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				Mário cesariny e Teixeira de Pascoaes (relatório e testemunho) 
				
				
				António Cândido Franco 
				
				
				
				Comecemos 
				por Mário Cesariny (1923-2006), que desde muito cedo manifestou 
				interesse pelo autor de Regresso ao Paraíso e constitui o 
				eixo capital deste escrito sobre Teixeira de Pascoaes e a sua 
				recepção poética no século XX. O autor de Corpo Visível 
				foi um dos primeiros intérpretes e divulgadores da poesia de 
				Teixeira de Pascoaes, depois da sua morte (mas também ainda em 
				vida). Começou por divulgá-lo junto dos companheiros do (anti) 
				grupo surrealista de Lisboa, os surrealistas, e acabou já 
				na década de setenta a fazer duas intorneáveis antologias 
				pascoaesianas – Aforismos (1972) e Poesia de Teixeira 
				de Pascoaes (1972). Esta última é, além de retrospectiva 
				inteira de toda a obra escrita de Pascoaes, o primeiro lugar 
				onde surge a obra plástica do autor, com um conjunto muito 
				significativo de aguarelas, nada menos que vinte e duas. A par 
				desta actividade de leitura, crítica e circulação, Cesariny 
				avançou como pintor por esta mesma altura, 1972, com duas 
				homenagens ao Poeta do Marão, “Pascoaes, o Poeta” e “Homenagem a 
				Pascoaes”, ponto de partida do preito pictórico ulterior, de 
				1979, realizada dois anos depois do centenário do nascimento do 
				Poeta, “A Teixeira de Pascoaes/ O Universo Menino/ O Velho da 
				Montanha/ O Rei do Mar”, porventura o ponto explosivo e cimeiro 
				da relação de Mário Cesariny com Teixeira de Pascoaes. 
				
				
				Um ano depois, em 1973, no texto “Para uma Cronologia do 
				Surrealismo em português”, publicado na revista Phases (nº 
				4) e recolhido mais tarde no livro As Mãos na Água a Cabeça 
				no Mar (1985), o autor de Pena Capital afirmava a 
				superioridade (decerto do ponto de vista do surrealismo em 
				português) de Teixeira de Pascoaes sobre Fernando Pessoa. Diz 
				Mário Cesariny: Teixeira de Pascoaes, poeta bem mais 
				importante, quanto a nós, do que Fernando Pessoa. 
				 
				
				Já 
				na “Apresentação” da sua grande selecção de 1972, Poesia de 
				Teixeira de Pascoaes, Cesariny dera a entender o seu 
				afastamento em relação a Fernando Pessoa e a aproximação a 
				Pascoaes, ao mesmo tempo que chamava a atenção, a propósito de 
				carta sua de António Maria Lisboa (v. “Uma Bibliografia”), para 
				a forte afinidade entre a obra de Pascoaes e a do autor de 
				Erro-Próprio (1928-53). Pelo que aí ficamos a saber, já no 
				tempo das actividades de os surrealistas – que situamos 
				entre 1949 (ano da I Exposição dos surrealistas, que 
				aconteceu em Junho-Julho na antiga sala de projecções do 
				Pathé-Baby, rua Augusto da Rosa, Lisboa)  e 1953 [morte de 
				António Maria Lisboa e dispersão definitiva dos elementos do 
				grupo, com a partida em 1951 para África de Cruzeiro Seixas (e 
				chegada, em Luanda, por encontro com Seixas, de Alfredo 
				Margarido ao surrealismo em português e quiçá a Teixeira de 
				Pascoaes, de quem se tornará pouco depois estudioso de valor), 
				as viagens cruzadas de Mário Henrique Leiria, o abjeccionismo de 
				Pedro Oom, o afastamento de Henrique Risques Pereira e Fernando 
				Alves dos Santos, a viragem-silêncio de Carlos Eurico da Costa] 
				– Mário Cesariny se empenhava na leitura da obra de Teixeira de 
				Pascoaes, procurando entusiasmar nela alguns próximos, no caso 
				Artur Manuel do Cruzeiro Seixas e António Maria Lisboa, que 
				manifesta mesmo, na carta referida acima, o seu interesse em 
				encontrar pessoalmente Pascoaes. 
				[1]
				 
				
				Mais 
				tarde, quando do (anti) grupo restava sobretudo a memória 
				hierática do poeta de Erro-Próprio e a pujança 
				gráfico-psíquica de Cruzeiro Seixas, que se preparava para os 
				grandes voos das décadas seguintes, Cesariny insistirá ainda em 
				Pascoaes e nas obras maiores dele, porventura em eco menor, com 
				os do Gelo, esses que fizeram o número único de Grifo 
				(1970), e que foram no final da década de cinquenta e ao longo 
				da seguinte a segunda vaga do surrealismo em português, embora 
				nele não deixassem aquela marca fulgurante e secreta que o grupo 
				do Grand Jeu (1928-32) deixou no surrealismo da geração 
				de Breton. E, já depois da revolução dos cravos, no final da 
				década de setenta, foi ainda Cesariny que levou o jovem Manuel 
				Hermínio Monteiro (1952-2001), da editora Assírio & Alvim, então 
				uma cooperativa, a São João Gatão, casa de Pascoaes, ainda no 
				tempo de João Vasconcelos, sobrinho de Teixeira de Pascoaes, e 
				estimulou o seu paladar para editar a obra do Poeta, o que 
				aconteceu a partir de 1984, com a reedição de São Paulo, 
				cinquenta anos depois da primeira, em fulgurante apresentação de 
				António-Pedro Vasconcelos, com a tocante aproximação entre  
				Pascoaes e Pasolini. 
				
				
				Aquilo que porventura alguns surrealistas portugueses, em 
				primeiríssimo lugar Mário Cesariny, compreenderam melhor que 
				outros ou que todos foi que Teixeira de Pascoaes sobreviveu 
				física e espiritualmente a Fernando Pessoa perto de vinte anos e 
				que parte da obra pascoaesiana criada nesse período de nudez e 
				isolamento, que abriu com o São Paulo (1934) e fechou com
				Últimos Versos (1953) e Minha Cartilha (1954), foi
				pós-pessoana, no sentido em que supera tudo o que o poeta 
				dos heterónimos conheceu e deu a conhecer. 
				
				
				*** 
				
				
				A primeira vez que falei com Mário Cesariny foi na Mãe-de-Água, 
				às Amoreiras, Lisboa, no Outono de 1989, quando a Assírio & 
				Alvim lançou A Phala especial, dedicada aos cem anos da 
				poesia portuguesa (1888-1988). Recordo um dia chuviscante, 
				enevoado e ventoso; quando cheguei, o espaço, repleto de pequena 
				e ruidosa multidão, salsifré de vozes e hálitos de fumo, 
				animava-se de cor e luz, indiferente à bruega lá de fora. O 
				Hermínio Monteiro arrecadou-me exemplar do volume, onde estava 
				texto meu sobre Teixeira de Pascoaes. Folheei-o e daí a nada, à 
				minha frente, falando com um desconhecido, sem mais, estava 
				Mário Cesariny, magro e seco. Por trás dele, entre as paredes 
				polidas de pedra, num aquário gigante, agitava-se na brisa do 
				mundo um plano de prata velha, um lençol baixo de água parada, 
				com esquírolas de vidro, que parecia menos a vetusta Mãe-de-Água 
				lisboeta em dia de bolor e cinza que quadro metafísico de 
				Chirico.  
				
				
				Antes, avistara Mário Cesariny uma única vez, decerto em 1984, 
				em Entre-Campos, Feira Popular, cachecol e boné enfiado na 
				cabeça, barba por fazer, trajo de bater, como qualquer bardino 
				da estiva do Campo das Cebolas ou do Largo do Terreiro do Trigo, 
				na festa dos dez anos da revista anarquista A Ideia. Por 
				essa altura crescia a minha admiração pela obra de Teixeira de 
				Pascoaes. Nela me iniciara tempo atrás, em 1977, centenário do 
				nascimento do Poeta, e acabava de publicar, Junho de 1984, numa 
				folha de soja, de restritíssima circulação, um primeiro tributo 
				de admiração por ela. Entretanto pudera comprar a grande 
				antologia de Cesariny, Poesia de Teixeira de Pascoaes, 
				que naquela época aparecia ainda com alguma frequência nas 
				livrarias de Lisboa, na primeira edição (Estúdios Cor). Logo 
				dera conta da veemente originalidade da leitura introdutória, 
				que fugia aos clichés mais vulgares dos prestigiados sancadilhas 
				que por essa época se dedicavam à avaliação da poesia 
				portuguesa, aviltando com virulência e escárnio tudo o que lhes 
				escapava ao entendimento e alçada. Foi instantânea a minha 
				simpatia pela leitura de Cesariny. Ainda assim, quando o 
				vislumbrei em Entre-Campos – pouco antes, ou pela mesma altura, 
				o livreiro João Carlos Raposo Nunes, então ao volante forçado 
				dum táxi, falara-me de corrida com Mário Cesariny [2] – 
				não me atrevi a abordá-lo para lhe falar de Pascoaes, 
				agradecendo-lhe o destemido labor, a audácia dos juízos em torno 
				do Zaratustra do Marão, a homenagem ilustre, em despojada e viva 
				língua, à heterodoxia. Ele estava de saída, era um Hércules (ou 
				anti-Hércules) da poesia portuguesa, um pintor (ou despintor) 
				reconhecido, e eu não saberia alinhar na carujeira suja da noite 
				duas palavras de jeito, capazes de justificarem o tempo que lhe 
				ia roubar. 
				
				
				Agora, anos depois, voltava a ter Cesariny diante mim, desta vez 
				parado à luz trémula verde da água. Ali estava ele, mesmo ao meu 
				lado, cabelo branco, com os traços rijos de um plebeu 
				aristocrata. O mesmo comparsa da estiva e da rua, o mesmo 
				fragateiro rústico que uns anos antes avistara em Entre-Campos. 
				Havia um cheiro intenso a ceruma verde e como ele estivesse a 
				fumar pensei que estava de charro na mão.  
				
				
				– Ora o Cesariny não faz por menos a festa – entretive comigo. – 
				Vir par o meio do maralhal fumar erva mal seca. Só ele. É um 
				pivete que chega ao Jardim da Estrela. Que tunante!  
				
				
				Anos mais tarde, confessou-me que nunca tocara num paivante de 
				liamba ou em qualquer outra droga e que durante a sua longa vida 
				não bebera mais do que três ou quatro cervejas. O único excesso, 
				que quase rebentara com ele, fora uma aspirina com uma cerveja, 
				nos tempos do Gelo ou do Café Royal, no final dos anos 
				cinquenta, quando publicara, na colecção “A Antologia em 1958”, 
				a estreia em livro de Luiz Pacheco, Carta-Sincera a José 
				Gomes Ferreira, e a de Virgílio Martinho, Festa Pública. 
				
				
				– Agora – desabafou ele – imagine o que teria sido a minha vida, 
				com a paixão que por mim vai, se eu tivesse experimentado 
				qualquer droga. Nunca mais a largava. Era o inferno – rematou.
				 
				
				
				No fim do lançamento, quando a multidão começava a escoar, 
				reparei que ele se deixara ficar para trás, folheando um livro 
				que alguém lhe acabava de dar. Atrevi-me a abordá-lo. Tinha 
				entretanto aparecido a edição  de As Mãos na Água a Cabeça no 
				Mar, onde eu pudera ler o texto “Para uma Cronologia do 
				Surrealismo em português”, com a espantosa afirmação, 
				Teixeira de Pascoaes, poeta bem mais importante, quanto a nós, 
				do que Fernando Pessoa. Ardia por dentro em lhe falar, 
				agradecendo-lhe a audácia dos juízos, a heresia descomprometida 
				das provocações, a liberdade exemplar, a indiferença olímpica 
				por cálculo e oportunidade. Com tanto prémio, preminho e premão, 
				ele, um dos maiores poetas vivos, nunca fora convocado por 
				nenhum júri para receber o cheque banqueta. Ao invés, com um 
				único livro, mediano e desinfeliz (apesar de contentinho), David 
				Mourão-Ferreira empalmava meia dúzia deles. Como é que este 
				homem, chamado Mário Cesariny, num país assim patético, não 
				havia de ter por inteiro o meu acordo?  
				
				
				Discordara apenas da sua palavra, nos comentários anexos (a 
				partir de Joaquim de Carvalho) à segunda edição de Os Poetas 
				Lusíadas (1987), sobre os saudosistas da Renascença 
				Portuguesa.  O golpe de vista levara, do meu ponto de vista, a 
				uma segunda edição falhada do livro, depois de setenta anos da 
				primeira. Mas do ponto dessa tranquibérnia, em que me envolvera 
				com o editor, ou ele comigo, bem eu me esquecia nesse momento, 
				em nome de tudo aquilo que me ligava a ele, Cesariny, e tanto 
				era. Demais, gostava de conhecer por dentro os pormenores do seu 
				encontro com a poesia e o itinerário aldeão de Teixeira de 
				Pascoaes. Pouco ou nada conhecia desta sua história, com certeza 
				modelar em meio tão complexado e mazorreiro como era e é o 
				português, receoso sempre de passar por provinciano, hoje por 
				periférico, e desejoso de se mostrar, dissimulado e 
				especioso, à la page ou a par de tudo o que faça figura 
				ou figurona de centro. 
				
				
				Apresentei-me a medo. Ele foi de uma gentileza inexcedível, 
				mostrando-se deferente e muito atento às minhas palavras. 
				Falámos sobre Teixeira de Pascoaes. Ele reafirmou-me os juízos 
				que eu já conhecia, apimentando-os com saborosas apreciações. 
				Acabara de publicar o Virgem Negra, onde, minando 
				Fernando Pessoa & companhia, voltava a salvar um Pascoaes de 
				pouca póça cartesiana (v. “Uma Bibliografia”). Estava 
				cáustico e certeiro. Ao homem dos barcos do Chafariz de Dentro 
				ou do Jardim do Tabaco, de cachecol encardido e boné coçado de 
				pala, juntava-se ali um bonecreiro vicentino, de pantalonas e 
				mascarilha. 
				
				
				– O Fernandinho foi um talento literário de primeira grandeza. 
				Tinha talento para dar e vender, mas ficou limitado pela tralha 
				do tempo – disse-me ele. – Pascoaes, pelo contrário, não tem 
				tempo; a Lua dele já lá estava na primeira alvorada do mundo e 
				lá há-de ficar no momento em que tudo acabar. É maravilhoso.
				 
				
				
				Pouco tempo depois, em 1990, com certeza no mês de Fevereiro, 
				voltei a encontrá-lo na cave da cooperativa editorial Assírio & 
				Alvim, onde ele ensaiava ao piano o poema “Políptica de Maria 
				Koplas dita Mãe dos Homens”. [3] Recebeu-me com a mesma 
				amabilidade e graça. Foi nesse momento que lhe pus nas mãos, ou 
				lhe deixei no bolso do gabinardo, exemplar do Cante Quinto 
				do Francisco Palma Dias, com dedicatória deste, arranhada a 
				preto irregular, num recanto assombrado de Santa Apolónia, antes 
				do embarque (para viagem xamânica) no Lusitânia-Express. Falámos 
				de António Maria Lisboa e Leonardo Coimbra, via Sarmento de 
				Beires (1892-1974), que recebeu em Paris o poeta de 
				Erro-Próprio e teve livro de versos, Sinfonia do Vento 
				(1924), comentado entusiasticamente pelo pensador de A Luta 
				pela Imortalidade (e também por Pascoaes). Contestou 
				Cesariny a possibilidade do pensamento libertário de António 
				Maria Lisboa poder ser aproximado do criacionismo vitalista de 
				Leonardo. Era questão lateral, que decorria dum livreco meu, 
				publicado uns meses antes, 1989, O Mar e o Marão, que lhe 
				fiquei de enviar para casa. 
				
				
				Enviei-lhe o livro e recebi telefonema dele agradecendo. Calava 
				os desacordos em nome da liberdade e do coração, garantia-me 
				ele. [4] Mais tarde, 1995, estampei em edição privada de 
				cem exemplares a Carta a um Amigo sobre Teixeira de Pascoaes 
				e o Cristo de Travassos, cujo destinatário era Luís Amaro, 
				fundador com Raul de Carvalho da revista Árvore (1951-3), 
				de que lhe enviei um exemplar e que mereceu desta vez carta e 
				novo telefonema dele. Estava entusiasmado e queria falar comigo 
				cara a cara. O ateísmo contraditório de Pascoaes, que eu 
				explorava nesse texto, interessava-lhe muito; tinha segredos 
				para me revelar. Pelo meu lado, eu precisava ainda de conhecer 
				com pormenor o encontro dele com a poesia de Teixeira de 
				Pascoaes, pois as nossas falas anteriores haviam sido curtas. Eu 
				nem sequer consciência ainda tinha de como e quando Cesariny 
				chegara ao conhecimento de Teixeira de Pascoaes. Combinámos a 
				minha ida a casa dele para tirarmos tudo a limpo. 
				
				
				 Pus então pela primeira vez o pé na Rua Basílio Teles, número 
				seis. Descobri o prédio, baixo e familiar, numa esquina, na 
				vizinhança próxima do Instituto Português de Oncologia. Tudo 
				aquilo me pareceu conhecido e universal. Subi. O Mário morava no 
				último andar, ao pé da clarabóia de vidro. Era o fim do dia e 
				uma claridade luminosa, que parecia vir do nascer do mundo, caía 
				do alto sobre a escada. Bati. O Mário demorou a abrir. 
				Ajoelhou-se depois, quando me viu. Eu ajoelhei-me também, 
				encantado com aquele homem de cabelo branco que se comportava 
				como uma criança. Pediu-me para lhe pôr a mão na cabeça. E foi 
				assim, desta forma quase sagrada, que eu entrei na sua cardenha 
				escura.  
				
				
				O quarto estava mesmo ao pé da porta da entrada. As paredes 
				estavam por pintar, esverdinhadas e escuras, manchadas de 
				humidade e nicotina. Em frente da porta, encostada à parede, 
				estava a cama de corpo único, que ele me apontou. 
				
				
				– Eis o túmulo – disse. 
				
				
				Fez questão de me mostrar no corredor a estante onde tinha os 
				livros de Pascoaes, emprestando-me ao mesmo tempo um livro de 
				André Breton que lhe agradava especialmente, Entretiens 
				(1952), onde segundo ele o surrealismo e o pensamento libertário 
				se davam as mãos com rara felicidade. Não deixava para trás a 
				revista A Ideia, onde colaborara e em cuja festa fizera 
				questão de participar. E não perdia de vista o corte definitivo 
				de André Breton com o marxismo, qualquer marxismo, e a 
				declaração decisiva, sem tergiversações, depois dos sangrentos 
				acontecimentos de Budapeste, a favor da tradição histórica e de 
				pensamento do anarquismo. No meio, por acaso, soltou-se da 
				prateleira um livro de René Guénon, Formes Traditionnelles et 
				Cycles Cosmiques, que tinha uma dedicatória do António 
				Barahona. 
				
				
				– O António quer ultrapassar o Breton, mas o Breton não 
				se pode ultrapassar, porque também não pertence ao Tempo – 
				exclamou ele, lembrando ou não, tanto monta, o que Antonin 
				Artaud e René Daumal, dois próximos, disseram dever ao autor de
				La Crise du Monde Moderne. 
				
				
				Falámos depois disso durante duas ou três horas, sentados na 
				pedra daquela tumba. Fomos interrompidos apenas uma vez, por uma 
				senhora pequenina, olhos repletos de fogo verde, voz rouca, 
				cheia de fumo, que veio lembrar a hora dos remédios. Era a 
				Henriete, a irmã com quem vivia. Retomámos logo de seguida as 
				palavras com o mesmo entusiasmo. Cesariny falou-me num fio 
				ininterrupto como começou a ler Teixeira de Pascoaes e como o 
				encontrou em Amarante, no ano de 1950. Contou-me ainda como 
				frequentou a sua casa, já no tempo do sobrinho João Vasconcelos 
				e da sua esposa, Maria Amélia, e como o deu a conhecer a António 
				Maria Lisboa, a Ernesto Sampaio, a Cruzeiro Seixas. Ligava 
				Pascoaes, o lugar e a poesia, a casa e o homem, ao surrealismo 
				vivo e eterno, sem escola nem arte, ao mais espontâneo e vivo da 
				imaginação humana.  
				
				
				Eis as suas palavras, tal como as registei na tarde mítica do 
				dia 26 de Dezembro de 1997. 
				  
				NOTAS 
				
				
				
				
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