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11.08.2001

Adalmir da Cunha Miranda

Machado de Assis e a crítica
 

Em estudo dedicado à evolução da crítica literária no Brasil, o romancista baiano Xavier Marques observou que o exercício da crítica, em torno de 1870, apresentava indícios de novos critérios de valorização estética, em contraposição aos prefácios laudatórios e às diatribes que mediocrizaram, até então, as manifestações da suposta crítica. Aquele romancista anotou que se a crítica “tem de fato alguma ação disciplinadora e corretiva, só em matéria de conhecimento e técnica pode exercê-la plenamente”. Entre poucos, Machado de Assis exerce e representa essa crítica com a visão especialmente voltada para a expressividade estética da obra de arte literária. (1)

 Parece-me já ter sido admitido, com acerto, que não seria incorreto incluir Machado de Assis entre os precursores da crítica de orientação estética no Brasil. A extrema organização crítica e criadora do autor de Dom Casmurro o conduziu à invenção de uma obra romanesca em que se afirma um “homem do seu tempo e do seu país”, com o “sentimento íntimo” que exigia do escritor como condição necessária à nacionalização de uma literatura. Estes predicados conferiam-lhe aptidão e colocavam à sua disposição meios de fabulação de qualidade comprovada, valendo-se da sua própria experiência criadora, para tornar-se o nosso primeiro crítico importante e um lúcido teórico da literatura.

  A falta de ambiência apropriada, em que pudesse fazer válidos e ressonantes os requisitos que definiu em sua ideologia crítica, publicada em 1865, no Diário do Rio de Janeiro, talvez tenha determinado o seu afastamento da crítica. Mas parece-me apropriado apontar algumas características da crítica machadiana, com importância subsistente. E não é impróprio admitir que a elevada categoria estética alcançada pelo romance machadiano é devida, também, ao excepcional equilíbrio que manteve entre crítica e criação. 

  Machado de Assis ofereceu uma contribuição irrecusável para configurar a expressão brasileira da língua portuguesa. Não o fez acidentalmente. Deu vigor às suas atividades criadoras, e nestas engrandeceu aquelas reservas de espírito e entendimento críticos que caracterizam as suas análises literárias. O processo criador, em literatura, já constitui processo crítico. Sendo a palavra o suporte estético da obra de arte literária e, ao mesmo tempo, meio de comunicação coletiva, a sua utilização ou transfiguração, para obter efeitos estéticos, ditados pela vontade de realizar arte, impõem um julgamento prévio e seletivo dos valores lingüísticos. Machado de Assis soube julgar e ordenar o texto, dando-lhe plena expressão estética, com elevado discernimento, para estabelecer a integração desejada entre forma e conteúdo. 

  Além da honestidade intelectual, como pressuposto da atividade crítica, é possível assinalar nas páginas de análise literária escritas por Machado de Assis, objetivando um julgamento crítico, duas diretrizes capitais: a) a consideração dos elementos formais e estruturais da obra de arte literária, como condição fundamental para o julgamento estético; b) a perfeita compreensão da relativa autonomia da obra de arte literária em face das injunções de natureza histórica, social e política. 

  Algumas páginas dos estudos críticos de Machado de Assis confirmam as minhas asserções. Aquelas diretrizes não se apresentam de modo metódico. Mas existem. E devem ser consideradas em seu valor histórico, para consolidar a posição de Machado de Assis como precursor da crítica estética no Brasil. No seu artigo Ideal do Crítico, de 1865, já estão os indícios que corroboram a presença da primeira diretriz que apontei. Escreve Machado: “Outra, entretanto, deve ser a marcha do crítico; longe de resumir em duas linhas, - cujas frases já o tipógrafo as tem feitas, - o julgamento de uma obra, cumpre-lhe meditar profundamente sobre ela, procurar-lhe o sentido íntimo, aplicar-lhe as leis poéticas, ver enfim até que ponto a imaginação e a verdade conferenciaram para aquela produção”. (2).

  E adiante na mesma fonte: “Para realizar tão multiplicadas obrigações, compreendo eu que não basta uma leitura superficial dos autores, nem a simples reprodução das impressões de um momento”. Em outro trecho: “Saber a matéria em que fala, procurar o espírito de um livro, descarná-lo, aprofundá-lo, até encontrar-lhe a alma, indagar constantemente as leis do belo” (...). É também observação de Machado de Assis: “As leis poéticas, (...) seriam as únicas pelas quais se aferisse o merecimento das produções,” (...). São proposições do autor de Quincas Borba, para o correto exercício da crítica literária. (os grifos são meus).

  Nas anotações feitas em seguida mesclar-se-ão os sinais da presença das duas diretrizes apontadas. Examino o estudo de Machado sobre a “Nova Geração” de poetas que, após 1870, fazia o seu movimento literário tentando substituir a geração romântica. O crítico escreve em 1879, na Revista Brasileira, procurando apreender a expressão estética da poesia dos moços. Geração de poetas crentes na sua destinação histórica renovadora da poética brasileira.   Evidentemente o crítico não conseguiu atingir o núcleo estético supostamente renovador dos versos dos moços, opondo-se ao romantismo em processo de debilitação, simplesmente porque o núcleo não existia. Era apenas uma “geração viçosa e galharda, cheia de fervor e convicção”. Era a geração de Fontoura Xavier, Valentim Magalhães, Teófilo Dias, Afonso Celso Junior, Carvalho Junior, Mariano de Oliveira, Lúcio de Mendonça, Francisco de Castro, Ezequiel Freire e outros. Meditem os renovadores de sempre sobre o destino desses renovadores pós-românticos. Era preocupação dessa geração historicamente arquivada “achar uma definição e um título”. Mas as divergências, a contradição e a vagueza não permitiram que Machado de Assis encontrasse a “teoria e o ideal da poesia nova”.
nesse estudo de Machado de Assis há relevante lucidez. Há a demonstração do seu zelo pela obra poética, numa fase em que as aspirações coletivas de renovação política e social se refletiam no espírito e na expressão em versos, dos moços poetas. Estes adotaram a fórmula inúmeras vezes repetida, de marginalizar as instituições literárias dos antecessores. Contestaram o romantismo sem perceber, como observa Machado, “que a extinção de um grande movimento literário não importa a condenação formal e absoluta de tudo o que ele afirmou; alguma coisa entra e fica no pecúlio do espírito humano”.   Havia, naquela geração, uma tendência difusa no sentido de conjugar o ideal poético e o ideal político, fazendo de “ambos um só intuito, a saber, a nova musa terá de cantar o Estado republicano. Não é isto, porém, uma definição, - afirmava Machado -nem implica um corpo de doutrina literária”. Não se tratava de uma geração capaz de insuflar na agonia do romantismo o alento de novos rumos normativos para a arte poética brasileira. 

  Mas, com suas justas aspirações de renovação social e política, não conseguiram construir o poema que pretendiam. Ficaram diminuídos, apagaram-se, afinal, diante dos românticos. Estes, envolvidos por um movimento altamente revolucionário, não só no plano literário, mas também no plano político e social, envolveram as elites culturais brasileiras no seu processo de conscientização nacional, de consolidação da autonomia cultural e da independência política. E incorporaram ao nosso patrimônio literário um acervo poético capaz de resistir ao tempo com o vigor da sua expressão estética.

  Naquela fase de promoções sociais, políticas, literárias, artísticas e espirituais pré-abolicionistas e pré-republicanas é tempestivo observar o comportamento do crítico Machado de Assis em relação aos poetas moços que certamente e de modo geral não sabiam - o impasse permaneceu muito tempo entre as elites intelectuais do País - distinguir, para os efeitos de feitura da obra de arte literária, os seus estímulos estéticos e as suas responsabilidades de cidadãos situados em seu tempo e em sua circunstância.

  Machado de Assis não esteve alheio a essa particularidade. Fazendo considerações em torno de uma proposição de Silvio Romero no sentido de que “a nova intuição literária nada conterá de dogmático, - será um resultado do espírito geral da crítica contemporânea” - o autor de Quincas Borba anota que “esta definição que tem a desvantagem de não ser uma definição estética, traz em si uma idéia compreensível, assaz vasta, flexível, e adaptável a um tempo em que o espírito recua os seus horizontes”. E acrescenta: “Não basta à poesia ser o resultado geral da crítica do tempo; e sem cair no dogmatismo, era justo afirmar alguma coisa mais. Dizer que a poesia há de corresponder ao tempo em que se desenvolve é somente afirmar uma verdade comum a todos os fenômenos artísticos”. 

  Machado de Assis subscreveria a observação de Charles Lalo, ao dizer que em cada homem “as tendências individuais e as tendências sociais são dois conjuntos de forças em presença, ou duas espécies de realidades perpetuamente em ação e em reação mútuas”; e que “uma sociedade reclama e produz uma arte diferente segundo seja ela escravagista, monárquica, aristocrática, burguesa, democrática”. (3). Mas, quando o homem é um artista, afirmo, deve ter consciência aguda desse processo de interação. O contexto social em que ele está inserido espera que seja produzida uma arte fundamentada nesse mesmo contexto e não um arremedo de arte.

  O autor de Memorial de Aires não desejava excluir os poetas da sua república. Confessou-se mais tolerante que Platão. Mas, quando Teixeira Bastos diz que os seus versos cantam o “coruscante vulto da Justiça”, Machado de Assis adverte que “essa aspiração ao reinado da Justiça (...) não pode ser uma doutrina literária; é uma aspiração e nada mais”. E acrescenta lucidamente: “Mas entre uma aspiração social e um conceito estético vai diferença; o que se precisa é uma definição estética”. Admite que a posição do poeta “pode ser também uma cruzada, e não me desagradam as cruzadas em verso”. Mas não se impressiona com as cruzadas em detrimento da arte. 

  Machado de Assis deixa transparecer que entre cruzada em versos e poesia há uma extrema diferença e um conflito inevitável. O crítico que revelava o cuidado pela obra bem acabada, com a convicção de que em poesia “ao período espontâneo e original sucede a fase da convenção e do processo técnico”, não podia aplaudir incondicionalmente aquela nova geração republicana da qual se aproximou com afeição e serenidade.

  Vários outros pontos da crítica machadiana poderiam ser anotados e comentados, para confirmar a presença das diretrizes assinaladas, em seus juízos críticos, e para comprovar a sua intuição dos problemas da crítica literária que viriam a ser debatidos no Brasil. Foi, por exemplo, a versificação “harmoniosa e pura” de Basilio da Gama que determinou a sua preferência por este em relação a Gonzaga. O zelo predominante pelo artesanato literário assegura a Machado de Assis lugar proeminente entre os precursores da crítica de orientação estética no Brasil.

  As lições do crítico Machado de Assis (1839-1908) enraizaram-se na cultura literária brasileira. O romancista e ensaísta Xavier Marques (1861-1942) com a sua teoria do estilo, a Arte de Escrever (1913), com a sua obra A Cultura da Língua Nacional (1933) e com os seus Ensaios I - A Evolução da Crítica Literária no Brasil (1944), institui, sob determinados aspectos, uma expressiva extensão do pensamento crítico de Machado de Assis. Henrique Abílio (1893-1932), Barreto Filho, em sua Introdução a Machado de Assis (1947), Mário de Andrade (1893-1945), defensor e pesquisador dos valores estéticos das obras de arte literária (Aspectos da Literatura Brasileira - 1943 e O Empalhador de Passarinho - 1946), Tristão de Ataíde (Estudos), Eugênio Gomes (1897-1972), sempre atento ao núcleo estético da obra de arte literária, e outros involuntariamente omitidos, deixaram germinar em seu pensamento crítico as sementes lançadas por Machado de Assis, e têm importância fundamental para o estudo da crítica literária no Brasil.

  Mas deve-se, essencialmente, a Afrânio Coutinho (1911-2000), a realização de um conjunto de obras marcantes (sem esquecer as aulas e conferências) para determinar, a partir de 1948, uma transformação radical nos estudos e no exercício da crítica literária no Brasil. Foi cultor de Machado de Assis e divulgou entre alunos, críticos e escritores, as obras de eminentes teóricos da literatura, entre os quais Alonso, Barthes, Fidelino de Figueiredo, Frye, Giraud, Kyser, Picon, Richards, Spitzer, Wellek e Warren, todos localizados com minuciosas e metódicas indicações bibliográficas, em suas obras A Literatura no Brasil e Crítica e Teoria Literária (estão reunidos neste volume os seus livros de 1957, 1968, 1969, 1976 e uma seleção de artigos publicados no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, entre 1948 e 1952).

  A publicação deste artigo neste jornal e nesta ocasião constitui homenagem ao amigo querido, intelectual lúcido e combativo, caráter íntegro e generoso, Afrânio Coutinho, pelo transcurso do primeiro ano desde a sua morte, em 6 de agosto de 2000 no Rio de Janeiro; seu nome e sua obra estão indelevelmente inscritos na história da cultura brasileira.

NOTAS
 

  1. 1. Marques, Xavier. Evolução da Crítica Literária no Brasil, in Ensaios. Rio, Academia de Letras, 1944, p. 27/29.
  2. 2. Assis, Machado de. Crítica Literária. Rio, W. M. Jackson Inc. Ed., 1955. Todas as citações feitas no texto são dos seguintes estudos incluídos neste volume: Ideal do Crítico, Literatura Brasileira: Instinto de Nacionalidade e A Nova Geração, p. 11, 129 e 180. Os grifos são meus, no texto.
  3. 3.Lalo,Charles.Notions d’Esthétique. Paris, Felix Alcan, 1925, p. 74 e 77.

Adalmir da Cunha Miranda é advogado e crítico literário; participante do grupo da revista Caderno da Bahia (1949/50) e fundador da célebre revista Ângulos, publicou Aspectos da Expressão Literária (estética). Colaborador do suplemento Cultura do jornal O Estado de S. Paulo, da capital paulista, cidade onde reside desde 1957.