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2000-2010
 

 

 

 

BANDA LUSÓFONA | PORTUGAL

Teixeira de Pascoaes | (1877-1952)

Mário cesariny e Teixeira de Pascoaes (relatório e testemunho)

António Cândido Franco

Comecemos por Mário Cesariny (1923-2006), que desde muito cedo manifestou interesse pelo autor de Regresso ao Paraíso e constitui o eixo capital deste escrito sobre Teixeira de Pascoaes e a sua recepção poética no século XX. O autor de Corpo Visível foi um dos primeiros intérpretes e divulgadores da poesia de Teixeira de Pascoaes, depois da sua morte (mas também ainda em vida). Começou por divulgá-lo junto dos companheiros do (anti) grupo surrealista de Lisboa, os surrealistas, e acabou já na década de setenta a fazer duas intorneáveis antologias pascoaesianas – Aforismos (1972) e Poesia de Teixeira de Pascoaes (1972). Esta última é, além de retrospectiva inteira de toda a obra escrita de Pascoaes, o primeiro lugar onde surge a obra plástica do autor, com um conjunto muito significativo de aguarelas, nada menos que vinte e duas. A par desta actividade de leitura, crítica e circulação, Cesariny avançou como pintor por esta mesma altura, 1972, com duas homenagens ao Poeta do Marão, “Pascoaes, o Poeta” e “Homenagem a Pascoaes”, ponto de partida do preito pictórico ulterior, de 1979, realizada dois anos depois do centenário do nascimento do Poeta, “A Teixeira de Pascoaes/ O Universo Menino/ O Velho da Montanha/ O Rei do Mar”, porventura o ponto explosivo e cimeiro da relação de Mário Cesariny com Teixeira de Pascoaes.

Um ano depois, em 1973, no texto “Para uma Cronologia do Surrealismo em português”, publicado na revista Phases (nº 4) e recolhido mais tarde no livro As Mãos na Água a Cabeça no Mar (1985), o autor de Pena Capital afirmava a superioridade (decerto do ponto de vista do surrealismo em português) de Teixeira de Pascoaes sobre Fernando Pessoa. Diz Mário Cesariny: Teixeira de Pascoaes, poeta bem mais importante, quanto a nós, do que Fernando Pessoa.

Já na “Apresentação” da sua grande selecção de 1972, Poesia de Teixeira de Pascoaes, Cesariny dera a entender o seu afastamento em relação a Fernando Pessoa e a aproximação a Pascoaes, ao mesmo tempo que chamava a atenção, a propósito de carta sua de António Maria Lisboa (v. “Uma Bibliografia”), para a forte afinidade entre a obra de Pascoaes e a do autor de Erro-Próprio (1928-53). Pelo que aí ficamos a saber, já no tempo das actividades de os surrealistas – que situamos entre 1949 (ano da I Exposição dos surrealistas, que aconteceu em Junho-Julho na antiga sala de projecções do Pathé-Baby, rua Augusto da Rosa, Lisboa)  e 1953 [morte de António Maria Lisboa e dispersão definitiva dos elementos do grupo, com a partida em 1951 para África de Cruzeiro Seixas (e chegada, em Luanda, por encontro com Seixas, de Alfredo Margarido ao surrealismo em português e quiçá a Teixeira de Pascoaes, de quem se tornará pouco depois estudioso de valor), as viagens cruzadas de Mário Henrique Leiria, o abjeccionismo de Pedro Oom, o afastamento de Henrique Risques Pereira e Fernando Alves dos Santos, a viragem-silêncio de Carlos Eurico da Costa] – Mário Cesariny se empenhava na leitura da obra de Teixeira de Pascoaes, procurando entusiasmar nela alguns próximos, no caso Artur Manuel do Cruzeiro Seixas e António Maria Lisboa, que manifesta mesmo, na carta referida acima, o seu interesse em encontrar pessoalmente Pascoaes. [1]

Mais tarde, quando do (anti) grupo restava sobretudo a memória hierática do poeta de Erro-Próprio e a pujança gráfico-psíquica de Cruzeiro Seixas, que se preparava para os grandes voos das décadas seguintes, Cesariny insistirá ainda em Pascoaes e nas obras maiores dele, porventura em eco menor, com os do Gelo, esses que fizeram o número único de Grifo (1970), e que foram no final da década de cinquenta e ao longo da seguinte a segunda vaga do surrealismo em português, embora nele não deixassem aquela marca fulgurante e secreta que o grupo do Grand Jeu (1928-32) deixou no surrealismo da geração de Breton. E, já depois da revolução dos cravos, no final da década de setenta, foi ainda Cesariny que levou o jovem Manuel Hermínio Monteiro (1952-2001), da editora Assírio & Alvim, então uma cooperativa, a São João Gatão, casa de Pascoaes, ainda no tempo de João Vasconcelos, sobrinho de Teixeira de Pascoaes, e estimulou o seu paladar para editar a obra do Poeta, o que aconteceu a partir de 1984, com a reedição de São Paulo, cinquenta anos depois da primeira, em fulgurante apresentação de António-Pedro Vasconcelos, com a tocante aproximação entre  Pascoaes e Pasolini.

Aquilo que porventura alguns surrealistas portugueses, em primeiríssimo lugar Mário Cesariny, compreenderam melhor que outros ou que todos foi que Teixeira de Pascoaes sobreviveu física e espiritualmente a Fernando Pessoa perto de vinte anos e que parte da obra pascoaesiana criada nesse período de nudez e isolamento, que abriu com o São Paulo (1934) e fechou com Últimos Versos (1953) e Minha Cartilha (1954), foi pós-pessoana, no sentido em que supera tudo o que o poeta dos heterónimos conheceu e deu a conhecer.

***

A primeira vez que falei com Mário Cesariny foi na Mãe-de-Água, às Amoreiras, Lisboa, no Outono de 1989, quando a Assírio & Alvim lançou A Phala especial, dedicada aos cem anos da poesia portuguesa (1888-1988). Recordo um dia chuviscante, enevoado e ventoso; quando cheguei, o espaço, repleto de pequena e ruidosa multidão, salsifré de vozes e hálitos de fumo, animava-se de cor e luz, indiferente à bruega lá de fora. O Hermínio Monteiro arrecadou-me exemplar do volume, onde estava texto meu sobre Teixeira de Pascoaes. Folheei-o e daí a nada, à minha frente, falando com um desconhecido, sem mais, estava Mário Cesariny, magro e seco. Por trás dele, entre as paredes polidas de pedra, num aquário gigante, agitava-se na brisa do mundo um plano de prata velha, um lençol baixo de água parada, com esquírolas de vidro, que parecia menos a vetusta Mãe-de-Água lisboeta em dia de bolor e cinza que quadro metafísico de Chirico.

Antes, avistara Mário Cesariny uma única vez, decerto em 1984, em Entre-Campos, Feira Popular, cachecol e boné enfiado na cabeça, barba por fazer, trajo de bater, como qualquer bardino da estiva do Campo das Cebolas ou do Largo do Terreiro do Trigo, na festa dos dez anos da revista anarquista A Ideia. Por essa altura crescia a minha admiração pela obra de Teixeira de Pascoaes. Nela me iniciara tempo atrás, em 1977, centenário do nascimento do Poeta, e acabava de publicar, Junho de 1984, numa folha de soja, de restritíssima circulação, um primeiro tributo de admiração por ela. Entretanto pudera comprar a grande antologia de Cesariny, Poesia de Teixeira de Pascoaes, que naquela época aparecia ainda com alguma frequência nas livrarias de Lisboa, na primeira edição (Estúdios Cor). Logo dera conta da veemente originalidade da leitura introdutória, que fugia aos clichés mais vulgares dos prestigiados sancadilhas que por essa época se dedicavam à avaliação da poesia portuguesa, aviltando com virulência e escárnio tudo o que lhes escapava ao entendimento e alçada. Foi instantânea a minha simpatia pela leitura de Cesariny. Ainda assim, quando o vislumbrei em Entre-Campos – pouco antes, ou pela mesma altura, o livreiro João Carlos Raposo Nunes, então ao volante forçado dum táxi, falara-me de corrida com Mário Cesariny [2] – não me atrevi a abordá-lo para lhe falar de Pascoaes, agradecendo-lhe o destemido labor, a audácia dos juízos em torno do Zaratustra do Marão, a homenagem ilustre, em despojada e viva língua, à heterodoxia. Ele estava de saída, era um Hércules (ou anti-Hércules) da poesia portuguesa, um pintor (ou despintor) reconhecido, e eu não saberia alinhar na carujeira suja da noite duas palavras de jeito, capazes de justificarem o tempo que lhe ia roubar.

Agora, anos depois, voltava a ter Cesariny diante mim, desta vez parado à luz trémula verde da água. Ali estava ele, mesmo ao meu lado, cabelo branco, com os traços rijos de um plebeu aristocrata. O mesmo comparsa da estiva e da rua, o mesmo fragateiro rústico que uns anos antes avistara em Entre-Campos. Havia um cheiro intenso a ceruma verde e como ele estivesse a fumar pensei que estava de charro na mão.

– Ora o Cesariny não faz por menos a festa – entretive comigo. – Vir par o meio do maralhal fumar erva mal seca. Só ele. É um pivete que chega ao Jardim da Estrela. Que tunante!

Anos mais tarde, confessou-me que nunca tocara num paivante de liamba ou em qualquer outra droga e que durante a sua longa vida não bebera mais do que três ou quatro cervejas. O único excesso, que quase rebentara com ele, fora uma aspirina com uma cerveja, nos tempos do Gelo ou do Café Royal, no final dos anos cinquenta, quando publicara, na colecção “A Antologia em 1958”, a estreia em livro de Luiz Pacheco, Carta-Sincera a José Gomes Ferreira, e a de Virgílio Martinho, Festa Pública.

– Agora – desabafou ele – imagine o que teria sido a minha vida, com a paixão que por mim vai, se eu tivesse experimentado qualquer droga. Nunca mais a largava. Era o inferno – rematou.

No fim do lançamento, quando a multidão começava a escoar, reparei que ele se deixara ficar para trás, folheando um livro que alguém lhe acabava de dar. Atrevi-me a abordá-lo. Tinha entretanto aparecido a edição  de As Mãos na Água a Cabeça no Mar, onde eu pudera ler o texto “Para uma Cronologia do Surrealismo em português”, com a espantosa afirmação, Teixeira de Pascoaes, poeta bem mais importante, quanto a nós, do que Fernando Pessoa. Ardia por dentro em lhe falar, agradecendo-lhe a audácia dos juízos, a heresia descomprometida das provocações, a liberdade exemplar, a indiferença olímpica por cálculo e oportunidade. Com tanto prémio, preminho e premão, ele, um dos maiores poetas vivos, nunca fora convocado por nenhum júri para receber o cheque banqueta. Ao invés, com um único livro, mediano e desinfeliz (apesar de contentinho), David Mourão-Ferreira empalmava meia dúzia deles. Como é que este homem, chamado Mário Cesariny, num país assim patético, não havia de ter por inteiro o meu acordo?

Discordara apenas da sua palavra, nos comentários anexos (a partir de Joaquim de Carvalho) à segunda edição de Os Poetas Lusíadas (1987), sobre os saudosistas da Renascença Portuguesa.  O golpe de vista levara, do meu ponto de vista, a uma segunda edição falhada do livro, depois de setenta anos da primeira. Mas do ponto dessa tranquibérnia, em que me envolvera com o editor, ou ele comigo, bem eu me esquecia nesse momento, em nome de tudo aquilo que me ligava a ele, Cesariny, e tanto era. Demais, gostava de conhecer por dentro os pormenores do seu encontro com a poesia e o itinerário aldeão de Teixeira de Pascoaes. Pouco ou nada conhecia desta sua história, com certeza modelar em meio tão complexado e mazorreiro como era e é o português, receoso sempre de passar por provinciano, hoje por periférico, e desejoso de se mostrar, dissimulado e especioso, à la page ou a par de tudo o que faça figura ou figurona de centro.

Apresentei-me a medo. Ele foi de uma gentileza inexcedível, mostrando-se deferente e muito atento às minhas palavras. Falámos sobre Teixeira de Pascoaes. Ele reafirmou-me os juízos que eu já conhecia, apimentando-os com saborosas apreciações. Acabara de publicar o Virgem Negra, onde, minando Fernando Pessoa & companhia, voltava a salvar um Pascoaes de pouca póça cartesiana (v. “Uma Bibliografia”). Estava cáustico e certeiro. Ao homem dos barcos do Chafariz de Dentro ou do Jardim do Tabaco, de cachecol encardido e boné coçado de pala, juntava-se ali um bonecreiro vicentino, de pantalonas e mascarilha.

– O Fernandinho foi um talento literário de primeira grandeza. Tinha talento para dar e vender, mas ficou limitado pela tralha do tempo – disse-me ele. – Pascoaes, pelo contrário, não tem tempo; a Lua dele já lá estava na primeira alvorada do mundo e lá há-de ficar no momento em que tudo acabar. É maravilhoso.

Pouco tempo depois, em 1990, com certeza no mês de Fevereiro, voltei a encontrá-lo na cave da cooperativa editorial Assírio & Alvim, onde ele ensaiava ao piano o poema “Políptica de Maria Koplas dita Mãe dos Homens”. [3] Recebeu-me com a mesma amabilidade e graça. Foi nesse momento que lhe pus nas mãos, ou lhe deixei no bolso do gabinardo, exemplar do Cante Quinto do Francisco Palma Dias, com dedicatória deste, arranhada a preto irregular, num recanto assombrado de Santa Apolónia, antes do embarque (para viagem xamânica) no Lusitânia-Express. Falámos de António Maria Lisboa e Leonardo Coimbra, via Sarmento de Beires (1892-1974), que recebeu em Paris o poeta de Erro-Próprio e teve livro de versos, Sinfonia do Vento (1924), comentado entusiasticamente pelo pensador de A Luta pela Imortalidade (e também por Pascoaes). Contestou Cesariny a possibilidade do pensamento libertário de António Maria Lisboa poder ser aproximado do criacionismo vitalista de Leonardo. Era questão lateral, que decorria dum livreco meu, publicado uns meses antes, 1989, O Mar e o Marão, que lhe fiquei de enviar para casa.

Enviei-lhe o livro e recebi telefonema dele agradecendo. Calava os desacordos em nome da liberdade e do coração, garantia-me ele. [4] Mais tarde, 1995, estampei em edição privada de cem exemplares a Carta a um Amigo sobre Teixeira de Pascoaes e o Cristo de Travassos, cujo destinatário era Luís Amaro, fundador com Raul de Carvalho da revista Árvore (1951-3), de que lhe enviei um exemplar e que mereceu desta vez carta e novo telefonema dele. Estava entusiasmado e queria falar comigo cara a cara. O ateísmo contraditório de Pascoaes, que eu explorava nesse texto, interessava-lhe muito; tinha segredos para me revelar. Pelo meu lado, eu precisava ainda de conhecer com pormenor o encontro dele com a poesia de Teixeira de Pascoaes, pois as nossas falas anteriores haviam sido curtas. Eu nem sequer consciência ainda tinha de como e quando Cesariny chegara ao conhecimento de Teixeira de Pascoaes. Combinámos a minha ida a casa dele para tirarmos tudo a limpo.

 Pus então pela primeira vez o pé na Rua Basílio Teles, número seis. Descobri o prédio, baixo e familiar, numa esquina, na vizinhança próxima do Instituto Português de Oncologia. Tudo aquilo me pareceu conhecido e universal. Subi. O Mário morava no último andar, ao pé da clarabóia de vidro. Era o fim do dia e uma claridade luminosa, que parecia vir do nascer do mundo, caía do alto sobre a escada. Bati. O Mário demorou a abrir. Ajoelhou-se depois, quando me viu. Eu ajoelhei-me também, encantado com aquele homem de cabelo branco que se comportava como uma criança. Pediu-me para lhe pôr a mão na cabeça. E foi assim, desta forma quase sagrada, que eu entrei na sua cardenha escura.

O quarto estava mesmo ao pé da porta da entrada. As paredes estavam por pintar, esverdinhadas e escuras, manchadas de humidade e nicotina. Em frente da porta, encostada à parede, estava a cama de corpo único, que ele me apontou.

– Eis o túmulo – disse.

Fez questão de me mostrar no corredor a estante onde tinha os livros de Pascoaes, emprestando-me ao mesmo tempo um livro de André Breton que lhe agradava especialmente, Entretiens (1952), onde segundo ele o surrealismo e o pensamento libertário se davam as mãos com rara felicidade. Não deixava para trás a revista A Ideia, onde colaborara e em cuja festa fizera questão de participar. E não perdia de vista o corte definitivo de André Breton com o marxismo, qualquer marxismo, e a declaração decisiva, sem tergiversações, depois dos sangrentos acontecimentos de Budapeste, a favor da tradição histórica e de pensamento do anarquismo. No meio, por acaso, soltou-se da prateleira um livro de René Guénon, Formes Traditionnelles et Cycles Cosmiques, que tinha uma dedicatória do António Barahona.

– O António quer ultrapassar o Breton, mas o Breton não se pode ultrapassar, porque também não pertence ao Tempo ­– exclamou ele, lembrando ou não, tanto monta, o que Antonin Artaud e René Daumal, dois próximos, disseram dever ao autor de La Crise du Monde Moderne.

Falámos depois disso durante duas ou três horas, sentados na pedra daquela tumba. Fomos interrompidos apenas uma vez, por uma senhora pequenina, olhos repletos de fogo verde, voz rouca, cheia de fumo, que veio lembrar a hora dos remédios. Era a Henriete, a irmã com quem vivia. Retomámos logo de seguida as palavras com o mesmo entusiasmo. Cesariny falou-me num fio ininterrupto como começou a ler Teixeira de Pascoaes e como o encontrou em Amarante, no ano de 1950. Contou-me ainda como frequentou a sua casa, já no tempo do sobrinho João Vasconcelos e da sua esposa, Maria Amélia, e como o deu a conhecer a António Maria Lisboa, a Ernesto Sampaio, a Cruzeiro Seixas. Ligava Pascoaes, o lugar e a poesia, a casa e o homem, ao surrealismo vivo e eterno, sem escola nem arte, ao mais espontâneo e vivo da imaginação humana.

Eis as suas palavras, tal como as registei na tarde mítica do dia 26 de Dezembro de 1997.

 

NOTAS

1. Fale-se aqui de António Pedro (1909 –1966), que passou por ser, até junto de A. Breton e B. Péret, o fundador do primeiro grupo surrealista português (1947). Também ele deixou depoimento sobre o xamã do Tâmega, a que juntou desenho-retrato do homenageado (Cadernos de Poesia, número dedicado a T. de Pascoaes, Lisboa, III S., fasc. 14, 1953, p. 7). O retrato é vivo (no género prefiro porém os de Sant’Anna Dionísio) e a declaração é curta (cabe em três linhas). Ei-la: O pouco que conheci de Teixeira de Pascoaes levou-me à convicção de que nunca poderia lê-lo com acordo ou desrespeito. Daí a tentação voluntariamente frustrada de saber melhor desse estranho, como da sombra grande de certos pedregulhos em que a sesta não apetece. Saber dela, apenas, para a apontar com um dedo respeitoso, pois, também, para cá do meu Marão, só mandam os que cá estão. O Marão de António Pedro – vê-se – não é o de Pascoaes. No curto-circuito entre a saudade de Pascoaes (tudo neste é Saudade, desde a ponta do pé ao eco da palavra, desde o berço ao epitáfio) e o surreal em português, António Pedro fica por vontade própria de fora. Tenho carta de Luís Amaro (13.2.1995), testemunhando a separação máxima dos dois territórios, António Pedro e Teixeira de Pascoaes. Vem a propósito dar a conhecer  o passo, que é comentário a Mário Beirão, saudosista da muita admiração de Pascoaes (como de resto da do subscritor, que com ele privou, e da minha): António Pedro decorara, na mocidade naturalmente, essa poesia [“Aquela madrugada...” in Lusitânia (1917)], que aliás então renegava, pela ausência de conteúdo, assim como renegava os poetas Beirão e Pascoaes, segundo ele, sempre depois da fase juvenil, pessoas “sem interesse” ... Pascoaes, não creio que fosse desinteressante, apesar de nunca ter tido a fortuna de o conhecer. Beirão, era um homem apagado, de voz baixa, mordacíssimo quanto aos colegas poetas, fumando sempre o seu cigarrinho mortífero, nada literato enfim, mas com espirituais lampejos, evidentemente, na sua modéstia exterior e só aparente: ele sabia o seu valor! Sobre Mário Beirão, deixa Luís Amaro (empregado então na Livraria Portugália, Rua do Carmo, Lisboa) nessa carta: A biblioteca dele era relativamente exígua, e nunca, durante os muitos anos que duraram as nossas relações, o vi comprar um livro, na Livraria Portugália que ele diariamente frequentava. Era também, é certo, muito económico – um homem frugal; talvez preferisse beber um copo, ao fim da tarde, numa taberninha próxima, com o seu inseparável amigo escultor Francisco Franco. Pelo menos, o pintor Paulo Ferreira disse-me uma vez que os surpreendia a sair de lá, dessa taberninha ao fundo da Rua do Carmo, já perto do Rossio... Já perto do centro do Rossio, uns passos à frente, era pela mesma época o café Gelo, onde também, pela goela de Manuel de Castro, e vá lá de Luiz Pacheco (que este era hipersensível ao álcool), muito copo se virou. Sou dos que não vejo assim tanta distância entre a taberna ou taberninha de Mário Beirão (que faleceu em 1965) e os bancos, de pau também, onde se sentaram Raul Leal, Manuel de Castro, Luiz Pacheco, Herberto Helder, Ernesto Sampaio ou António Barahona. Defendo por isso o poeta de Ausente de inimigos (v. “Uma Bibliografia”), mas não menos me disponho a defendê-lo de correlegionários, pois tenho alguns destes por muito mais perigosos que os outros. E se o Gelo teve o seu suicidado de surpresa, João Rodrigues (1937-1967), o magnífico retratista de Cesariny, Pacheco e Raul Leal, também o saudosismo teve o seu suicidado de sopetão, Guilherme de Faria (1907-1929), que cantou na Saudade Minha um desejo – uma saudade de morrer –  que é a abjecção de nascer.

Regressando agora ao ponto, António Pedro [que de resto muito seguiu (e muito se afastou de) Guilherme de Faria] está de costas voltadas a Pascoaes. Isto garante ainda – no mesmo lugar, Cadernos de Poesia (p. 26) – o crítico de arte José-Augusto França (homenageado em 1966 por Cesariny), quando faz esta espantosa declaração, de louvar (por tão sincera): Sei-me inteiramente alheio ao pensamento e à fonte de inspiração poética de Teixeira de Pascoaes. Desta forma, quando se fala, como aqui neste trabalhinho, de Teixeira de Pascoaes, tanto a fase surrealista  de António Pedro como o “surrealismo” (parece que cartesiano) de J.-A. França nem ao menino Jesus interessam. O primeiro é o que é, quer dizer, António Pedro de ponta a ponta (e como tal há-de ser avaliado); o segundo é tão-só, nas mãos de tangaril, o quero, posso e mando. Cesariny negou a autenticidade do surrealismo de António Pedro (o de França só para brincar é bom). De resto –  afirmam as Histórias e as Enciclopédias – o surrealismo foi apenas nele, A. P., uma fase (tão miúda, tão passageira, digo eu, que na carta de 16.10. 1955, que passa por ser a sua autobiografia, ele-próprio, se esquece de todo dele, surrealismo). Assim como assim, parece-nos que em balancete como este deve ficar registado o trilho, mesmo a acabar em apertado beco, que vai dos autores de Apenas uma Narrativa (1942) e Balanço das Actividades Surrealistas em Portugal (1948) a Pascoaes. Do mais revesso Jorge de Sena, que prefaciou a tradução portuguesa de Pedro Tamen dos Manifestos de André Breton, com a facécia moinante que se sabe da parte de Cesariny (v. As Mãos na Água a Cabeça no Mar), e badalejou também o seu tanto Teixeira de Pascoaes, já se falou. O Pascoaes de Sena é presencista e percluso (para não dizer mais).

2. Mais tarde, João Carlos Raposo Nunes dirá a António Cabrita: uma corrida com o Mário Cesariny, por exemplo, é sempre um acto surrealista [in Jornal de Letras, Artes e Ideias (JL), 6 de Dezembro, 1988].

3. Estava em preparação “Marcía”, poesia em Março, que a então cooperativa editorial, decerto pela mão certa e bem medida de Manuel Hermínio Monteiro, promoveu entre 1 e 30 de Março (de 1990). A sessão dedicada ao Surrealismo teve lugar no dia 22 de Março e contou com o piano de Cesariny, a voz de Fernanda Alves e as palavras de Ernesto Sampaio e Perfecto E. Cuadrado. Estive apenas na sessão dedicada ao Saudosismo, a 9 de Março, e nada rememoro a não ser a surriada inconsequente daquele regueirão de sombras betuminosas mas inofensivas. Cesariny estaria lá (ou aliviaria a alma por outras paragens mais capitosas)?

4. Também eu – que me desgostara com as afirmações por ele feitas sobre os poetas da Renascença Portuguesa na reedição de Os Poetas Lusíadas (Assírio & Alvim, 1987) – calei sempre os desacordos. Não lembro qualquer palavra trocada com ele sobre o assunto; como não lembro qualquer ponto cruzado com azedume entre nós. Mesmo quando lhe dizia com garotice que andava ajoujado de saudades, ele olhava para mim benevolente e curioso, sem ponto de adversidade. Assim como assim, quando meti mão (em boa companhia) na edição das Poesias Completas de Mário Beirão, o que aconteceu  em 1997, não pude deixar de levantar a voz na defesa do saudosismo inteiro e singular do autor de Ausente. O mesmo fiz – aqui, por via de João Lúcio, para todo e qualquer saudosismo – na reedição da sua magistral antologia de Pascoaes (2002; v. parágrafo final da “Nota Final do Editor”), sem que ele me fosse à perna por ser livro seu. Hoje lamento não ter abordado com ele o caso, cara a cara, com lealdade, tanto mais que em As Mãos na água a Cabeça no Mar (p. 73) ele fala da Renascença Portuguesa como de um dos mais curiosos fragmentos de que se lembra o português. Demais, foi Cesariny que homenageou em 1982, com o pincel molhado de névoa, o Beltenebros vicentino (“O Donzel do Mar… agora Beltenebros”). Ora o Donzel do Mar, o Amadís de Gaula, sobretudo na vertente solitária do Belo tenebroso (e Belo foi a estreia poética de Teixeira de Pascoaes, em 1896), tal como é soprada e desvelada na tragicomédia de Gil Vicente de 1533 (de resto preitejada por Cesariny em instalação com a edição de 1910 do livro), é o primeiro e o mais antigo antepassado dos saudosistas ao modo de Pascoaes e Beirão. E o que hoje muito lamento é não ter Cesariny aqui, a meu lado, como tantas vezes tive, simplesmente para admirar a energia dos seus traços, a força das suas expressões, a franqueza do seu convívio. Ficou tanto por dizer entre nós. Hoje, se ele regressar (e o milagre tanto é da surrealidade como da saudade), não sei prioridades. Hesito entre pedir-lhe para desratar comigo a miserável vida dos literatos portugueses, mais salafrários do que nunca, hoje que não têm ninguém que lhes esfole a sério a sujidade das canelas, ou pedir-lhe, dando tudo de barato, para irmos passear os dois, sem mais, lá pelas ruas do céu ou de Pasárgada, aos pontapés despreocupados e inofensivos nas tabuletas dos astros. 

Capítulo do livro Teixeira de Pascoaes nas palavras do surrealismo em português, de António Cândido Franco (Editorial Lincorne, Portugal, 2010). Reprodução autorizada pelo Autor.

 

 

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1. Quais são as tuas afinidades estéticas com outros poetas de língua portuguesa?
2. Quais são as contribuições essenciais que existem na poesia que se faz em teu país que deveriam ter repercussão ou reconhecimento internacional?
3. O que impede uma existência de relações mais estreitas entre os diversos países de língua portuguesa?

Todo este material deve ser encaminhado em um único arquivo em formato word, para o seguinte e-mail: agulha.floriano@gmail.com. Agradecemos também o envio de uma fotografia (jpg), assim como de textos críticos, livros de poesia e material jornalístico sobre o mesmo tema. O Projeto Editorial Banda Lusófona é uma fonte de informações que reflete, sobretudo, a ampla generosidade de todos aqueles que dele participam. O acesso a cada país deve ser feito através do selo correspondente.

 

 
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