Alberto da Costa e Silva

O Café na Copa
 
 
            Derramo o café no pires, lentamente,
e assim o bebo.

            Os bicos e as asas dos pássaros,
este azul que se queima na ponta da plumagem,
tudo como um domingo na gaiola calada,

e o pôr o alpiste na pequena cumbuca,
e a água,
que nos molha as mãos e pinga no soalho,

são parte do enredo de meus dias,
um dédalo num rio, sem trilhas e pegadas,
preciso como o amor e a música.

            Na calma de uma cesta de ovos,
esta manhã me lava o rosto,
me procura,

para dar-me um espaço sem mistério,
para explicar-me o pranto,
para fazer-me aceitar a morte, o tempo
e seus adeuses,

para diante de mim abrir as flores
de bananeiras e esventrar,
no chão, as jacas.
 

            Sei que me afasto
da simplicidade da toalha, do balde e do sapato,

das coisas a que me aconchego,
se as penso 
como distância e saudade,

se não vejo 
a mão que limpa a mesa 
e passa o pano
sobre piso e azulejos,

não como um simulacro de aceitação e tristeza,
mas como o que herdei do mundo,
a mão que limpa a mesa, a mesa e o pano,
o que é alegria e sofrimento,
iguais em tantos gestos,
entre
a luminosa indiferença
na praia e nos jardins.
 

            Passo-te a xícara.
            Não te falo
do que é invisível em mim,
do que me canta.

Sei que alguém, de longe, se debruça
sobre mim
e me desenha no rosto
cada ruga:

— Frágil
é o que nos dá a beleza,
mas não cessa o que fomos e vivemos.
Somos deuses no tempo
e no escuro
da noite, o muro branco
e as estrelas.

 

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Página editada por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  30  de  Agosto  de  1998