Alberto da Costa e Silva

Um Sobrado, em Viçosa
 
Rente à terra, o meu céu, 
qual rês ajoelhada, 
menino a vigiar, de bruços, a arapuca 
e as aves que alçam vôo das crinas dos cavalos, 
mão que toca outra mão, 
ou muro esfarinhado 
que desce com o calangro e onde o sol 
faz abrir a plumagem. 

            (Fui menino demais e sofri como os outros, 
            os que levam, descalços, seus burricos com água, 
            pouca esperança, farinha, rapadura e a tarde, 
            com tudo o que volta 
            — os bezerros, 
            os focinhos molhados dos bois 
            e os lacrimosos carneiros.) 
             
O meu azul não se despenca no alto: 
é feito de ramagens. 
Foi sempre a sombra, no ar, desta chapada 
vista de longe, no longe das boiadas, 
e onde colho anualmente o solo, 
para gastar de mim o meu branco excessivo 
—  cabelos, barbas, terno 
de linho ou caroá e este sorriso 
que entrançou as rugas no menino, 
pois foi-me a vida 
sempre a carne no amor. 

Nos meus olhos, o feno de outros olhos 
— do meu avô, já quase centenário, 
a vacilar no arnês, a olhar os rebanhos 
e aquele ano, em Camocim: canaviais 
brancos, qual lembranças de moinhos, 
casas à beira-mar, leves, de onde  
a brisa poda o sol. Assim, na sombra, 
em que ela esconde a carne noiva e alma, 
a rede lava o calor, no embalo das varandas: 
gaiola que contém jardins (são aves), 
cesto que deixasse ver, além das vergas, 
braçadas de cravos, o poente das mangas,  
o jenipapo, terra  
à espera que a plantem. 

            (Ainda sei chorar pelas éguas sem parto 
            e volto, pelas tardes, de lavar os cavalos, 
            vejo a carne estrelada dos avós, em seu claro 
            exílio da linguagem, as finas lãs do gado 
            e a pênsil vacaria, onde o clarão dos pássaros 
— chamado madrugada — 
            me acolhe em seus joelhos.) 
  

Naquele ano, em Camocim. Junto à areia molhada, 
os meninos mariscam. 
Ela salta na praia, roseirais nos joelhos,  
sobe a serrania e, ao descer do cavalo, 
inunda, além do verde da horta e das jaqueiras, 
a casa, 
            o sobradão, 
com o forno, a tina e a bulhenta capoeira, 
onde eu a vi, velhinha, 
enluarada ao sol,  
escama e vaga, 
limpa e rara,  
como se murmurasse: Vê, não é 
a morte alegre? 

Abre o meu avô a grande arca, 
vinda também de Rouen, onde a família 
caça, sustenta a mão rendada, 
cria espaços e galgos. 
De seu pequeno pedir, desses vinhedos, 
memória e pensamento do que passa, 
os seus olhos, que dormem no desterro, 
refazem a luz de anil, a rede jovem 
com potros sem arreios — ai! pobreza 
da fala na celagem que se fecha. 
  

(O que esperamos ver passar, destas sacadas, 
quase sem desejar a eternidade, 
vai-se fazendo em nós, cada vez mais, 
ausência de suspiro e pranto, ausência 
de noite, no convívio 
do olhar com a claridade. 
O tempo é bom e o céu, apenas isto: 
o que roçamos com o corpo 
e floresce nas aves. 
Que importa o eterno às crinas dos cavalos 
e aos seus cascos?)

 

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Página editada por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  25  de  Agosto  de  1998