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				Salvato Telles de Menezes: A parede do céu 
				
				
				
				Júlio Conrado 
				
				
				
				O 
				que surpreende neste livro de versos de Salvato Telles de 
				Menezes é, principalmente, a facilidade de assimilação da coisa 
				poética por alguém aparentemente pouco inclinado a 
				arrebatamentos líricos que tornem irreprimível a sua 
				exteriorização em letra de forma. O que sei, em termos pessoais, 
				da escrita deste autor, conceituado tradutor e reconhecido 
				especialista em literatura norte-americana, não consentiria 
				prognósticos favoráveis à ideia de vir a intrometer-se num 
				percurso intelectual coerente com a indumentária do estudioso 
				austero e do analista rigoroso, o prodígio de uma poesia 
				comprometida com o mundo das sensações. Só quando me foram 
				apresentados os primeiros trabalhos me apercebi, não sem 
				espanto, que também morava ali um poeta. A partir de então fui 
				convivendo com a realidade de ver crescer um criador cuja 
				produção achou ter atingido apuro suficiente para a publicação 
				em livro. São sempre para mim momentos gratíssimos aqueles que 
				me permitem poder assistir ao despertar de uma vocação e 
				participar na proeza do seu voo inaugural.  
				
				
				A poesia de STM é essencialmente uma poesia de aproximações e de 
				proximidades. E o que torna essa poesia íntima de nós é a 
				relação de contiguidade, mais do que o descritivo da posse e do 
				domínio, que na maioria dos poemas se estabelece entre a causa e 
				o seu alvo final. Vejamos, para começar, o encaixe, nas 
				referidas coordenadas, de uma posição tão vincada, no que 
				respeita às influências, como aquela de que o autor se reclama.
				 
				
				
				Creio não ser despiciendo agrupar em quatro grandes módulos 
				temáticos os poemas reunidos neste volume: a questão das 
				influências, o amor/erotismo, os lugares, e um território 
				híbrido onde cabem outras categorias de afectos, rimas populares 
				e duas ou três composições de cariz filosófico. É uma evidência 
				o referencial de quem possui uma sólida cultura clássica 
				requintada por outros saberes que a experiência vivida naquela 
				foi dissipando. Não se defende aqui a trivialidade da palavra 
				nem a vulgaridade do conceito. Nem se descarta o apelo à lição 
				dos mestres. A viagem que Salvato Telles de Menezes propõe a 
				quem se sinta intimado a lê-lo, assenta num itinerário que, 
				embora sem recusar a erudição, aspira à lisibilidade da paisagem 
				humana e à clareza semântica que a torne transparente no acto da 
				recepção. Todas as premissas desta poesia, sejam as de carácter 
				metafórico, alegórico ou de ilustração simbólica das 
				“verdades naturais” que inspiraram um ou outro poema mais 
				“hermético” visam, como objectivo superior, criar as sínteses de 
				universos particulares em que cristalizem a límpida marca de um 
				tempo, uma situação específica ou uma identidade. 
				
				
				São deste modo convocados para o festim lírico vultos da cultura 
				universal proeminentes no imaginário do autor – Shakespeare, 
				Borges, Carlos de Oliveira, Donne – e personagens não 
				menos relevantes – Penélope, Ofélia – que se movimentam em A 
				Parede do Céu, menos como influências com intervenção 
				directa no comportamento dos textos do que em subtis alusões 
				apelando a cumplicidades volvidas em público tributo de 
				STM aos míticos precursores que reverencia. 
				
				
				No entanto, estando esses vultos influentes de visita, não é 
				inflacionada a sua presença nem ornamentados especialmente para 
				o efeito os aposentos onde repousam o olhar sobre os méritos do 
				discípulo inusitado. Talvez uma mais sentida saudação a Carlos 
				de Oliveira, venerado pela bitola de Mestre, constitua a grande 
				excepção.  
				
				
				Salvato, ao contrário de muitos – da esmagadora maioria, talvez 
				– dos seus pares, não esconde as influências. É uma evidência 
				que põe questões interessantes. Ao arrepio do que é usual numa 
				praça onde o disfarce prepondera, a ausência de disfarce e, mais 
				ainda, a confissão de uma preferência, o acto de assumir o 
				estigma de uma referência inelutável, convergem para que fique 
				no ar certo odor a escândalo em resultado do comportamento de 
				quem tão abertamente se expõe à censura pública. Que história é 
				esta de venerar explicitamente a fonte onde se vai beber? Que 
				desplante é este de se lhe referir o nome e tudo? Que 
				imprudência impele alguém a declarar um epigonismo que valeria 
				talvez a pena deixar tacticamente em banho-maria? Vamos por 
				partes: essa dependência nem é de conteúdo subserviente nem é 
				esteticamente um desperdício. Não estamos perante um vulgar 
				gesto mimético. Também não estamos ante uma qualquer variável 
				paródica do mimetismo, isto é, uma brincadeira em que o traço 
				caricatural cicatrizado no texto pudesse alterar o quadro 
				humoral do discurso poético. Parece-me mais justo falar de jogo. 
				Um caldeamento de aquisições culturais fortemente assimiladas, 
				temperado pela humildade do discípulo e pelo gozo deste último 
				em dar voz adulta ao cruzamento de sensibilidades que formaram 
				uma personalidade intelectualmente rica. Uma mistura. Mas uma 
				mistura produtiva. Uma mistura, como veremos, da qual emergirão 
				proveitos para leitores e criador.  
				
				
				O estímulo pedagógico do Mestre vem a gerar uma fala metamórfica 
				que se singulariza tanto mais quanto menos simulado é o convite 
				à aventura de alargar os horizontes da escrita até que se torne 
				bem clara no texto uma estrutura autónoma. Aí se determinará, no 
				hóspede, o grau de influência do estilo anfitrião. 
				
				
				Por ora, o que temos é o agradecimento do discípulo ao pai 
				poético: 
				
				
				
				Esta palavra 
				
				
				
				de letras infirmes 
				
				
				
				dor 
				
				
				
				ardendo 
				
				
				
				no vale do peito 
				
				
				
				lavrado a escopro; 
				
				
				
				fogueira  
				
				
				
				esquecida do tempo: 
				
				
				
				Mestre, 
				
				
				
				este poema 
				
				
				
				tão imperfeito 
				
				
				Todavia, parte substancial da experiência humana que o poeta 
				considera digna de ser contada diverge em muitos pontos da do 
				autor-referência, o que, sem deteriorar o pano de fundo 
				sentimental da homenagem, implica que numa dimensão 
				lógico-simbólica as diferenças se acentuem de maneira a 
				consolidar-se o que no processo é irrecusavelmente singular. O 
				fenómeno das influências, tão nítido, define-se a partir de 
				situações concretas de convizinhança: o facto de Salvato e 
				Carlos de Oliveira terem vivido na mesma rua; a participação 
				diária, ou quase, na tertúlia em que o Mestre pontificava; a 
				cultura de objectividade reciprocamente perfilhada, são tudo 
				razões cuja bondade é susceptível de ser chamada a terreiro em 
				abono de uma literatura que se quer perto do que a fomenta, 
				invulnerável a truques já rodados por outras mediações 
				exemplares, genuína na expressão de motivos e assuntos. 
				
				
				Nesta medida, a sentida saudação a Carlos de Oliveira e o 
				ostensivo reconhecimento da improbabilidade de atingir patamares 
				de engenharia poética em grau semelhante aos desempenhos do 
				renomado autor de Micropaisagem, deixam passar a ideia de 
				quão vulnerável se mostra STM ante o esplendor da obra 
				celebrada, assumindo-se ele sem reservas como discípulo 
				“imperfeito” de CO. Salvato cultiva, aliás, à semelhança do 
				Mestre, o verso livre de sintaxe curta e sentido compacto, 
				dedicando esmerada atenção ao “pormenor”, à “micropaisagem”. Ao 
				contrário da poesia que louva os bons velhos tempos e tende a 
				transformar os momentos excepcionais do vivido numa liturgia de 
				sagração crepuscular desses instantes, aqui, temos o momento 
				intacto, a acção interagindo com a emoção em directo, quer no 
				passado presentificado, quer no presente agilizando a sua 
				própria urgência ao encontro do fascínio do que palpita e 
				respira nas imediações e de onde o leitor recebe a emoção de que 
				precisa para se solidarizar com o que lê. 
				
				
				Nas composições de registo erótico, a poesia de STM afasta-se do 
				aprendido quando exprime a partilha amorosa através da exaltação 
				do feminino em níveis de explicitude e ousadia jamais 
				encontrados na poesia de CO. O discípulo “liberta-se” do 
				precursor ilustre convocando um vitalismo invasivo que catapulta 
				o significado para representações realistas de figurino 
				passional. É neste domínio que o poeta mais coerentemente se faz 
				ouvir enquanto produtor de um recado original, banindo do corpo 
				do poema soluções de eficácia duvidosa quanto à caracterização 
				do apetite primordial e das iniciativas de fascínio que o 
				sustentam.  
				
				
				Nenhuma das disciplinas do enamoramento está ausente do livro. A 
				abordagem, o coup de foudre, as técnicas de engate, a 
				promessa, a plenitude, a decepção, e até uma ousadia epistolar, 
				estão calibrados para se entremostrarem segundo uma hierarquia 
				de experiências que o autor vai desvendando sabiamente com 
				grande destreza verbal, de tal maneira lhe é intrínseca a 
				necessidade de valorizar perante o mundo o seu reportório de 
				sedutor, sempre com a mulher no centro geométrico de toda a 
				actividade amadora.   
				
				
				A desenvoltura no trato da sensualidade surge amiúde valorizada 
				por elementos “naturais” embutidos no verso para encarecer o que 
				é genuíno e resistente: “água de metal”, “fulgurantes pedras”, 
				“leito de leite”, entram na composição do poema Corpo 
				como aditivos vitalistas capazes de dar à natureza da relação 
				amorosa a fisicalidade do que na natureza tout court é 
				matéria confiável, garantia simbólica, porventura, da 
				perpetuação do afecto, ou a pureza aristotélica do alimento 
				perfeito.  
				
				
				Noutros casos, p. ex. no poema Mais, o momento captado 
				dispensa adereços puros ou outros: é todo ele um plano 
				cinematográfico rodado com escrúpulo pelo cineasta respeitador 
				do guião, uma imagem que dispensa palavras a mais e vale pelo 
				mostrado, sem que o traço subjectivante dos dois últimos versos 
				altere a forte visualidade do poema, inquestionavelmente um dos 
				mais belos da colectânea. 
				
				
				
				Estendo a mão 
				
				
				
				projecto de carícia 
				
				
				
				na penugem da tua nuca. 
				
				
				Afastas o pescoço
				
				
				sem pressa
				
				
				
				arqueias os ombros 
				
				
				
				colocas 
				
				
				
				os seios  
				
				
				
				contra a minha boca ávida. 
				
				
				
				Não sei nomear isto:  
				
				
				
				mas é mais do que ternura. 
				
				
				O efeito de proximidade (mas não de consumação) é, pois, muito 
				evidente nos poemas de amor. Expressões como “ao calor da minha 
				mão”; “toco com estudada parcimónia”; “derrama-se dos dedos para 
				o meu peito ferido”; “cruzaste-me as mãos sobre o coração”; 
				“traçaste com a mão tão trémula”; “Num frémito de cor os teus 
				cabelos velaram-me os olhos”; “o corpo torna-se fluido, 
				esquivo”; “a saia desce até ao tornozelo”; “Procuro… sob a mesa 
				a doce curva do teu joelho”. “As tuas pernas, as minhas mãos 
				toscas sobre a pele do nylon” – captam vibrações nos arredores 
				do objecto da paixão como uma teia onde ele certamente acabará 
				por se deixar fazer prisioneiro mas depois do poema e muito para 
				lá do poema. De momento – enquanto fruidores do texto – não 
				somos convidados a aceder ao que a paisagem esconde de 
				conclusivo mas tão só a demorar o nosso voyeurismo no modus 
				operandi que não é ainda, por conseguinte, o do conquistador 
				com a praça tomada e sim o do aspirante a essa proeza revelado 
				pela contínua pressão exercida sobre os mecanismos de activação 
				do desejo. À ideia subjectiva de aproximação corresponde quase 
				sempre um movimento físico de aproximação. Em vários dos poemas 
				há um efeito de deslocação que se resguarda como cosa mentale 
				reflectida intensamente no que na escrita é exercício do olhar e 
				linguagem gestual, tendo sempre por fito o estabelecimento de 
				situações concretas de proximidade. Seja no domínio da 
				persuasão, seja em franjas de um erotismo voluntariamente pouco 
				alusivo, seja no que respeita ao grau de verosimilhança 
				ambicionado para a mensagem da memória estimulada pelo 
				referente, a itinerância rumo ao outro para lhe vencer a 
				resistência suspende-se no momento da realização, o que não quer 
				dizer que esta não venha a ocorrer. O tom optimista do enleio 
				sugere-o, sem dúvida. Aproximação e proximidade são duas noções 
				complementares que apesar de se articularem bem, não conduzem 
				necessariamente à intimidade da posse – no texto poético. 
				 
				
				
				Enfim, pode dizer-se que neste livro há intriga amorosa para 
				todos os gostos, desde um erotismo exacerbado até à exaltação da 
				delicadeza e da sensibilidade com que são oleados os motores da 
				paixão, com pleno domínio da escrita depurada e rigorosa, mas 
				nem por isso menos repleta de vibrações, que dá unidade a toda a 
				obra. 
				
				
				A terceira grande linha de força – os lugares – acaba por estar 
				relacionada com as demais, quer porque a componente afectiva é 
				determinante na definição do grau de importância que cada lugar 
				ocupa no imaginário do autor, quer porque a diferenciação 
				geográfica manifestada nalgumas páginas se prende em boa medida 
				com o uso que o poeta faz das subcategorias dessa componente. 
				Assim, a aldeia natal, no Alto Minho, colhe das reminiscências 
				da infância uma fatia substancial de magia que provém igualmente 
				do mergulho na história familiar e onde entronca a homenagem a 
				pais, filho e irmãos; o Alentejo tem a ver, naturalmente, com as 
				origens da “moura encantada” da dedicatória de um dos poemas; o 
				Guincho aparece por via do estatuto domiciliário e ainda por 
				razões de trabalho, amor, amizades particulares, evasões (como a 
				descrita); Moscovo remete para solidariedades cinéfilas (Ana 
				Padrão, Nikita Mikalkov); as festas da Senhora da Agonia, de 
				Viana do Castelo, são evocadas para trazer a terreno os 
				zabumbas, “Atroando os ares com a batida / das tensas peles dos 
				bombos.” São os locais que a memória do poeta privilegia para os 
				reabilitar e lhes destinar o seu verdadeiro “lugar” – de eleição 
				– no memorial de que são parte. 
				
				
				Assim, no registo autobiográfico é curioso acompanhar o modo 
				como um poeta marcado por forte ligação ao real objectivo 
				funciona quando tem de lidar com a reminiscência, a recordação, 
				a evocação, trabalhando para que estas não se convertam em 
				conteúdos hostis à materialidade do que as justifica. É então 
				conferido ao referente realce nuclear. A sensibilidade forja a 
				sua linguagem a partir de elementos de uma outra linguagem que é 
				a que o olhar apreende ao buscar significações no vestígio 
				iconográfico. Repare-se, por exemplo, no poema “Fotografia 
				familiar”, no qual se pressente a lição de Roland Barthes: a 
				triagem dos aspectos das quatro pessoas fotografadas, incluindo 
				os adereços que até certo ponto as identificam são precedidas de 
				um mal-estar, de uma inquietação, que o poeta procura resolver. 
				Uma secreta intenção – só nas duas últimas linhas desvendada – o 
				move. Procura detectar as marcas que poderiam trair uma tensão 
				entre os componentes do grupo. Ora a investigação conclui pela 
				inexistência de qualquer tensão na busca realizada “no meio de 
				tanta folhagem”. 
				
				
				Conquanto não seja lícito retirar-se da lição de Barthes uma 
				relação directa de causa/efeito, ou no sentido de que possa ter 
				havido conexão intertextual, o certo é poder concluir-se pela 
				existência de algumas afinidades na abordagem da fotografia 
				entre a perspectiva do intelectual francês e a do poeta, ainda 
				que aquelas conduzam a destinos diferentes. A afinidade 
				principal é a de que ambos pretendem animar os seres 
				imobilizados expostos à sua curiosidade, procurando um puctum 
				(segundo Barthes: aquilo que fere), que fundamente o interesse e 
				coloque as respectivas leituras no plano de um “valor superior”. 
				No entanto, Barthes procura criar uma teoria a partir de 
				informações nas quais previamente localizou “aquilo que fere”. 
				Isto é, ele opera intelectualmente segundo uma realidade em que 
				o pormenor inquietante já está controlado ao ponto de poder 
				dissertar sobre ele como uma “demonstração”. Salvato, ao invés, 
				sendo porventura portador do saber teórico, usa-o para uma 
				investigação inédita e aproxima-se da foto para encontrar nela o 
				seu punctum, o detalhe forte cuja premonição o 
				desassossega. Ou seja: o que para Barthes é uma certeza (um 
				factor de distúrbio identificado à volta do qual tece um 
				conjunto de considerações), para Salvato é uma suspeita: a 
				possibilidade de no decurso do exame minucioso dos traços 
				caracterológicos das figuras imobilizadas na foto achar um ar de
				stress, uma torção de semblante, um franzir de testa, um 
				descuido não encenado de indumentária, capazes de levarem à 
				identificação de mal dissimulados conflitos entre os membros 
				daquela família. O que, naturalmente, conferiria ao retrato um
				superavit de subjectividade não descortinável à vista 
				desarmada. Mas nem à vista armada tais avisos de fractura são 
				detectados. O que prevalece é uma paz, uma tranquilidade, uma 
				cordialidade em relação ao mundo, que o indagador regista no fim 
				do texto com algum alívio e sem dúvida comovido. A mensagem 
				iconográfica veicula uma imagem de geral bonomia, uma imagem 
				feliz. O resultado da aproximação acaba por ser de certo modo 
				decepcionante em função do défice de intriga apurado mas 
				compensador pela representação de harmónico equilíbrio 
				psicológico e de conforto existencial que o que é dado a ver 
				transmite. Ao sentimento de desconfiança levemente insinuado 
				sucede o íntimo regozijo por nada na foto corroborar o 
				sobressalto de uma qualquer nuvem de mágoa emergindo de 
				contenciosos subliminares. Para o leitor/fruidor que experimente 
				fazer a recepção deste poema como uma fotografia, o punctum
				encontra-se na ansiedade subjacente à averiguação, o que 
				pressupõe a participação do próprio poeta no grupo fotografado, 
				uma vez que não deixa qualquer indicação de que ele próprio seja 
				um dos quatro – ou o contrário. Todavia, esta hipótese cria uma 
				nova ambiguidade: o poeta está “dentro” da fotografia quando a 
				observa ou está “fora” e só entra nela quando o leitor/fruidor o 
				empurra para dentro do grupo? Os quatro fotografados são 
				acrescentados de uma quinta pessoa, ou não há quinta pessoa mas 
				tão só o desdobramento de uma delas? E será este puctum 
				inesperado o causador da angústia do receptor ou antes um jogo 
				de espelhos cujos parâmetros de significação consagram outras 
				categorias de entendimento do que está verdadeiramente em causa? 
				Poderíamos especular um pouco mais sobre este planeta novo 
				descoberto na órbita do poema, tentando encontrar respostas para 
				questões por ele levantadas, mas o importante agora é realçar a 
				riqueza intrínseca da semântica do texto. Este, ao conter na sua 
				génese um potencial de enigma superior ao que à primeira vista 
				seria suposto lá estar, aponta para a complexificação da 
				mensagem muito provavelmente acima, também, do patamar de 
				expectativa do mensageiro.  
				
				
				Gostaria ainda de ir buscar ao território afectivo mapeado duas 
				ou três nótulas com as quais começo a pôr fim a esta breve 
				análise de alguns aspectos de A Parede do Céu. É no plano 
				da vinculação do indivíduo à sua geografia sentimental que no 
				livro se nos revela o intimismo mais sincero. Acede-se, então, 
				ao mais despojado testemunho que faz da terra da infância e da 
				adolescência vividas em família o cerne da formação do carácter 
				e a preparação do homem futuro. Vejamos a recorrente presença da 
				chuva, de quase todas as vezes em que a memória do poeta se 
				detém no Minho natal em termos evocativos, e o também recorrente 
				e explícito apreço pelas influências literárias. É ponto assente 
				que no Minho chove copiosamente. Ou melhor: quando o enfoque do 
				poeta se demora na sua “realidade” minhota, chove a valer. O 
				ponto de partida para o culto da chuva associado ao binário 
				infância/adolescência parece ter sido o célebre poema de T. S. 
				Eliot A Terra devastada. Nesse famoso poema, a chuva tem 
				uma função regeneradora quando em contacto com a terra enquanto 
				ventre materno fértil, mas é-lhe igualmente atribuído pouco 
				valor ao correr inutilmente sobre a rocha improdutiva, voltando 
				a ser desejada sempre que a sua escassez ultrapassa os limites 
				do razoável, contribuindo tal carência para a não renovação a 
				tempo e horas da energia essencial à vida e a consequente 
				descrença no seu poder vivificante. Sensível à destreza 
				imaginativa e ao matizado reportório vocabular da composição 
				eliotiana (presente, por exemplo, no poema “Mar”: Boa-noite, 
				boa-noite, doces damas), Salvato reserva à chuva, na sua 
				poesia, um destino positivo, dando-lhe um enquadramento oposto 
				ao que a “fonte” inspiraria – uma persistente toada céptica - se 
				fosse tomada literalmente a rigor. Em Salvato a evocação da 
				chuva está ligada às noções de descoberta e de crescimento 
				indissociáveis do seu próprio processo de gradual reconhecimento 
				do mundo. O louvor da água importa a quem se sente parte de um 
				todo em que o elemento fundador induz recordações ora agrestes (Agora 
				só a memória desse terror infantil num lugar não muito distante) 
				ora amáveis (É este que recorda essa época, tão anacrónica, 
				de maravilhosos achados no perfeito intervalo das nuvens) 
				mas sempre cúmplices como exorcismos lúdicos de índole afectiva. 
				Enquanto que no poema de Eliot a tónica dominante é a criação de 
				uma atmosfera depressiva a que a chuva e o vento conferem 
				amplitude, nos poemas de Salvato a aspiração a um estado de 
				serenidade – recompor o (íntimo) movimento da infância – 
				dirige aquilo que procura, associado a outros referentes da sua 
				particular devoção como a figueira-da-índia florescente, o 
				castanheiro ou a colmeia onde é sentida a azáfama no interior 
				das alças. 
				
				
				Esta poética procura alcançar um estádio de serenidade e de 
				harmonia com os valores da tolerância e da cordial 
				inteligibilidade do mundo pela mediação fantasmática do que terá 
				sido uma infância feliz. Quando o consegue, proporciona-nos 
				momentos de comprazimento puro. Bastará demorarmo-nos nos poemas 
				evocadores desse período fundamental da formação do homem para 
				que se torne claro o seguinte: mais do que a lição dos mestres, 
				a lição da descoberta da vida e dos fios com que é tecida, é 
				pessoal e intransmissível. Não há seara alheia que lhe faça 
				sombra.  
				
				
				Quanto ao quarto grande bloco de poemas, aquele em que 
				encontramos o homem culto que Salvato é, a sua diversidade 
				corresponde à aquisição de saber feita ao longo de “cinquenta e 
				cinco anos” em várias instâncias de conhecimento, que tanto 
				podem ser literárias (veja-se o poema Saga inspirado na 
				versão borgeana de uma batalha na Inglaterra), como esotéricas 
				(leia-se o poema ORDO AB CAOS), ou decorrentes da sua atenção às 
				artes (repare-se nos poemas dedicados a João Jacinto, José 
				Rodrigues, entre outros) e da curiosidade com que interroga o 
				mistério da escrita poética em fase processual (no poema 
				Segredo, p. e.). A par desta erudição o poeta convive 
				salutarmente com a trova popular, com a cantiga de maldizer e 
				com certos mundos de dor colectiva que trazem à superfície a 
				qualidade de cidadão interventivo que em si nunca se perdeu. 
				
				
				E em jeito de autoretrato:  
				
				
				Interroga-se. Quem é ele para se atrever a ponderar o peso da 
				areia do tempo? 
				
				
				Talvez haja, num recanto mais escondido do seu espírito, algum 
				pesar; coisa muito leve: um arfar de frustração tão subtil que 
				não chega a ser sopro.  
				
				
				Nunca foi sôfrego e soube ser tolerante, é o seu consolo. 
				
				
				Viveu. 
				
				
				Com esta chamada de atenção para quatro linhas de força, na 
				poesia de Salvato Telles de Menezes, que me parecem realmente 
				significativas, espero ter transmitido com suficiente clareza a 
				ideia de que A Parede do Céu é um excelente livro. Muitas 
				das suas páginas constituem, sem dúvida, reptos tanto para 
				aqueles a quem mais seduza o lado encantatório de certos poemas 
				como para os que prefiram a especulação intelectual que vários 
				outros propõem. 
				
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