Alberto da Costa e Silva

A Bem-Amada
 
Vem, na garupa deste burro em chouto,
um fraco deus, impaludado e sóbrio. 
Cospe no barro,
no entanguido ventre que alimenta
os bezerros e os ermos
de um ralo capim, de alguma espiga. 
Um escasso escarro
com o barro de um peito. 

E, na saliva,
o caroá cardado de um sabor
de murici. O sol sobre as orelhas
do burro, vem num golfo balouçante
de cactos, canários e poeira,
assim, com a boca seca de rezar
e de aboiar, vaqueiro de si mesmo.

Rédeas? De corda. E por espora
o calcanhar que terra e pedras ara,
viúvo de alpercata, mais lanhado
do que o lombo curtido por cangalhas
do burro em chouto, com ilhais sangrados.

Traz nos dois cestos talvez
mangas, cajus ou aves amarradas, 
peles de cabra, leitões, azeite ou raro
galho de roseira. Algum borrego
que criasse, pastor, na própria enxerga ?
Manadas de riachos que abrigasse
de um vento seco, ocre e carregado
de sol como a urina dos cavalos ? 

Na garupa do burro, como se ofendesse
ao seu destino parco
ir sentado na palha.
Entre dias e dias, eriçados, ferozes
qual o olhar de um sanhaço,
traz um pouco nas cestas
do que canta por dentro
da limpa solidão. De um chão sem pastagens
foi-se, carregando o sonho dos regatos,
e os saltos sobre o verde, 
e a caça aos lagartos,
e o que desejaram 
os seus magros joelhos.

Não se morre, se morto
já nos demos por dentro.
            Sobe no jumento
(como ele, no osso
e com moscas no berne),
a corda na cintura como se fora ao pescoço,
a coceira dos bichos-de-pé como a lenta
floração de asas
em galinha cativa.

Repousa em hospedarias,
entre o crupe e o cheiro
de porcos e de podre cestaria de pobres,
impaludado e espremido entre gente sem dentes,
que lava na gamela o tracoma dos olhos.
Mas, deus que se exila, 
leva a brisa ao Egito, 
nos punhos da rede.

Vai olhar, nos jacás, a sua carga
apoiada em samarras.
A fome na garganta,
volta à rede, enquanto, no compasso
dos cascos (vai no burro novamente),
como um cego às avessas, faz recentes
inverno e açude. Galinhas cacarejam
distante, mas agora vão com ele, 
como os dedos morenos que cortavam
os renovos das árvores. 
                                                Com ele,
dela o rosto moreno
sobre o branco tecido, contra o branco
céu que reflete o barro, no poente.
                                                Com ele,
um dia de chuva e um outro dia
embaralhados com os naipes do presente
— as flores sobre a rede; as mãos nas mãos, 
os dentes trincam a cana, os dois na rede;
a solidão, o passeio, as goiabeiras. 
Com ele, o anoitecer: a mão na mão, 
entre flores, como dentro de roseira.
 

Babaçuais!
                                    A água brota, inconsolável.
Segura firme a forquilha das cangalhas.
Vê as ondas de arroz que entrarão pelas portas,
os corpos lavados, a exasperada imagem 
da jovem mãe que recua n'água. Chora
e vê
o gado.

Assim chega a Pastos Bons, Colinas ou Berlengas,
o neto de quilombolas, preados e labregos,
para erguer sua tenda, um mocambo mais magro,
de pau-a-pique e barro. 
Descarrega as cangalhas,
esquecido da morte e dos jardins degolados
que a cercam, ferozes.
Abre os dois balaios
e deles, num retorno, 
retira os dois meninos.

            País meu
            meu pai
            meu par
            meu parco alforje
baixinho canta
            de dias e varandas.
            Os tinguás pousarão
            nos altos mamoeiros,
            e virão vacas lerdas
            e cabras. Há moscas sobre as merdas
que cheiram a capim, a mugido e a enfeites
de bandeirinhas, 
de macaxeira assada, beiju grosso
e beijo

                                                eternamente.

 

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Página editada por  Alisson de Castro,  Jornal de Poesia,  25  de  Agosto  de  1998