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				Mário Cesariny e Teixeira de Pascoaes: relatório e fim 
				
				
				António Cândido Franco 
				
				
				
				Depois 
				desta conversa encontrei muitas vezes Mário Cesariny. Logo em 
				Janeiro, 1998, poucos dias depois da nossa conversa na Basílio 
				Teles, dou com ele na livraria da Assírio & Alvim, rua Passos 
				Manuel, Lisboa, na apresentação dum número da Espacio/Espaço 
				Escrito, revista publicada em Badajoz. No fim, estávamos os 
				dois num recanto, sem ninguém por perto. Debandara tudo para a 
				livraria, no rasto do Manuel Hermínio Monteiro e do Ángel Campos 
				Pámpano (foi a primeira vez que o vi). Cesariny olhou-me então 
				como nunca o fizera e como nunca depois o fez. O seu olhar, com 
				as lumeiras acesas na cara, ferozes e incandescentes, 
				trespassou-me até ao fim de mim mesmo. Disse-me estas palavras, 
				que não percebi (e ainda não percebo):  
				
				
				– És mais velho do que pareces.  
				
				
				Mais tarde, muito mais tarde, vi pintura de Cruzeiro Seixas, dos 
				anos quarenta, representando Mário Cesariny, de costas, ao piano 
				[está reproduzida em Prosseguimos Cegos pela Intensidade da 
				Luz (v. “Uma Bibliografia”)]. As cores daquela pintura 
				restituíram-me o cheiro, a cor, a vida do lume que me devassou 
				naquele recanto do rés-do-chão da rua Passos Manuel. Depois 
				desta entalação, só consegui perguntar-lhe, quase tartamudo: 
				
				
				– Como se resolve o problema ibérico? 
				
				
				Ao que ele me respondeu: 
				
				
				– Façamos um acordo. Portugal dá à Espanha o Alentejo e o 
				Algarve e a Espanha dá a Portugal a Galiza. 
				
				
				– É tão simples como isso? 
				
				
				– Mais ainda! Daqui a cem anos o mar há-de chegar a Badajoz. 
				
				
				De seguida encontrei-o em Cáceres, Espanha, na companhia da 
				Henriete, do Perfecto E. Cuadrado, do Hermínio Monteiro e do 
				Antonio Sáez Delgado (que mais tarde, em 2006, haveria de 
				traduzir Teixeira de Pascoaes na língua de Cervantes). Corria o 
				fim do Inverno do ano de 2000. Talvez tenha sido nessa ocasião 
				que ele me confessou que muito devia ao Manuel Hermínio 
				Monteiro, que o fora buscar à rua (a expressão foi dele) e lhe 
				dera um abrigo (uma casa editora). Meses depois, em Junho do 
				mesmo ano, subimos os dois a Amarante na companhia do Manuel 
				Hermínio Monteiro e do Ángel Campos Pámpano, ambos de boa saúde 
				(morreriam ambos pouco depois, o primeiro em 2001 e o segundo em 
				2008), para apresentar um novo número da revista 
				Espacio/Espaço Escrito (nº 17-18; 2000), [1]  que 
				tinha pasta dedicada a Teixeira de Pascoaes (com a colaboração 
				da Elsa Nunes, aluna em Évora, que aí defendeu dissertação de 
				mestrado sobre Teixeira de Pascoaes, sob orientação do Antonio 
				Sáez Delgado). Tínhamos à nossa espera a autora de Na Sombra 
				de Pascoaes, a Maria José Teixeira de Vasconcelos, a 
				Zezinha, sobrinha dilecta de Teixeira de Pascoaes e sua 
				secretária, que nesse encontro se mostrou corrosiva, espontânea, 
				grande senhora que ninguém impedia de roer e serrotar o que lhe 
				parecia iníquo e nefando. 
				
				
				Só regressei à choupana da Basílio Teles dois anos depois, em 
				Novembro de 2002, desta vez na companhia do pernambucano Alípio 
				Carvalho Neto, em Portugal para escrever uma dissertação sobre a 
				obra de Mário Cesariny, que acabou por não sair. Revisitámos as 
				questões que nos tinham ocupado no encontro de Dezembro de 1997. 
				Cesariny fez então questão de me mostrar aguarela original de 
				Teixeira de Pascoaes que estava no corredor, onde uns anos antes 
				eu vira a estante com os livros de Pascoaes. No regresso ao 
				quarto, entrevi a Henriete na sala, a chorar por via da morte de 
				pessoa amiga. De original, recordo a opinião chocante do Mário 
				sobre o movimento gay (era absolutamente contra) e a 
				frase com que se saiu, quando falámos da sua obra poética. 
				
				
				– Quando me dediquei ao amor carnal, a poesia pôs-me os cornos! 
				
				
				Foi nesse encontro que me dei conta da obsessão que nele havia 
				pela Epopeia de Gilgamesh. Lera muitas versões europeias, 
				sobretudo francesas e inglesas, do poema sumério-acádico [talvez 
				tenha mesmo observado no British Museum, em Londres, os 
				fragmentos que fizeram parte da biblioteca de Assurbaníbal (669 
				a. C.)] e relia nessa época as que tinha à mão, por cima da 
				cama, numa prateleira irregular de livros. Encarava a 
				possibilidade de criar em português uma versão sua do poema. Na 
				altura não percebi a extensão e as ramificações desta fixação (a 
				não ser que o poema era memória ancestral). Hoje entendo que a 
				afeição de Gilgamesh, rei de Uruk, e Ekidu se fazia o bastante 
				para açular nele o sonho de ligar vida, sangue e saliva às 
				palavras primordiais (mais do que fundadoras) desse poema. 
				
				
				Poucos dias depois, no meado de Dezembro, encontrámo-nos na casa 
				de Pascoaes, em Gatão, Amarante. A 14 de Dezembro passavam 
				cinquenta anos sobre o falecimento de Teixeira de Pascoaes. A 
				editora Assírio & Alvim, pela mão de Manuel Rosa e António 
				Lampreia, decidira reeditar a grande antologia de Teixeira de 
				Pascoaes, organizada por Mário Cesariny e publicada pela 
				primeira vez in 1972. Desta vez foi possível nela fazer justiça 
				ao Gaspar Simões que percebeu a insurreição ou a ressurreição de 
				Pascoaes por via do surrealismo em português, recolhendo as suas 
				palavras em marginália e juntando-o assim a Pascoaes e a 
				Cesariny. O Município de Amarante lembrava em várias sessões no 
				Salão Nobre da Câmara e em exposição no Museu Souza-Cardoso a 
				figura e a obra plástica de Teixeira de Pascoaes. Tomámos juntos 
				na casa de Gatão o pequeno almoço, servido pela Maria Amélia, 
				viúva de João Vasconcelos e sobrinha de Teixeira de Pascoaes. 
				Cesariny e Henriete pareciam duas crianças terríveis a dançar a 
				pavana; a Manuela Correia, viúva do Hermínio Monteiro, editor de 
				Pascoaes, fechada na doida melancolia da sua viuvez recente, 
				molhava nas lágrimas os pincéis e enchia de aguarelas outonais 
				as folhas dum caderno. Meses mais tarde, no bairro de Santa 
				Cruz, a Lena d’Água (ou Águia-escorpião ou ainda Helena Águas) 
				mostrar-me-ia, de frente, a casa onde ela crescera e o recanto 
				onde as duas se encontravam na adolescência, talvez para puxar 
				um fininho, enquanto o doido tráfico, aos berros, escoiceava na 
				Estrada de Benfica. E eu? … Eu, nada – como diz o Mário 
				num poema de 1953. Eu, deitando o mirone às tinturas da Manuela, 
				chegando o cinzeiro à Henriete, sorrindo para o babaréu do 
				Mário, tropeçava nas palavras de Camões, abertura das 
				redondilhas de Babel e Sião, sem saber se as águas eram 
				dali ou de lá, e estremecia nos ossos da alma uma saudade fina e 
				sem porquê. Nenhum valhacoito me fora tão de agrado como essa 
				casa de Pascoaes, molhada de névoa e saudade, em dia frio de 
				Dezembro, na companhia da benevolência e da lisura. E nenhum 
				depois disso me foi tão grato e querido, na realidade ou na 
				lembrança. Ainda hoje me encho de alegria quando recordo esse 
				recanto antigo.  
				
				
				Descemos depois ao pequeno cemitério de Gatão, onde Pascoaes 
				repousa numa campa rasa, com uma simples lousa, onde se 
				inscrevem dois versos que ele propositadamente escreveu para ali 
				figurarem: Apagado de tanta luz que deu/ Frio de tanto calor 
				que derramou. Tudo reverdecia naquele fim de Outono, como se 
				o crepúsculo vespertino ali fosse uma aurora aprilina. Em torno 
				da pequena e modesta campa encontrámos e abraçámos, numa 
				atmosfera de saudade e comoção, entre muitos outros, a Maria 
				José Teixeira de Vasconcelos (que entretanto abraçara na festa 
				em memória do Hermínio Monteiro, no antigo cinema Roma, a 10 de 
				Setembro de 2001, dia em que ele faria meio século de vida) e a 
				Adelaide, a filha do Zé Cobra, afilhada do Poeta, sua companhia 
				de todos os dias nos últimos anos da sua vida, ele um velho de 
				cabelo raro e branco, esqueleto à vista, olhos em fogo, dedos 
				queimados pelo cigarro, ela uma criança robusta e mística, uma 
				flor sem ossos nem pedras. Coube-me apresentar os dois, a 
				Adelaide e o Mário. Este nunca vira a mítica criança por quem 
				Pascoaes se tomara de compaixão no fim da vida e ardia por 
				conhecê-la. Estávamos os três num recanto escuro do átrio da 
				ermida do cemitério e o Mário, quando teve entre as mãos as da 
				Adelaide, na altura uma senhora com cerca de sessenta anos, 
				tornou-se naquele menino de cabelo branco que em dia frio do fim 
				do século XX me recebera na soleira da sua casa. Estava 
				deslumbrado e reconhecido. Foi aí, nesse recanto da ermida, que 
				ele viu fotografia do Zé Cobra, mostrada pela filha. Era um 
				homem escanhoado, de fato e gravata, penteado ao milímetro a 
				brilhantina. Segredou-me ele: 
				
				
				– Eu quero ver é o Zé Cobra despenteado, em fralda suja de 
				camisa, socos ferrados de serrano, como ele andava, dia a dia, 
				na quinta de Pascoaes. 
				
				
				Juntou-se a nós o António Telmo, que o Mário não conhecia e 
				recebeu de braços abertos, e ali ficámos os quatro, na manhã 
				húmida de Dezembro, com o rumor das águas do Tâmega por perto, 
				lembrando os últimos dias de Teixeira de Pascoaes, aqueles em 
				que a afilhada o acompanhara e em que o Mário o ouvira no Teatro 
				de Amarante. Mais tarde, por motivo deste encontro a quatro, e 
				ainda por via das relações de Teixeira de Pascoaes com o 
				surrealismo em português (melhor, da dinâmica deste a partir 
				daquele), vim a ter dura e inesperada testilha com o António 
				Telmo (v. “Uma Bibliografia”).  
				
				
				A última vez que vi o Mário Cesariny foi a 3 de Maio de 2004 na 
				Cinemateca, na apresentação do filme de Miguel Gonçalves Mendes. 
				Da película, recordo a cabeça do Mário acompanhada por um rugido 
				de leão; do Mário, lembro a simplicidade atrabiliária com que se 
				voltou para a sala, olhos fechados, quando as luzes se 
				acenderam, dizendo com um encolher de ombros para um público de 
				jovens: 
				
				
				– O poema que se ouve não é mau. 
				
				
				Riram os jovens, os muitos jovens. Que de jovens (pensei eu)! O 
				Mário apanhara-os às levas, por encomenda, década a década, 
				desde os de gabardine enxovalhada dos anos sessenta, que o 
				ouviam nas livrarias do centro, aos de piercing, que já 
				no terceiro milénio o vinham ver no filme de Miguel Gonçalves. 
				Pelo meio, estavam os que haviam nascido com a queda do Estado 
				Novo, como eu, e a quem ele avisara, em momento espontâneo e 
				manual de improviso (o cartaz sobreviveu e ficou no fundo da 
				Cupertino de Miranda), que o surrealismo não era uma estética, 
				não era uma forma de arte, mas uma REVOLUÇÃO, uma forma nova e 
				diferente de viver e pensar. Pediram-lhe os novos, os com 
				piercing, mais palavras e ele exclamou melancólico, entre 
				Bénard da Costa e Miguel Gonçalves: 
				
				
				– Tudo isto é lindo, com todos a baterem palmas, a quererem que 
				eu fale, mas o problema é que quando isto acabar vou ter de 
				regressar sozinho a casa. E vocês nem sabem como aquilo para a 
				Palhavã é frio e feio. 
				
				
				Era assim o Mário, mais nobre que feroz, mais simples que 
				maldoso, mais santo que sibarita. Gostava de se expor, de 
				mostrar tudo preto no branco, sem censuras, aberto e directo, 
				quase provocador, cioso da sua liberdade privada e pública (e 
				por isso intensamente faccioso e vigilante). [2] Assim 
				como assim, era no geral duma correccção inexcedível. Recorria 
				menos à palavra grossa que ao alívio da graça. Nunca o vi 
				deslizar para o insulto ou para o desabafo crítico. Tudo nele 
				era inocente e infantil. O seu génio era gentil e benévolo. 
				
				
				Ainda tentei no fim da sessão chegar à fala com ele, retomando o 
				diálogo sobre Teixeira de Pascoaes, mas a multidão que o rodeava 
				num recanto da Cinemateca era tanta que se percebia o seu 
				aborrecimento. Julguei vislumbrar nesse momento, a seu lado, 
				Luís Amorim de Sousa, seu conviva nos tempos de Londres. Preferi 
				não insistir e parti a pé pela avenida da Liberdade na companhia 
				do António Barahona. Abriu ele na alma o livro de lembranças que 
				tinha do Mário. Desfiou. Já o ouvira antes, em várias ocasiões, 
				falar da familagem que tivera com o Mário (este, por sua vez, na 
				visita de 1997, confessara-me que dias antes visitara o tugúrio 
				liliputiano do António, na calçada de Santana).  
				
				
				A certa altura, na esquina da rua do Salitre, o António pára e 
				diz-me, incrédulo e comovido: 
				
				
				– Conheço o Mário que vimos no filme desde os meus dezoito anos. 
				
				
				 Dou-me conta que isso atira ao ano de 1957. Quase cinquenta 
				anos de convívio, penso comigo. É monumento! Seguimos por ali 
				abaixo, conversando sobre o trabalho que ele então realizava na 
				Assírio & Alvim. Tinha uma edição da poesia de Cesário Verde 
				para sair. Citava-me, disse-me, a propósito de Guerra Junqueiro. 
				No Rossio despedimo-nos, ele em direcção da calçada de Santana, 
				onde tinha casa, eu pela rua do Ouro até ao rio, para apanhar o 
				comboio para Cascais. Na minha cabeça tinha um dos nossos 
				primeiros encontros, na Brasileira do Chiado, por volta de 1977 
				ou 1978, quando, embrenhado na descoberta dos Últimos Versos, 
				lhe perguntara o que pensava de Teixeira de Pascoaes. António 
				Barahona era então poeta de muita obra publicada, que eu 
				prezava, ao lado da de Herberto, António José Forte, Manuel de 
				Castro e Ernesto Sampaio. Recordava sempre com veemência o ardor 
				e a paixão com que ele afirmara no número único duma das 
				publicações colectivas do surrealismo em português que por esse 
				tempo ainda circulava por Lisboa & arredores, Grifo 
				(1970), se não fosse o surrealismo eu não sabia ler (cito 
				de cor). À minha pergunta, respondera-me porém com alguma 
				frieza: 
				
				
				– Gosto do Livro de Memórias. Leio-o, neste momento. O 
				verso não me interessa, mas a prosa do Livro de Memórias 
				passa a prova. É tudo hoje o que vale a pena ler dele. É o que 
				vai ficar. 
				
				
				Depois disso, também o António bateu o seu caminho, se não a sua 
				estrada de Damasco, que o levou a publicar Os Dois Sóis da 
				Meia-Noite (1990), onde aproxima por cima de todos os outros 
				Camões e Teixeira de Pascoaes. Tiro do volume e leio: Camões 
				e Pascoaes são os maiores representantes da Poesia Portuguesa 
				(p. 12). E ainda: Mas, se Pessoa, grande poeta, tem uma 
				dimensão europeia, Pascoaes, poeta grande, tem uma dimensão 
				universal. (...) Pessoa começa, agora, a ser entendido e 
				divulgado no espaço europeu a que ele mesmo se confinou como 
				previsor da actualidade e guia previdente do futuro próximo. 
				(...) Pascoaes só será entendido, talvez, daqui a mil anos, mas 
				no mundo inteiro, quando já, talvez, nem haja Portugal, mas a 
				Saudade da Pátria, que é o sentimento gerador, como da boca de 
				uma fonte, da Poesia pura. (pp. 13-4). Assim como assim, os 
				poetas tutelares do António não parecem ser Camões e Pascoes, 
				nem tão-pouco Pessoa, mas, atendendo às remissões dos seus 
				versos, Cesário e Pessanha. 
				
				
				O Mário Cesariny partiu desta vida, de vez e sem companhia, a 26 
				de Novembro de 2006. Tinha oitenta e três anos e deixou atrás de 
				si um vazio imenso, porque foi dos últimos a escrever e a pintar 
				com a autenticidade do espírito. Quando tomei nota do seu 
				falecimento, sofri choque muito grande. Não o via desde Maio de 
				2004 e fora sempre adiando uma nova conversa com ele por razão 
				dum livro sobre Pascoaes que então preparava e que apareceu em 
				Setembro de 2006, Viagem a Pascoaes. O livro reescrevia a
				Carta a um Amigo sobre Teixeira de Pascoaes e o Cristo de 
				Travassos, que merecera os encómios do Mário e acabara mesmo 
				por ser o pretexto da nossa primeira entrevista na Basílio 
				Teles.  
				
				
				No encontro em Amarante, Junho de 2000, em torno da revista 
				Espacio/Espaço Escrito, lembro-me de lhe falar nesta 
				reescrita, interessado na sua opinião. 
				
				
				– Cuidado – avisou ele – ainda estragas o que fizeste. A 
				carta vale, porque foi espontânea. Se te pões a fazer 
				croché, dás cabo daquilo. 
				
				
				Deixei de lado o projecto e só o retomei por volta de 2004, 
				quando começava a habituar-me a viagens de longo curso. Assim 
				como assim, lembrava-me da cautela do Mário e retraía-me em lhe 
				falar, preferindo ter o livro pronto para lho dar. Depois logo 
				se veria. O livro apareceu em finais de Setembro de 2006 e logo 
				lho enviei por correio postal. Esperaria pelo Natal para lhe 
				telefonar e combinar com ele novo encontro na Basílio Teles. 
				Disseram-me depois que nessa altura já o Mário não dava passo 
				pelo seu pé e alguém o transportava ao colo. Uma manhã em que 
				deambulava pelas ruas de Lisboa, nem dois meses eram passados, 
				deparei com a notícia da sua morte na primeira página dum 
				jornal. Fui a correr para o Palácio Galveias, Campo Pequeno, 
				onde o corpo estava em câmara ardente. Na entrada, no meio duma 
				multidão ruidosa, indiferente de todo ao Mário (estavam lá as 
				televisões), encontrei a Maria Amélia, de Pascoaes, e agarrei-me 
				a ela a chorar.  
				
				
				– Que o terror da morte se possa transformar no sublime 
				maravilhoso da vida! – foram as palavras que pronunciei 
				entredentes, junto do corpo tolhido e miúdo do Mário. 
				 
				
				
				Lembrava, como hoje lembro tão intensamente, o espanto, o 
				desnorteamento, o receio, em que ele caía, sempre que falava da 
				morte. Perguntou-me algumas vezes: – para onde é que tu achas 
				que vamos depois de morrermos? A morte assustava-o. Olhando para 
				trás, para o período que vai de 1989 a 2006, vejo o Mário e vejo 
				a criança anódina que ele era (acabou como um bebé, ao colo, sem 
				pernas para andar). Uma criança que nos seus grandes dias de 
				aventura visitara o Inferno e que nada podia chamuscar. 
				Procurara o seu Diabo [como se vê pela primeira versão do estudo 
				(!) sobre o Rimbaud em português] e vira-se à nora para dar com 
				ele. Era o Diabo português, marinheiro e farandoleiro, que tanto 
				trabalho lhe dera evocar e invocar, por apagado, indistinto ou 
				soterrado. Por fim encontrara-o e dera-se às maravilhas com ele. 
				Nunca se separava dele. Era um Diabo nada adusto (ao invés do 
				alemão, que tresanda a esturrado), ronceiro e gentil, com asas 
				de anjo (como os guaches de Teixeira de Pascoaes que estão no 
				quarto de Gatão), que não aborrecia ninguém e menos ainda o 
				brincalhão do Mário.  
				
				
				O voto que fiz junto do seu ataúde faço-o hoje diante da sua 
				venerada e veneranda lembrança. Que o Mário possa continuar a 
				ser a criança de asas abertas que nunca deixou morrer dentro de 
				si! 
				
				
				  
				
				NOTAS 
				
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