regida pela
injustiça. Por isso, gnósticos certamente subscreveriam a visão de
mundo expressa com veemência na Ode
a Walt Whitman de García Lorca (transcrevo da Obra Poética Completa de García Lorca, tradução de William Agel
de Melo, Martins Fontes – UEB, Brasília, 1989): Agonia,
agonia, sonho, fermento e sonho.
Mas o gnosticismo não se resume à postulação de um
mundo intrinsecamente mau, corrompido, por conseguinte criado e regido por
um Deus mau. Nisso interagindo com o hermetismo de Alexandria, seu
contemporâneo, gnosticismo é a doutrina religiosa do conhecimento.
Layton, no já citado As Escrituras
Gnósticas, identifica gnosis
a um entendimento não-discursivo. Puech diz o mesmo (em En
quête de la Gnose): Conhecimento
ou reconhecimento de si, revelação de si mesmo a si mesmo, a gnose é,
portanto, simultaneamente o conhecimento de todo o universo, visível e
invisível, da estrutura e do devir do mundo divino assim como do mundo físico.
[…]
O conhecimento de si implica redenção de si, assim como aquele do
universo implica os meios de se libertar do mundo e dominá-lo. Esse especialista observa que gnosis é palavra transitiva, que supõe um genitivo. É sempre
conhecimento de algo: daí o uso
do termo pelo gnosticismo ser estranho. Sugere identidade com o divino, a
esfera superior, os mistérios, e também consigo mesmo, com a própria
alma, com a centelha de luz que permanece no ser humano: O que é, com efeito, a gnose senão – como significa seu nome grego, gnosis – “conhecimento”, ou seja, conhecimento no sentido absoluto do termo, ou, mais precisamente, um conhecimento que é, em primeiro lugar, conhecimento simultâneo e recíproco de si mesmo em Deus e de Deus em si mesmo, que permite àquele que possui esse conhecimento, o “gnóstico”, salvar-se, assegurando-lhe que pode ser salvo, que o será e que inclusive já o é? A perfeição gnóstica
é uma
reintegração, nisso assemelhando-se a doutrinas orientais; em
primeira instância, ao budismo e hinduísmo. Trata-se de um conhecimento
que não apenas eleva, mas salva, permitindo que o eleito
venha a livrar-se deste mundo. Conforme o Zöstrianos,
outra das ‘escrituras gnósticas’ (transcrito em As Escrituras Gnósticas de Layton), a pessoa que se salva é a que procura compreender e, assim, descobrir a
si mesma e ao intelecto. Novamente citando Doresse (no já citado Historia
de las religiones): Conhecer-se
é, com efeito, reconhecer-se, reencontrar e recuperar o verdadeiro
“eu”, anteriormente obnubilado pela ignorância e pela inconsciência
a que a fusão com o corpo e a matéria submete o homem: a gnosis é em
realidade uma epignosis, um “reconhecimento”, uma rememoração de si
mesmo.’ Gnose é, por isso, um conhecimento que se confunde com seu
objeto, como se as categorias do ser e conhecer fossem uma só. Isso fica
claro através desta citação do Evangelho
do Apóstolo Tomé (também em As
Escrituras Gnósticas de Layton), expressão de um cristianismo
oriental, herético e hermético, afim ao gnosticismo: As
pessoas não podem ver coisa alguma no reino real, a menos que se tornem
essa mesma coisa. No reino da verdade, não é como os seres humanos no
mundo, que vêem o sol sem ser o sol, e vêem o céu e a terra e assim por
diante sem ser eles. Antes, se você viu qualquer coisa lá, você se
tornou aquela coisa: se você viu o espírito, você se tornou o espírito;
se você viu o ungido (Cristo), você se tornou o ungido (Cristo); se você
viu o [pai, você] se tornará o pai. Assim, [aqui] (no mundo) você vê
tudo e não [vê] a si mesmo. Mas lá, você vê a si mesmo; pois você se
torna o que você vê.’ É possível observar, através dessas sinopses, uma
diferença fundamental do gnosticismo com relação à doutrina cristã: a
salvação não é mais conseqüência das ações e da fé, mas do
conhecimento. E mais: a valorização gnóstica do conhecimento equivale a
uma divergência frontal com a ortodoxia cristã, como argumenta outra
importante estudiosa do assunto, Elaine Pagels (em As
Origens de Satanás, Ediouro, Rio de Janeiro, 1996): Os
cristãos, diz Tertuliano, citando Paulo, deveriam,
todos, falar e pensar as mesmas coisas. Quem
quer que se afaste do consenso era, por definição, um herege, porque,
como observa ele, a palavra grega traduzida como “heresia”
(hairesis) significa literalmente
“opção”. Logo, o “herege” era um indivíduo que faz uma opção.
[…] Tertuliano, porém, reafirma que fazer opções era um mal, porque elas
destroem a unidade do grupo. A fim de erradicar a heresia, continua, os líderes
da Igreja em hipótese alguma deviam permitir que as pessoas fizessem
perguntas, porque as perguntas é que as tornam heréticas – acima de
tudo, aquelas como as seguintes: de onde vem o mal? Por que o mal é
permitido? Qual a origem dos seres humanos? Tertuliano quer colocar um
ponto final nessas questões e impor a todos os crentes a mesma regula
fidei, ”regra da fé”, ou crença.
[…]
O verdadeiro cristão, diz Tertuliano, apenas resolveu nada saber …
que divirja da fé.’ Em sua tentativa de superar a antinomia entre sujeito e
objeto, no gnosticismo a iluminação coexistiu com a reflexão. Ligou-se,
sob esse aspecto, à alquimia e ao hermetismo de Alexandria, do Corpus Hermetico, seu contemporâneo. Podem ser-lhe afins tendências
modernas que propõe a síntese ou integração de várias modalidades de
saber, a exemplo do holismo, do conhecimento amplo pregado por Edgard
Morin. Gnose ainda equivale a um conhecimento secreto, iniciático, do âmbito
dos eleitos: os descendentes de
Set, o terceiro filho de Adão, que detêm o constato com o Espírito.
Distinguem-se dos psíquicos ou crentes, que podem ter acesso à gnose através do aprendizado e
disciplina, ou seja, de uma iniciação, e dos somáticos ou hílicos,
alheios à dimensão espiritual. Possivelmente, a vertente esotérica,
secreta, do gnosticismo, influenciada pelo cristianismo oriental dos
seguidores dos evangelhos atribuídos a Tomé, acentuou-se à medida que
foi sendo pressionado e combatido pelo cristianismo ortodoxo, transformado
em religião oficial e imperial no século IV d. C. Pode-se, por isso, associar gnosticismo à inquietação
intelectual, ao inconformismo e insatisfação diante do mundo, e à
conseqüente vontade de superá-lo ou transcendê-lo. Sob este aspecto,
William Blake representa uma reaparição do gnosticismo na poesia,
conforme observado por Pagels, Bloom, Hoeller, e outros estudiosos. Um
exemplo seriam as passagens de The
Everlasting Gospel, com sua exaltação da experiência individual
(traduzo de The poems of William Blake, Oxford University Press, 1960): A
Visão do Cristo que tu vês […] Ambos
lemos a Bíblia noite e dia, Daí – desse ímpeto rebelde no gnosticismo – a importância
que lhe é atribuída, entre outros, por André Breton. No ensaio Flagrant
délit (em La clé des champs, Le livre de Poche, 1979) o
surrealista, a propósito da descoberta dos papiros gnósticos de Nag
Hammadi, textos em copta encontrados no Egito a partir de 1945,
apresenta-se como continuador de uma tradição cuja origem estaria no
gnosticismo: Sabe-se, com efeito, que os gnósticos estão na origem da
tradição esotérica que consta como tendo sido transmitida até nós, não
sem se reduzir e degradar parcialmente ao correr dos séculos. (Os Templários
teriam recebido seus preceitos na Ásia, na época das primeiras cruzadas,
de um resto de maniqueus que lá encontraram). Ora, é notável que, sem
haverem de modo algum combinado isso, todos os críticos verdadeiramente
qualificados de nosso tempo foram levados a estabelecer que os poetas cuja
influência se mostra hoje a mais vivaz, cuja ação sobre a sensibilidade
moderna mais se faz sentir (Hugo, Nerval, Baudelaire, Rimbaud, Lautréamont,
Mallarmé, Jarry), foram mais ou menos marcados por essa tradição. Não,
é certo, que se deva tê-los por “iniciados” no sentido pleno do
termo, mas os uns e os outros pelo menos foram submetidos fortemente a sua
atração e nunca deixaram de testemunhar-lhe a maior deferência. Algo semelhante é observado por
Susan Sontag no prefácio para a edição norte-americana de Artaud (Antonin Artaud, Selected Writings,
Farrar, Strauss and Giroux, 1976, publicado no Brasil em Sob o signo de Saturno, L&PM, 1986): Artaud
perambulou no labirinto de um tipo específico de sensibilidade religiosa,
a gnóstica. (centrais ao mitraísmo, ao maniqueísmo, ao zoroastrismo, ao
budismo tântrico, mas empurradas para as margens heréticas do judaísmo,
do cristianismo e do islamismo, as perenes temáticas gnósticas aparecem
nas diferentes religiões com diferentes terminologias, mas com certos traços
comuns). […]
O pensamento de Artaud reproduz a maioria dos temas gnósticos. […] Como
os alquimistas, obcecados com o problema da matéria nos termos
classicamente gnósticos, procuraram métodos para transformar uma espécie
de matéria em outra (mais elevada e espiritualizada), Artaud procurou
criar uma arena alquímica que operasse na carne tanto quanto no espírito.’ Alexandrian, em História da Filosofia Oculta
(Edições 70, Lisboa, s/d), atribui-lhe o mesmo alcance: O espírito
da Gnose subsistiu até nossos dias, afirma. E acrescenta: Todos os
grandes filósofos ocultos foram, de uma forma ou de outra, continuadores
dos gnósticos, sem que necessariamente lhes utilizassem o vocabulário e
os temas, e sem se preocuparem permanentemente com Pleroma, com os Eons ou
com o Demiurgo. Pelas mesmas razões, Alexandre Roob, em Alquimia &
Misticismo – O Museu Hermético
(Taschen, Lisboa, 1997) também situa o gnosticismo na origem da
tradição mágica e mística ocidental, da qual faz parte a alquimia.
Observa que procedimentos mágicos são uma tentativa de superar o abismo
entre o pleroma, a plenitude espiritual do mundo de luz divino,
e o kenoma, o vazio material do mundo das manifestações
terrenas. […] As repercussões da consciência gnóstica sobre a
vida intelectual européia são de tal modo vastas e onipresentes que se
torna difícil avaliar sua dimensão: o homem do corpus
hermeticus, dotado de poderes criadores divinos, funde-se com a imagem
do homem renascentista, que começa a libertar-se das cadeias do cosmos
medieval, estratificado, para se deslocar na direção do centro do
universo. O cosmo gnóstico foi povoado por um sem-número de
entidades e categorias cujos nomes parecem ser ressonâncias de línguas
arcaicas da Mesopotâmia, do grego e do hebraico, em um sincretismo que
suscitou comentários de Georges Bataille, em Le
bas matérialisme et la gnose (no Volume I de suas Oeuvres Completes, ed. Gallimard), acentuando o que essa doutrina
tem de perturbador, ou seja, subversivo: A
gnose, com efeito, antes e depois da predicação cristã, e de um modo
quase bestial, quaisquer que tenham sido seus desenvolvimentos metafísicos,
introduziu na ideologia greco-romana os fermentos os mais impuros;
emprestava de toda parte à tradição egípcia, ao dualismo persa, à
heterodoxia judaico-oriental, os elementos os menos conformes à ordem
estabelecida; acrescentava-lhes seus próprios sonhos, exprimindo com
clareza algumas obsessões monstruosas; não se repugnava, na prática
religiosa, com as formas mais baixas (por isso, inquietantes) da magia e
da astrologia gregas ou assírio-caldaicas; e ao mesmo tempo utilizava,
porém talvez mais exatamente comprometia, a nascente teologia cristã e a
metafísica helenística. O autor de A
Literatura e o Mal acentuou, ainda, a separação entre gnosticismo,
cristianismo, e o monismo da filosofia helenística. Insistiu que
gnosticismo é uma doutrina autônoma, e não uma heresia ou derivação
do cristianismo, como pretendem muitos de seus estudiosos: […] o neoplatonismo
e o cristianismo não devem ser procurados na origem da gnose, cujo
fundamento é mesmo o dualismo zoroastriano. Dualismo por vezes
desfigurado, sem dúvida na seqüência de influências cristãs ou filosóficas,
mas dualismo profundo e, ao menos em seu desenvolvimento específico, não
emasculado por uma adaptação ás necessidades sociais, como no caso da
religião iraniana. […] Praticamente,
é possível dar como um leitmotiv da gnose a concepção da matéria como
um princípio ativo tendo sua existência eterna autônoma, que é aquela
das trevas (que não seriam a ausência de luz, porém os arcontes
monstruosos revelados por essa ausência), aquela do mal (que não seria a
ausência do bem, mas uma ação criadora). Essa concepção era
perfeitamente incompatível com o princípio mesmo do espírito helênico,
profundamente monista e cuja tendência dominante dava a matéria e o mal
como degradações de princípios superiores. A conexão Bataille – gnosticismo é comentada por Eliane
Robert Moraes, em O Corpo Impossível
(O corpo impossível: a decomposição
da figura humana, de Lautréamont a Bataille, Iluminuras – FAPESP,
2002), a propósito dos abraxas,
do registro iconográfico do gnosticismo feito de imagens que sobreviveram
a seus textos, resistindo à destruição: As
concepções gnósticas do início da era cristã propõem uma subversão
dos ideais da antigüidade greco-romana ao introduzir em seu discurso
“os fermentos mais impuros”, substituindo as formas elevadas pelas
figuras mais baixas. Por recusarem a linearidade e a homogeneidade próprias
das representações acadêmicas, as imagens polimorfas da gnose provocam
intensas “desordens filosóficas”, o que por certo está na origem de
sua desqualificação enquanto “pensamento decadente”. Ora, o
leitmotiv do gnosticismo seria justamente “a concepção da matéria
como um princípio tendo existência eterna autônoma”: ao contrário da
filosofia tradicional, que lhe atribui um papel passivo, a gnose confere
à matéria um estatuto novo, até então reservado à idéia. Portanto, nada de extravagante em enxergar gnosticismo em
Hilda Hilst. Equivale a situá-la em uma tradição ou linhagem de poetas.
E de magos e visionários como, na Renascença, Giordano Bruno ou John
Dee, com seus projetos de um saber amplo, unificando ciência e magia. A valorização ou sacralização gnóstica do conhecimento
é evidente, por exemplo, neste belo poema, o VI
da série Poemas aos homens do nosso
tempo, publicado em Júbilo, memória,
noviciado da paixão (Editora Globo, 2001), que transcrevo na íntegra: Tudo
vive em mim. Tudo se entranha
É possível não apenas
identificar uma expressão gnóstica na escrita de Hilda Hilst, mas
também uma atitude gnóstica, evidente em sua vida: notoriamente
agitada antes de recolher-se à Casa do Sol nas imediações de Campinas,
em 1963, manifesta a vontade de conhecer e experimentar; de conhecer pela
experiência. Assim também seu interesse não apenas por filosofia, por
religiões (em Estar sendo, ter sido, relata como adquirira o Baghavad
Ghita ainda adolescente de um livreiro perplexo), mas pela ciência.
Daí sua amizade e diálogo com físicos como ninguém menos que Mário
Schemberg e César Lattes, comentada no já citado Cadernos do IMS,
por Carlos Vogt. E suas próprias experiências no campo de uma parafísica
(a parafísica está para a física assim como a parapsicologia está para
a psicologia), com as gravações de “vozes dos mortos”, que tiveram
tanta repercussão (também comentadas no Cadernos do IMS). E a
amplidão de sua criação, abrangendo poesia, prosa, teatro e artes
visuais, pois criar é conhecer, através da exploração do novo. Retornemos ao escondido nas
gentes, e revelado pelo poeta, conforme o poema transcrito acima. Em
passagens de Hilda, especialmente em Amavisse, há uma luz
interior, que corresponde a uma dimensão oculta da pessoa: o poeta
preexiste, entre a luz e o sem-nome. Algo foi esquecido, desaprendido:
Ai, Luz que permanece no meu corpo e cara:/ Como foi que desaprendi de
ser humana?. Há um avesso, um oco fulgente num todo
escancarado, que é da altura de dentro. Só pode ser descrito Na
minha língua esquecida, e captado através da iluminação e
arrebatamento que equivalem à loucura: E do ouro que sai/ Da garganta
dos loucos, o que há de ser? O encontro com a luz é o
resultado de uma viagem, em um luminoso barco subterrâneo: As barcas
afundadas. Cintilantes/ sob o rio. E é assim o poema. Cintilante/ e
obscura barca ardendo sob as águas. Esses dois temas em Hilda Hilst, da luz interior revelada e
da viagem rumo à luz, são topoi
do gnosticismo. Nas escrituras gnósticas, há duas modalidades de
relatos. Um deles, o da Queda, acidente cósmico e teológico que se
confunde com a criação e com a absorção da luz pelas trevas. Outro, de
uma ascensão, da salvação ou reintegração, sempre individual. Ambas,
alegoricamente, são viagens. Em alguns textos, como no Hino
da Pérola, a viagem é de ida e volta, representando a queda no mundo
e a ascensão ao Pleroma. Em outros, como no Poimandres
do Corpus Hermético, é apenas
ascendente. É a tópica gnóstica das viagens: o batismo, a julgar pela
leitura do Zôstrianos, é uma
viagem através de águas celestiais ou cósmicas, a
bordo de uma grande nuvem luminosa, rumo à gnose. (as escrituras gnósticas
aqui mencionadas estão na compilação de Layton, já citada) Mas essa tópica reproduz algo muito arcaico. Os xamãs,
conforme examinado por Eliade e tantos outros, também viajavam: a aquisição
de seus poderes era precedida pela ida e volta ao reino subterrâneo,
ultrapassando a barreira da morte – o mesmo tipo de viagem relatada no
mito de Orfeu, patrono dos poetas e dos mistérios iniciáticos gregos,
embora em outro contexto, aquele do resgate da mulher amada. Ou não? Ou,
alegoricamente, reencontrar Eurídice não equivale a um encontro de
almas, a um reencontro com a luz? Assim, vê-se que viagens iniciáticas e salvadoras estão
ligadas a um mito, não apenas gnóstico, porém arcaico: o das duas
almas, ou da centelha de luz. Nele, um grão da luz, simbolizando o princípio
criador e o conhecimento, permaneceria no ser humano. Coexistiria com uma
alma adventícia, falsa, introduzida pelo Demiurgo. O encontro de luzes,
da nossa alma verdadeira com a instância primeira, equivale à gnose. E o
resultado da aquisição ou conquista da gnose é a libertação da fatalidade
astral, da regência do destino e das características humanas pela abóbada
celestial, possibilitando o contato com o Espírito, a centelha divina,
distinta da alma adventícia. O mito das duas almas viria a produzir frutos literários.
É o tema das duplas identidades e divisões do Eu: o duplo romântico, o Doppelgänger,
e seus derivados, como o William Wilson de Poe; e, com mais propriedade,
as proclamações do Eu sou um outro,
de Gérard de Nerval e do Eu é um
outro da Carta do Vidente de
Rimbaud. Há, em Lautréamont, uma negação dessa segunda identidade, ou
recusa a admitir um “eu” imposto por Deus, aparentando contradizer ou
negar a proclamação de Rimbaud, porém mais coerente ainda com o
pensamento gnóstico. Esse mito parece, se não universal, pelo menos ser
amplamente difundido. Está em outros relatos sobre a origem da
humanidade, como aquele do confronto dos titãs com Dionísio. Abel Jeannière
(em Lire Platon, Aubier, Paris, 1990) ao tratar dos mistérios órficos
e dionisíacos na origem do pitagorismo, precedendo a filosofia platônica,
comenta a destruição de Dionísio – equivalente a Zagreus, sua versão
iraniana, ou Hades, deus dos mortos –, devorado pelos Titãs, os
primeiros habitantes da Terra: Zagreus-Dionísio
imolado ressuscita enquanto Dionísio vivo, esse “estranho
estrangeiro” à vontade em todo lugar sobre a terra. Quanto aos homens,
eles nascem das cinzas dos Titãs fulminados. […] Misturadas à terra, as cinzas dos Titãs dão
nascimento aos homens. Ora, os Titãs acabavam de devorar a carne de
Zagreus-Dionísio; uma parcela do divino está, portanto, presente em cada
homem. Nenhum homem nasce sobre a terra sem que, nele, uma faísca divina
não aspire a juntar-se à divindade, e essa faísca divina que nos
constitui no mais profundo de nós, devemo-la ao martírio de Zagreus. Em Presságios do Milênio:
Anjos, Sonhos, Imortalidade (Objetiva, 1996), Harold Bloom faz a mesma
prospecção do mito gnóstico da centelha de luz ou alma verdadeira.
Citando E. R. Dodds em The Greeks
and the Irrational, trata da profecia extática na religião de Apolo
(anterior na Grécia ao culto a Dionísio e ao orfismo), associando-a a um
xamanismo grego,
Em matéria de dualismo gnóstico,
haveria mais a ser observado em Hilda Hilst. Por exemplo, sua persona,
protagonista de Estar sendo, ter sido, de A obscena Senha D,
de Amavisse, ora ser Hilé, ora Samsara. As duas expressões se equivalem:
em grego ou em sânscrito, designam o mundo degradado, este mundo, o kenoma,
antagônico com relação ao Pleroma, a perfeição. Isso não significa que ela
fosse adepta, seguidora de alguma doutrina, gnóstica ou outra das muitas
a que pode ser associada, especialmente hinduísmo e budismo. Poetas
redescobrem ou reinventam doutrinas e interpretações do cosmo, conforme
constatou Mallarmé, ao dizer, a propósito de suas visões do Nada e do
Absoluto, que, sem estudá-lo, havia recriado o budismo. Também Breton, em seu comentário
sobre gnosticismo na poesia romântica e moderna (no já citado Flagrant
délit), supôs que houvesse sincronia entre os antigos gnósticos e
os poetas modernos: Será preciso admitir que os poetas sorvem, sem o
saber, em um fundo comum a todos os homens, singular pântano cheio de
vida onde fermentam e se recompõem sem parar os destroços e os restos
das cosmogonias antigas, sem que os progressos da ciência lhes provoquem
uma mudança apreciável? Diante da reaparição de traços
de uma doutrina arcaica, Breton sugeriu, com belas metáforas, … um
poder de absorção de ordem osmótica e para-sonambúlica dessas concepções
tidas, ao olhar racional, por aberrantes. […] Nessa floresta
virgem do espírito, que margeia por todos os lados a região onde o homem
conseguiu erguer seus marcos indicadores, continuam a rondar os animais e
os monstros, apenas menos inquietantes do que em seu papel apocalíptico.
São os mesmos animais e monstros que circulam pelas páginas de Hilda
Hilst, que criou um bestiário pessoal e inconfundível (e o realizou, com
sua matilha de cães na Casa do Sol). Também Jorge Luis Borges observou essa sincronia, em Novas
Inquirições: Há, na história da filosofia, doutrinas, provavelmente falsas, que
exerceram um obscuro encanto sobre a imaginação dos homens. A doutrina
platônica e pitagórica do trânsito da alma por vários corpos, a
doutrina gnóstica segundo a qual o mundo é obra de um deus hostil e
rudimentar. Repare-se na finura de estilo de Borges, ao falar em
doutrinas provavelmente falsas
– ou seja, que poderiam ser verdadeiras. Poetas não são ideólogos e doutrinadores, repito. Assim
como é possível mostrar na poesia de Hilda Hilst as referências ao
Demiurgo e o dualismo gnóstico, também se pode recortar trechos que
demonstrariam o contrário: um monismo, a síntese, não pela anulação
do mundo e transcendência através do conhecimento, como quer o
gnosticismo, porém pela via da realização amorosa. Inúmeros
comentaristas (dos mais recentes, José Carlos A. Brito, em Eros
e psique no encontro de si mesmo na poesia de Hilda Hilst,
em Agulha 45) já se detiveram na Hilda lírica e apaixonada, que, em
um misticismo do corpo, vê a união amorosa, e não o ascetismo, como via
para a transcendência. Entre inúmeros outros lugares da sua obra, isso
transparece nos versos que encerram o aqui já citado Cantares. Poeira,
cinzas […] Amorosa
de ti O modo como lirismo e obscenidade se alternam na obra de
Hilda Hilst – a obscenidade, de modo mais evidente na prosa, inclusive a
que ela declarou ser “pornográfica”, e o elevado lirismo em boa parte
de sua poesia – corresponde a dois movimentos, não antagônicos, porém
complementares, sinérgicos e simultâneos: foi sublime em Cantares,
e ao mesmo tempo escatológica em A
obscena Senhora D, ambos do início da década de 1980. Pode-se ligá-la
a um ramo do gnosticismo, o famoso gnosticismo dissoluto, que tem semelhanças
com o tantrismo oriental. É a doutrina segundo a qual, para superar a
roda do Carma, a sucessão de reencarnações, é preciso viver plenamente
a vida, em todos os seus aspectos e possibilidades. Para esclarecer sobre
gnosticismo dissoluto, esta passagem de Jules Monnerot, em La poésie
moderne et le sacré (Gallimard,
1945): Essas
confrarias [dos antigos gnósticos] levam tão longe quanto possível a transgressão dos mandamentos cristãos
prescrevendo castidade e continência. Chegariam com freqüência até a
transformar as transgressões em outras tantas obrigações rituais. Que o
misticismo não exclui por natureza a sensualidade, os mais antigos mistérios
o testemunharam irrecusavelmente, não sendo de espantar que uma época na
qual floresceu o materialismo mágico lhes demande ensinamentos, nem que
uma especulação filosófica desembaraçada de todo contrapeso celeste se
alie de maneira tão humana ao deboche ritualizado. Portanto, o encratismo, ascetismo, abstenção total, e a
licenciosidade seriam faces da mesma moeda. Ambos, expressões da vontade
de tomar o contrapé da criação, como
diz Monnerot, contrariando o Demiurgo e suas leis. Sem dúvida, Hilda Hilst fez isso. Passagens de sua obra
– em Amavisse, a declaração
de que o poeta habita nas ardências,
e mais, o poeta habita/ O campo de
estalagens da loucura, e sua crítica à repressão e ao ascetismo, Ó senhora, porque mora na morte/ aquele que procura Deus na austeridade
– permitem associá-la, como já o fiz em Amavisse,
de Hilda Hilst: pacto com o hermético,
à famosa máxima de William Blake, em O
Casamento do Céu e do Inferno: O
caminho do excesso leva ao palácio da sabedoria. Ou a uma projeção
direta da recomendação do desregramento
dos sentidos de Rimbaud. Mas pode-se, também, observar ambivalência nessa dualidade lirismo-obscenidade. Insisto: poetas não
precisam ser ideólogos ortodoxos. Sob a regência do pensamento analógico,
para eles, em lugar do isto ou
aquilo, existe o isto e aquilo. Ambivalência já foi vista como qualidade importante em
outros poetas – por exemplo, em Baudelaire (por Auerbach e outros de
seus estudiosos). É possível ler Baudelaire de ponta a ponta, desde os
primeiros poemas de As Flores do Mal,
da década de 1840, passando por A
Tampa e outros textos blasfematórios, até seus escritos finais, como
a crítica a Os Miseráveis,
como poeta e pensador gnóstico. Pode-se interpretar o célebre A
Carniça e outros poemas “realistas” como retrato ou metáfora do
mundo degradado, sob a tutela dos Arcontes e do Demiurgo. E, também, as
passagens em que, desde Ao Leitor,
de As Flores do Mal, é dito que
inferno e mundo são equivalentes, e o verdadeiro inferno é este mundo em
que vivemos, algo reiterado no Crepúsculo
Vespertino de O Spleen de Paris
– Pequenos poemas em prosa: … eu
posso, quando o vento sopra lá de cima, acalentar o meu atônito
pensamento com esta imitação das harmonias do Inferno. (do já
citado Baudelaire - Poesia e Prosa).
E, especialmente, em uma passagem como esta, dos Escritos
Íntimos: Em que consiste a queda? Se é a unidade feita dualidade, então foi Deus quem caiu. Ou, posto em outros termos, não será a criação a própria
queda de Deus? A polaridade aguda, a intensa vivência de antinomias,
dotadas de peso ontológico, impulsionaram sua criatividade e estão na
base de suas idéias e intuições. Ivan Junqueira, em seu prefácio para As
Flores do Mal (na edição citada de Baudelaire
– Poesia e Prosa), comenta a religião
particular de Baudelaire, estabelecendo
um estranho gnosticismo neopagão e maniqueísta em que Lúcifer ocupa
todos os altares. No entanto, contrasta com seu maniqueísmo a idéia das
correspondências, de fundo místico e de um hermetismo pronunciadamente
monista, que inaugurou uma poética. No soneto Correspondências,
A natureza é um templo no qual
se ouvem ecos de uma harmonia,
de uma vertiginosa e lúgubre
unidade. São as mesmas correspondências presentes na poesia de
Hilda, em trechos como o aqui citado, de Amavisse,
em que ela quis
ouvir o vermelho do bronze; ou
em deitei-me como quem sabe o Tempo
e o vermelho:/ Brevidade de um passo no passeio, e no restante de sua
riquíssima imagética. Principalmente – e assim como
em Hilda Hilst – o gnosticismo de Baudelaire coexiste com o esteticismo,
o culto ao belo, e o lirismo da exaltação do corpo feminino e
do mundo, como A uma Dama Crioula,
Perfume Exótico e A Bela Nau; ou seu correlato entre os poemas em prosa do Spleen
de Paris, o Convite à Viagem. O
Baudelaire lírico e apaixonado corresponde, portanto, a uma das dimensões
de sua obra múltipla e complexa; em outra, se expressa o pessimista, o crítico
radical, através de blasfêmias de fundo gnóstico. Até onde poderiam ir esses paralelos, aproximando Hilda
Hilst de autores tão distintos entre si sob outros aspectos quanto Blake,
Baudelaire, Breton, apresentando o pensamento gnóstico como ponte, elo ou
fio condutor? Adverti, ao longo deste ensaio, quanto ao risco do
reducionismo. Mas, através de doutrinas herméticas, arcaicas, esotéricas,
pode-se enriquecer os estudos comparados e, por extensão, a crítica e
interpretação de obras literárias. Esta parece ser a opinião, a meu
ver ousada, até revolucionária, de Harold Bloom. Em Presságios
do Milênio, não apenas examina gnose de um modo erudito, mas
declara-se gnóstico. Independentemente da aceitação de sua teoria da
influência, ou do modo como tentou configurar um cânone, ele alça a
discussão da gnose e gnosticismo em literatura a um novo patamar. Insiste
em seu caráter universal (nisso coincidindo com as idéias de sensibilidade
religiosa de Sontag e atitude
religiosa de Doresse, já mencionadas), associando-o ao xamanismo
arcaico: Um
eu mais velho e que é a melhor parte de nós, um eu divino e mágico:
essa crença xamanista, que também chamamos de órfica, me parece a
origem de todo gnosticismo – judaico, cristão ou islâmico – do
gnosticismo secular, alexandrino, chamado Corpus Hermeticus, que se tornou
a base de Bruno e outros mistagogos do Renascimento italiano. O xamanismo
é universal, e isso talvez explique o curioso universalismo do que os
crentes normativos de todas as eras chamam de “heresia gnóstica”. (em Presságios do Milênio: Anjos, Sonhos, Imortalidade) Em Poesia e Repressão,
Bloom vai mais longe. Comenta os poetas, muitos dos quais foram implicitamente gnósticos, embora
explicitamente mais misteriosos ainda, e afirma que tanto gnosticismo
quanto Cabala podem ser instrumentos, mais efetivos que modelos e
paradigmas correntes na teoria literária, de interpretação.
Referindo-se a um dos ramos do gnosticismo, a gnose de Valentino, diz que:
A doutrina valentiniana da criação
presta-se ao meu propósito revisionário, que consiste em adotar um
modelo interpretativo mais próximo da postura e da linguagem da poesia
“moderna” ou pós-iluminista do que foram os modelos filosoficamente
orientados. (em Poesia e Repressão
– O Revisionismo de Blake a Stevens, Imago, 1994, assim como a citação
a seguir) Ao tratar da Cabala, também desafia paradigmas e teorias
literárias: Toda leitura é tradução,
e todas as tentativas de comunicar uma leitura parecem provocar uma redução,
talvez inevitável. A utilização adequada de qualquer paradigma crítico
deveria diminuir os perigos do reducionismo; entretanto, quase todos os
paradigmas são, em si mesmos, redutivos. A teologia negativa, mesmo
quando beira a teosofia, parece-me a “disciplina” apropriada para as
incursões dos críticos literários revisionários na sua incessante
busca por outras metáforas para o ato de ler, bem mais do que a lingüística
estruturalista ou o raciocínio por negação da filosofia continental. |
Claudio Willer (Brasil, 1940) é um dos editores da Agulha. Contato: cjwiller@uol.com.br. Página ilustrada com obras do artista Vicente do Rego Monteiro (Brasil). |
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