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				POEMAS 
				  
				
				
				
				POEMA DE BENEFICÊNCIA 
				
				
				  
				
				
				introduza um colapso numa dúvida. recolha-a por elementos. 
				coloque perguntas ao redor. as respostas situam-se entre tempos 
				verbais. um detalhe apaga-se para dar lugar a outro. a memória 
				como um todo. qualquer força para medir é uma inexpressão na 
				arte. não há um só caminho aberto em direcção a um caminho 
				aberto. imperdibilidade é um modo feio de beleza. as coisas mais 
				belas são decíduas porque não assíduas. como aquele fragmento de 
				biografia sem palavras que procura corporalidade no texto. o seu 
				instinto difásico é como um diálogo em que as duas linguagens se 
				friccionam e encontram como que numa orla central em que tudo o 
				resto se autopune até à morte, ficando um quadro de órgãos 
				estrelados. quem entrou aqui introduziu um colapso numa dúvida, 
				recordo. quem tem dúvidas não morre verdadeiramente. recolher 
				elementos de dúvida é uma ocupação como qualquer outra. os 
				ocupados não morrem. a estética escultural do olfacto é mais 
				importante do que as auto-estradas. por isso, vá a pé na 
				imaginação férrea do silêncio. cheire a paisagem que se absorve 
				lentamente ao fundo e que rasga com ternura a ternura do céu de 
				outono. não ande demasiado. quanto mais andar mais esperança 
				surge. surgir esperança é surgir um espelho, e um espelho é 
				difuso apenas na interioridade. intimidade. é como o poema. o 
				poema que mudou. que se deslocou até aqui porque fez uso das 
				possibilidades, probabilidades, matemáticas e deslumbres que a 
				arte oferece. ontem, quando o visitei, o poema era literatura. 
				hoje é mistificação das bases. e ter um pensamento único, 
				convenhamos, é a fruição da vanguarda. a vanguarda converte 
				porque gera metades de tudo o resto. e tudo o que é metade se 
				perde. 
				
				
				  
				
				
				  
				
				
				
				CIDADE-PONTO 
				
				
				  
				
				
				não escrevi um livro em miniatura sob uma lupa falsa. 
				
				
				não pedi qualidade aos clássicos. 
				
				
				não pretendi reparar a eficácia de qualquer sistema humano. 
				
				
				não endossei poemas porque os poemas não são cartas. 
				
				
				não tenho um cativeiro de poetas. 
				
				
				não visitei cidades-poema. 
				
				
				não segui preceitos que se vejam. 
				
				
				não azuleci por pertencer ao céu. 
				
				
				não tive ilusão e coragem para crer na desistência. 
				
				
				não escrevi que o fingimento pode ser um ódio com casca. 
				
				
				não tenho maneiras puramente estéticas. 
				
				
				não tenho processos literários. 
				
				
				não tenho dois corações. 
				
				
				não li masaoka shiki ou matsuo bashō. 
				
				
				não li a crítica para não perder a liberdade e o meu 
				
				
				dom impreparado. 
				
				
				não peguei no tempo e o atirei para dentro do corpo 
				
				
				como células estaminais. 
				
				
				não escrevi sobre a revolução industrial. 
				
				
				não respeitei o meu passado enquanto índice temático. 
				
				
				não estimulei diagnósticos de subtileza grosseira. 
				
				
				não recuperei emoções com a cabeça. 
				
				
				não coloquei questões delicadas no campo da poesia suprema. 
				
				
				não transferi permissões de mim para mim. 
				
				
				não imaginei versos paralelos para prender significados. 
				
				
				  
				
				
				  
				
				
				
				ÚTERO 
				
				
				  
				
				
				procurando a tua cabeça: quero acordar-te, devolver-te 
				
				
				ao meu útero, teu colar planetário, 
				
				
				fazer-te regressar ao sangue de olhos fechados e incubadoras, 
				
				
				soterrar o teu nome no meu nome, o teu movimento 
				
				
				no meu santuário faminto, 
				
				
				a minha culpa e aguaceiros no teu desejo indeciso de 
				
				
				beleza e desvios. dar-me-ás o teu azul 
				
				
				para que o meu vermelho denso o golpeie de ocupação e pele, 
				
				
				para que duas solidões 
				
				
				se aconcheguem e tornem uma só. e depois, mais tarde, 
				
				
				numa meia-noite de existência avulsa, dentro de mim  
				
				
				dirás o sexo, o sexo 
				
				
				como arredores de um lugar belo. 
				
				
				  
				
				
				  
				
				
				
				O IMPREVISÍVEL É REMISTURÁVEL 
				
				
				  
				
				
				{o imprevisível é remisturável. 
				
				
				as horas contradizem os minutos.} 
				
				
				e chorar muito sobre um rio seco, 
				
				
				esperar o espírito dos peixes. 
				
				
				acordar poeticamente um dia 
				
				
				porque a memória se esqueceu 
				
				
				que o esquecimento seria lançado 
				
				
				numa poesia completa e definitiva. 
				
				
				e escrever mais um poema que 
				
				
				esconde tristezas junto de falhas. 
				
				
				e actualiza desactualizando.  
				
				
				inventada escrevo de novo. 
				
				
				escrever é esculpir sem pedra. 
				
				
				e depois procurar uma pedra, 
				
				
				pesar a pedra, e depois o poema. 
				
				
				e ainda pesá-los juntos e verificar 
				
				
				se o peso bate, contradiz ou a pedra voa. 
				
				
				pesar com os olhos e a leitura.  
				
				
				porque o imprevisível é saturável. 
				
				
				remisturável. talvez acorde um dia 
				
				
				adormecida em muito amor, 
				
				
				talvez não seja realmente eu 
				
				
				mas um prazer minúsculo que me derroga, 
				
				
				talvez me resgatem apenas de uma lágrima. 
				
				
				  
				
				
				  
				
				
				
				HIERARQUIA 
				
				
				  
				
				
				o acto de perguntar é uma confiança expectante, 
				
				
				a veterania de um exemplo acaba por matá-lo, 
				
				
				mas pouco disto é essencial para já:  
				
				
				na poesia, enquanto dilúvio da existência, as  
				
				
				influências do poeta são as veias do seu poema homicida, 
				
				
				veias que carregam químicos dispostos livremente  
				
				
				no corpo, mudando de lugar, 
				
				
				subindo aos olhos que lêem e que tentam  
				
				
				colonizar hemorragias  
				
				
				nos ouvidos puramente visuais. 
				
				
				mas haverá sempre alguém na audiência  
				
				
				que pergunta,  
				
				
				que questiona directamente o poema e o seu exemplo,  
				
				
				alguém que interpela a  
				
				
				legitimidade de quem redige e assina o que é, afinal, da 
				natureza, 
				
				
				alguém que pressente muros de berlim, ouvidos, narizes, ilhas,
				 
				
				
				simulacros do dessonhado, do oculto. 
				
				
				e nesse momento eu sorrio e não deixa de me ocorrer 
				
				
				que pressentir nem sempre te levará 
				
				
				à infância de um sentimento. 
				
				
				  
				
				
				  
				
				
				
				INTIMIDADE 
				
				
				  
				
				
				não se trata de uma sede ser capaz de fazer evaporar 
				
				
				um oceano 
				
				
				ou de uma mentira poder ter absoluta razão, ou que 
				
				
				envaidece a abstracção na oxidação do cansaço estético. 
				
				
				e mesmo que não saibamos de que se trata, 
				
				
				sempre diremos que não consiste a fotografia deste momento 
				
				
				em inevitar a obliteração dos exemplos, de uma 
				
				
				consciência que extravia 
				
				
				colégios de identidade, palácios de consolação, relógios 
				
				
				casuais que dão forma aos pormenores do tempo. 
				
				
				encontramo-nos na orla do círculo, na superfície do branco 
				
				
				após o negro que o percorre e mutila como a 
				
				
				invenção que brota ou o poema que transnomina no ventre 
				
				
				e cujos versos mudam de lugar em caso de fogo 
				
				
				e natureza intacta. 
				
				
				sabemos apenas que o presente 
				
				
				é uma prótese do passado, e talvez isso chegue 
				
				
				para que devamos fechar os olhos, contornar os nossos 
				
				
				corpos sem uma só morte sobrevivente, e deixar que 
				
				
				o momento prossiga em completo vazio. 
				
				
				  
				
				
				  
				
				
				
				AUTOBIOGRAFIA 
				
				
				  
				
				
				tanto derivo de uma pequena península de ar hegemónico como 
				
				
				de um rascunho do instinto, mas 
				
				
				apenas a minha superfície é inimputável. 
				
				
				sou anti-contraceptiva, e o que mais tenho são transferências 
				
				
				e fôlegos. isolo palavras e com cada uma resumo, por um lado,  
				
				
				o mundo, por outro, o exaurir de suas fraquezas e antíteses, e  
				
				
				finalmente todos os meus esforços, verbos rudimentares,  
				
				
				movimentos em colapso e belezas sem rendição. 
				
				
				decimar-me no rosto de muitos e nos olhos 
				
				
				de alguns é um objectivo que me borboleta, mudar-lhes 
				
				
				o rosto e alterar-lhes a cor é uma perversão inevitável 
				
				
				nos dias de hoje. há pouco, eu vi o fim de tarde fechar-se  
				
				
				como um prepúcio e sorri da comparação que me renova os olhos.  
				
				
				quem sou talvez seja o resultado de uma propagação contínua, 
				
				
				de um modo de olhar como se dependesse das imagens 
				
				
				que vejo, de um interior que desaparafusa e desutiliza  
				
				
				o eixo do tempo. 
				
				
				de perto, digo-te, os mapas revelam mais lugares, 
				
				
				e sei que a pseudo-posse do ar puro na frieza quente do frio 
				
				
				consagra muita esperança.  |