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				Teixeira de Pascoaes nas palavras de Cruzeiro Seixas 
				
				
				António Cândido Franco 
				
				
				
				Vi-o 
				pela primeira vez numa livraria de Lisboa, Benfica, ano de 2005. 
				Antes apenas trocáramos cartas (recordo uma das primeiras, 
				talvez em 2001, com fotografia sua do Luís Miguel Nava, na casa 
				que tivera em São Braz de Alportel). Parecia um príncipe da 
				Renascença, um humanista de Florença do século de Petrarca ou de 
				Lourenço de Médicis. Tinha um porte nobre e soberano. Prendeu o 
				público durante quase uma hora com os versos que disse de 
				memória. Era belo e tinha além disso uma memória prodigiosa. E 
				isto aos oitenta e cinco anos. Imaginei o que aquele homem teria 
				sido aos trinta ou quarenta anos, quando o Sol lhe aureolava a 
				cabeça e nenhuma sombra lhe passava pelos olhos fosforescentes. 
				Que beleza perfeita! Que águia solitária e altaneira!  
				 
				
				
				Entre os versos que recitou com uma segurança de fazer inveja a 
				qualquer actor recordo-me dos de Mário Sá-Carneiro. No fim não 
				resisti a abraçá-lo, balbuciando a medo o meu nome e 
				entregando-lhe algumas palavras minhas sobre Teixeira de 
				Pascoaes. Um ano depois enviei-lhe a Viagem a Pascoaes. 
				Foi duma generosidade inexcedível. Logo me enviou desenhos seus, 
				manifestando o desejo de me encontrar. Só em 2008 o encontro se 
				realizou, já ele recolhera, quase cego, a uma residência de 
				idosos, no Estoril. Tinha felizmente a visita regular da Maria 
				João, filha da Maria Amélia e de João Vasconcelos, da casa de 
				Pascoaes, que vivia perto, em Caxias. Almoçámos num restaurante 
				de Cascais, sobre o mar. Falámos de Teixeira de Pascoaes, Mário 
				Cesariny (que lhe deu a conhecer a poesia do autor de Duplo 
				Passeio no tempo dos “Surrealistas” e o levou depois, já nas 
				décadas de sessenta e setenta, à casa de Gatão, onde passou a 
				ser presença regular) e António Maria Lisboa. Melancolizava, 
				quase em lágrimas, por dentro, ao falar (ou ouvir dizer) deste. 
				Olhava em retrospectiva o passado do surrealismo português e 
				afirmava como ele teria sido outro e melhor, arrasador mesmo, se 
				o autor de Erro-Próprio não tivesse partido para sempre 
				tão cedo, quase adolescente, com quase tudo por fazer e dizer.
				 
				
				
				Não havia naquele homem o mais pequeno resquício de tóxico 
				escolar (faltou muito às aulas e livrou-se depressa, segundo 
				então me disse, da António Arroio). Sob a acção livre da luz, 
				que tanto ansiava e em que sempre vivera, todo o escuro carbónio 
				académico, livresco e adusto, se fixara e retraíra na matéria 
				verde da sua carne. Os  desenhos, as pinturas, as colagens, os 
				objectos intervencionados, de que as mãos não desistiam, mesmo 
				cego (ou quase), nada mais eram que o oxigénio, o ar puro e 
				limpo que ele dava a respirar ao mundo, como a sua liberdade 
				irredutível era a clorofila que lhe permitia a operação mágica 
				em que a sua arte magna se tornara. Mais que um príncipe 
				da Renascença, aquele homem era afinal um aventureiro (do 
				espírito), um viajante marítimo (que de feito fora, durante anos 
				e anos, visitando na geografia da Terra todo o antigo Oriente e 
				aportando por fim a Luanda, onde ficou quatorze anos), um 
				visionário dos picos rarefeitos do futuro.  
				
				
				A certa altura, parou de comer e de falar, olhou o mar e 
				exclamou de olhos abertos, com um encanto infantil: 
				
				
				– Repare, meu amigo, que cores fabulosas foram precisas misturar 
				para obter o azul deste mar… 
				
				
				Tempos depois escrevi-lhe. Pedia-lhe resposta por escrito a três 
				perguntas: como conheceu a poesia de Teixeira de Pascoaes; 
				que importância essa poesia teve e tem para o trabalho de 
				Cruzeiro Seixas; que significado houve e há para o surrealismo 
				em português. Pouco depois 
				chegou-me a reposta em forma de carta corrida, batida numa 
				máquina de escrever das antigas (salvante cabeça de entrada, 
				despedida e data, em pé de página, estas três manuscritas), 
				teclado gasto, emendada à mão, com a mesma tinta preta das 
				partes manuscritas. Tem a data final de 14 de Junho de 2009, 
				tendo sido carimbada um dia depois em Lisboa. Dou-lhe a partir 
				daqui a palavra. O que se ouve é a fala solene dum homem de 
				oitenta e oito anos, a espantosa voz dum Sagitário mitológico, 
				sem idade, que chega das origens do mundo para nos deixar uma 
				mensagem de beleza e liberdade. 
				
				
				  
				
				
				
				amigo António Cândido Franco  
				
				
				
				Não me sinto à altura de escrever duas linhas sobre Pascoaes. Há 
				muitos anos fiz um desenho à pena de homenagem que o Cesariny 
				pôs em circulação, 
				
				[1] mas que a mim sempre me pareceu insuficiente. 
				Mesmo assim correspondo ao seu pedido, mas se nada ou pouco lhe 
				parecer aproveitável, acho isso tão natural como para si ou para 
				o Cesariny foi natural escrever os admiráveis textos que 
				escreveram. Por certo seria preferível ficar calado, mas a fala 
				é uma das grandes tentações. Aquela obra vastíssima está 
				impressionantemente viva, naquela estranha casa gémea de Gatão, 
				onde se espera sempre que algo aconteça. E aquela tão vasta obra 
				de pintura da alma, que vejo nas pareses [paredes] do 
				“Palais idéal”, pois jamais é de ingenuidade que se trata. Estes 
				desenhos e aguarelas seriam muito mais do que é possível, pois 
				tantos pertenciam a uma secretária, creio que francesa, [2] 
				amiga do Jorge Vieira, que este, meu amigo, me deu generosamente 
				os que possuo. Escrevo escrevo escrevo – passei a vida a fazer 
				aquilo que não sei, e não o escondo. “Satan consome o fogo dos 
				seus dias/ cuidando com amor do martírio das Almas.”[3]Hoje será difícil conseguir os 3 cadernos 
				que o Cesariny e eu publicámos, com capa de papel 
				mata-borrão-rosa, em Junho de 72, o que foi para nós então, 
				sempre desendinheirados, uma grande aventura. Pouco depois fui 
				levado pelo Cesariny àquele estranho solar de arquitectura 
				“gémea”, que estende aquele infinito corredor até ao Marão. 
				Dormi ali num quarto onde, durante toda a noite ouvia a palavra 
				líquida dos golfinhos de granito. [4] De resto, 
				ali, as palavras circulam em tamanho natural. “Olhos profundos 
				para dentro olhando”, diz Pascoaes. E o ano passado fomos jantar 
				a casa do João. [5] Quando saímos, já tarde na 
				noite, havia um rápido clarão avermelhado para o lado de 
				Pascoaes. Logo se compreendeu ser um fenómeno natural, mas 
				durante um minuto todos empalidecemos. Foi terrível – e é 
				terrível pensar que tudo está ali em condições em que tudo pode 
				ser possível. “Portugal ou purgatório”, diz Pascoaes. 
				
				
				
				Espera-se geralmente que um pintor escreva, e menos, a um 
				escritor que pinte. Sobre Pascoaes há certamente ainda muito a 
				ser dito, para além do que já foi dito de forma sábia e sensível 
				pelo Cesariny, por si, pelo Amigo insubstituível que foi para 
				mim o António Quadros, 
				
				[6] etc. Nos anos 40, a qualquer hora da noite, havia 
				sempre uma luz velada no quarto do Cesariny; foi assim 
				certamente que começou a sua evocação de Pascoaes. Foi pois por 
				intermédio do Cesariny que conheci Pascoaes. Eram muitas as 
				minhas solicitações então; e de resto, nunca consegui sentir-me 
				muito bem na designação de “pintor”. Além disso, em 50 refiz com 
				paixão as rotas dos navegadores por Goa, por Macau, por Timor, 
				etc., etc., acabando por me fixar em África. Durante 14 anos de 
				permanência ali, redescobri Pascoaes, pela mão dum homem que 
				dirigia uma livraria de Luanda, [7] vigiadíssimo 
				pela PIDE. 
				
				
				
				Pascoaes não dedica muito tempo as 
				
				[às] imagens poéticas. O seu espaço é o da imaginação livre, 
				onde o pensamento tem TODA A FORÇA da poesia. Parece-me que já 
				todos os disseram que a poesia em Pascoaes ocupa todo o espaço 
				do seu quotidiano. Tudo é claro – tanto quanto é possível a 
				clareza onde esteja o homem. 
				
				
				
				Não poucas vezes as afirmações de Pascoaes têm a ver com as 
				afirmações de Breton 
				
				[8] e de alguns dos seus próximos. A imaginação é ali 
				a realidade. É, condicionada pela minha inteligência e pela 
				minha sensibilidade, pelos meus medos, pelas minyas [minhas] 
				formas de desobediência, e pelo estranho meio silêncio em que 
				esta obra vive, que vivo. [9] 
				
				
				  
				
				
				
				NOTAS 
				
				
				
				
				
				
				
				
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