Alberto da Costa e Silva

As Linhas da Mão
 
 
                                    1

Deste canto de treva, esperas, surdo, 
enquanto o céu corrói teu corpo escasso.
E sentes de ti mesmo o ofego gasto
pelo escoar do dia, o jogo amargo
de voltar das manhãs cheio de escuro.

Deste lado solar desprezas, mudo,
o que sabes virá porque marcado
na morte que vais sendo, o sonho alçado
ao espaço que passa, este amor breve,
pois é feito de tempo e o tempo cede. 

Eis tuas mãos. As suas linhas, cego,
o solitário sol, o rio vazio,
o saibro sob os pés, o choro inútil
e tudo o que feriste nos descrevem,
num rogo de beleza, sujo e puro.

Do centro crepuscular, dali tens tudo.
 
 

2

Vinha a tristeza.
Como a velha, ao mormaço, lenta, vinha,
a carregar o feixe de gravetos.
Como o velho, o lenço sobre o rosto,
a cobrir o cancro do nariz.
Como usados sapatos. E os cavalos, 
na manjedoura, a sacudir as moscas.
Como a passagem da sombra sobre a relva,
o epitáfio do verde. Como o instante
em que a tristeza
vem.

Tua, a espera que flui. Longe de ti,
o céu inseparável da viagem.
E aqui, o estar cortado, 
o deixar escorrer do corpo adeuses.
            (No menino, ao portão,
            as sombras ardem
            de sol e enxaqueca.)

As árvores floriam.As avencas 
insinuavam a morte.
                                             A tristeza
vinha de ti, da face que, estrangeira,
trazes no rosto, tensa e adulta, alheia
ao que fugia
para trás, para a ausência, para os campos
em que sonhavas o belo acompanhar,
na madrugada, os bois ao bebedouro.
 

Soubesse ser, assim, a espera
do que podia ser a vida, a trégua
com a impaciência do céu, um lento arrasto
das redes sobre a praia  — e não terias 
da mesma forma senão os peixes mortos,
o sentimento de estar só nas veias?
Mas, talvez, de súbito, viesse
não a tristeza como a velha, lenta,
a carregar o feixe de gravetos, 
mas o acender, na tarde, dos espaços,
como se o mar chegasse em ondas altas
e te banhasse a carne do mais íntimo
do negrume do assombro...            
            Precisavas de mim,
            que te sonhando,
            menino pouco, só, 
de dor puído, 
            empurro o tempo
            para junto de ti.
            Pois necessito
            de ti e do teu sono.

            O sono limpa.
 

                        3
 

Mas fui feliz.
Puseram a mão nesta mão.
Não me apagaram o choro da orfandade,
mas fui feliz.

Nada pedi
— o som da bica ouço,
o mesmo que irá comigo  à morte
e esteve sempre no meu dia antigo,
e sabe o que eu queria —
mas fui feliz.

Fui pranto de outros olhos.
Fui feliz.

Senti o afago
entre o peito e a pele da camisa.
Fui feliz.
 
 

                          
 
 

4
 

E, no entanto, lá dentro, falam baixo 
os dois que me sonharam e me sofreram.
Da humildade do amor pouco tiveram, 
o seco pão, os céus contra os seus corpos.

As mãos de minha mãe sobre a tristeza
a se aquecerem sempre. O pai, sozinho.
Sobre nós, a ramagem do degredo. 

(Vou à janela, ler este papel
                        e a luz o toma como sobre a relva
                        resvala a madrugada.
                        As sombras de palavras  nele postas
                        correm de mim, sou eu 
                        de volta à casa.
                        Assim, como se os dias nos marcassem
                        os disfarces do corpo
                        com o que em nós não se esgota
                        na passagem,
                        a mão parada quase sobre a anca
                        do burro do aguadeiro,
                        a mão parada quase sobre o cinza
                        dos cabelos do velho,
                        a mão parada quase sobre as frutas
                        espalhadas na mesa,
                        assim os tenho, 
                        entre o jardim e o quintal,
                        rosais e mamoeiros,
                        os dois tão perto
                        do adeus e do eterno.)

Ao menino que fui tudo foi pago,
no infinito que nele dissolveram,
mas, sendo a vida avara, de meus deuses
a roupagem despiram, que me deram.

O círculo do mundo passa em mim,
mas o centro de dor e treva é deles.

Nos confins do escuro, sou os dois.

 

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Página editada por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  28  de  Agosto  de  1998