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				Um 
				encontro com Pedro Tamen 
				
				  
				
				
				Floriano Martins | Rosa Alice Branco 
				
				  
				
				FM 
				Concordo quando afirmas que “a memória é também ela uma espécie 
				de morte”. Penso em Roberto Desnos, ao dizer que “o caráter 
				fugitivo do amor é também o da morte”. De uma maneira ou de 
				outra, toda a intensidade do viver nos conduz por caminhos 
				irrepetíveis. E creio que Desnos referia-se a fugitivo neste 
				sentido. Em contraposição, vivemos em uma sociedade que tem 
				adotado como método a repetição. Como tens lidado com essa 
				contradição? 
				
				PT 
				A memória é para mim uma espécie de rendição perante a 
				inexistência do passado. Charles Péguy, que, além de uma figura 
				fascinante, foi um poeta que muito me tocou em determinada fase 
				da minha vida, e que hoje em dia é quase completamente ignorado 
				(ele foi, e é, o contrário do “politicamente correcto”), disse 
				qualquer coisa como isto: o presente é algo que quase não existe 
				(de tão instantâneo), situado entre o passado, que já não 
				existe, e o futuro, que ainda não existe. Ora, a memória é morte 
				porque re-presenta o passado que, afinal, é radicalmente nada. A 
				repetição, que, como se diz, é um “tique” da sociedade em que 
				vivemos, é apenas uma re-produção, o que é consolador e dá 
				segurança. Não tenho nada contra ela. 
				
				  
				
				FM 
				Também te referes ao “alargamento do sentido das palavras”, 
				quando mencionas a essencialidade de pô-las em jogo, em atrito. 
				Nessa relação é que se vai alcançar um sentido outro, não há 
				dúvida. Recordo que René Magritte dizia que “o que é preciso 
				pintar é a imagem da semelhança”. Ao estabelecer esse jogo 
				amoroso entre as palavras, qual sentido buscas para tua 
				existência? 
				
				PT 
				O sentido da existência do poeta, quando e na medida em que o é, 
				consiste em dizer, em dizer mais, em revelar, a si 
				em primeiro lugar, e aos outros seguidamente, que coisas são as 
				coisas, e os sentimentos, e as relações entre umas e outros. O 
				que no meu caso pessoal é utilizado como instrumento de 
				revelação, ou desvelação, é a desesperada tentativa de passar os 
				umbrais do dicionário e de dilatar o conteúdo semântico das 
				palavras pela exploração das suas outras dimensões (nomeadamente 
				sonoras, contextuais, históricas), desse modo procurando 
				transformá-las em linguagem, em linguagem tendencialmente plena. 
				
				  
				
				FM 
				Esse dueto essencial em tua formação: a educação clássica e a 
				descoberta do Surrealismo, de que maneira poderíamos situá-lo em 
				uma perspectiva portuguesa, ou seja, remetes a uma educação 
				clássica considerado a cultura de teu país, o mesmo valendo para 
				a presença do Surrealismo em Portugal? 
				
				PT 
				Por razões biográficas (e, reconheço-o hoje, de inclinação 
				pessoal) li durante a minha adolescência os clássicos 
				portugueses (os outros vieram mais tarde) de um modo bastante 
				exaustivo para a idade que tinha. E foram esses os instrumentos 
				que me serviram para os meus pobres primeiros vagidos 
				literários, até à descoberta, súbita e global, da modernidade em 
				geral e do surrealismo em particular (falo, nessa altura, do 
				retardado surrealismo português; o outro, as fontes, vieram 
				também mais tarde). E desde aí não mais abandonei o casamento em 
				mim entre, por um lado, a paixão da regra e, por outro, a paixão 
				do desregramento, casamento indissolúvel e na prática não 
				dissolvido, apesar dos mui variados avatares por que tem 
				passado. 
				
				  
				
				FM 
				Suponho que consideres complementares as atividades como poeta, 
				crítico e tradutor. Sendo as três tão intensas, se poderia 
				pensar que alguma tenha te marcado a vida acima das demais? 
				
				PT 
				A actividade de “crítico”, quase não a tive, não a tenho, e 
				recuso activamente qualquer vislumbre de vir a tê-la; não que, 
				por princípio, tenha algo contra a crítica, mas porque pura e 
				simplesmente me conheço já o suficiente para recusar esse 
				chapéu, que definitivamente não me quadra. Mas, efectivamente, 
				ser poeta e tradutor são coisas para mim complementares, 
				indissociáveis, e que viverão a par na minha vida até ao fim. 
				Nenhuma das duas actividades me marcou mais que a outra, na 
				exacta medida em que brotam ambas da mesma obscura necessidade 
				de descobrir ou de desvelar. Só que, na tradução, o que se 
				procura descobrir e desvelar não é o mesmo e total universo que 
				a poesia persegue – mas, mais humildemente, o universo do Outro, 
				do Autor. Costumo dizer que a tradução é um permanente (e 
				transformante) exercício de humildade. 
				
				  
				
				FM 
				Começaste a publicar teus poemas por conta própria. As edições 
				do autor ainda são predominantes em Portugal ou já se pode 
				encontrar hoje um ambiente mais propício para a publicação de 
				poesia? 
				
				PT 
				Desse ponto de vista da edição de poesia, muita coisa mudou em 
				Portugal desde que comecei a publicar. As editoras dividem-se 
				hoje, mais do que nunca, em muito grandes e muito pequenas, e as 
				grandes, de um modo geral, já nem sequer se dão ao “luxo inútil” 
				e dispendioso de publicar poesia, particularmente a poesia dos 
				jovens. Essa tarefa fica para os médios, pequenos e muito 
				pequenos editores, que muitas vezes – e é interessante notá-lo 
				-, são eles mesmos poetas, ou inspirados por poetas. Nos anos 
				cinquenta, a rejeição da poesia por parte da generalidade dos 
				editores era a mesma, e havia menos pequenos editores para os 
				poetas. Daí que houvesse, mais do que hoje, penso eu, as 
				“edições do autor”. A diferença principal estará, a meu ver, 
				entre os poetas-artesãos da edição nos anos 50 e os 
				poetas-pequenos-empresários da edição dos nossos dias. 
				
				  
				
				FM 
				Crês possível distinguir, dentre aqueles poetas portugueses 
				nascidos a partir dos anos 50, alguns nomes que sugiram, 
				confirmando ou renovando, algum aporte substancioso às gerações 
				anteriores? 
				
				PT 
				Quando se diz (disse-o Eugénio de Andrade) que o século XX é o 
				“século de ouro” da poesia portuguesa, subentende-se (ou 
				subentendo eu) que a renovação da nossa poesia não sofreu 
				interrupções ao longo de todos esses anos e que o nível médio de 
				qualidade se manteve elevado. E entre os poetas que começaram a 
				publicar na primeira metade da década de 70 (quando, no dizer de 
				Joaquim Manuel Magalhães, surgiu uma “nova sensibilidade”) e 
				depois disso, mesmo nos anos mais recentes, há vários casos 
				notáveis de reatamento, por um lado, e de reinvenção, por outro, 
				do “corpus” poético herdado das gerações anteriores. 
				
				  
				
				FM 
				Terias algo a dizer no sentido de uma aproximação possível entre 
				dois continentes, América e Europa? De que maneira concebes essa 
				relação entre novo e velho mundo? 
				
				PT 
				O chamado “novo mundo” é para mim, na medida em que o conheço, 
				objecto de permanente fascínio, por caldear heranças culturais 
				diversas, de modo diverso de lugar para lugar, mas com 
				resultados sempre surpreendentes para o homem do “velho mundo”, 
				que ao mesmo tempo nele se reconhece e nele se perde. Suponho 
				que algo de mais ou menos análogo se passa com o homem do 
				continente americano ao deparar com a Europa. Num sentido ou no 
				outro, estamos perante aventuras que é preciso generalizar e 
				aprofundar. 
				
				  
				
				  
				
				
				
				II 
				
				
				  
				
				
				
				RAB 
				Numa entrevista à Revista Ler considera que não 
				“ossificou” Os Lusíadas ao dividir as orações; pelo 
				contrário, “o truque, a chave foi descobrir a forma de desarmar 
				os elementos da frase. Dividir as orações apenas enriquecia o 
				nosso conhecimento de todas as tonalidades do texto”. 
				 
				
				
				No seu trabalho de tradução sinto que a encara também enquanto 
				enriquecimento exaustivo das tonalidades do texto, pelo que a 
				equivalência semântica não pode nunca apagar a fruição sonora do 
				texto na língua de chegada. 
				
				PT
				
				
				É verdade que a abordagem de um texto como uma sequência mais ou 
				menos estruturada de unidades semânticas, se bem que contribua 
				decisivamente para uma aguda penetração dos seus recônditos 
				segredos e matizes, não permite por si só, se por aí se ficar, 
				uma apreensão total (se é que a uma apreensão total alguma vez 
				poderemos aspirar) de todas as riquezas e virtualidades do dito 
				texto. 
				
				
				Na obra de tradução, a decifração das estruturas semânticas, as 
				quais, no trabalho em que estou actualmente empenhado (Em 
				Busca do Tempo Perdido, de Marcel Proust) são, como se sabe, 
				extremamente complexas, é, mais talvez do que em qualquer outro 
				objecto de estudo ou de trabalho, absolutamente essencial, e sem 
				esse tipo de laboriosa análise é de todo em todo impossível 
				qualquer versão. Mas de modo algum podemos renunciar, por mais 
				exaustiva que tenha sido essa tarefa analítica, e por mais 
				efectivamente exaustos que tenhamos ficado depois dela, a um 
				outro tipo de abordagem e a um outro grau de ambição, que é, 
				precisamente, a detecção na língua de partida - e, sobretudo, a 
				“digestão” na língua de chegada - de todos os outros elementos 
				(aliás, inseparáveis da aludida estrutura) que compõem o texto 
				na sua integralidade - e entre os quais avultam (e como!) os que 
				perfazem a sua ressonância ao nível do ouvido: do ouvido 
				exterior, é claro, e daquele a que chamarei ouvido íntimo. 
				
				
				  
				
				
				
				RAB 
				Não deve ser por acaso que usa a expressão “tonalidade do 
				texto”. A sua poesia parece obra de um compositor de palavras, 
				no sentido musical e lumínico do termo: a sonoridade como música 
				e luz do poema. 
				
				PT
				
				
				Deduz-se do que lhe disse que para mim é ponto assente que a 
				“tonalidade” é uma valência imprescindível na apreciação de um 
				texto literário, e particularmente poético. E digo tonalidade a 
				pensar em cores e luzes, mas mais ainda a pensar em sons. Daí 
				que, por instinto, ou por “deformação profissional” de leitor 
				que por acaso também escreve, procure jogar naquilo que escrevo 
				com a gama de tonalidades de que disponho no momento concreto da 
				escrita – isto é, com aquelas que surgem conaturais ao acto de 
				escrever aquilo. 
				
				
				  
				
				
				
				RAB 
				Os seus poemas são percorridos por uma ironia desencantada, como 
				quem busca pistas que acabam por conduzir apenas a uma ausência. 
				O diálogo de solidariedade proposto ao outro, ou ao mundo, fazem 
				do poeta Pedro Tamen uma espécie de Sísifo por conta própria? 
				
				PT
				
				
				Tem-se dito que esse desencanto, ou essa ironia às vezes cruel e 
				outras simplesmente melancólica, é mais evidente nos dois 
				últimos livros. Eu não seria tão restritivo, e diria que esse 
				tónus é óbvio, claro, descarado até, a partir de Horácio e 
				Coriáceo (1981). Mas iria até mais longe, e localizaria tais 
				elementos logo no início do que escrevi. Simplesmente, 
				concordante com o meu próprio percurso interior, com aquilo em 
				que fui acreditando e depois desacreditando, a ironia vai, desde 
				1956 até aqui, mudando de alvo. Digamos mesmo que o campo da 
				utopia amarga (daquilo em que não vale a pena acreditar) ou, 
				melhor, da consciência dela, foi alastrando, e, dentro dele, 
				foram-se alterando ao mesmo tempo as áreas em que 
				preferencialmente incide o acento tónico. 
				
				
				Se logo de princípio tratei ostensivamente com indisfarçada 
				nostalgia do que, para simplificar, chamarei os “amanhãs que 
				cantam”, é exactamente com o mesmo espírito que trato, a partir 
				de certa altura, do amor, e depois de mim mesmo, e finalmente da 
				memória e da morte (dos “depois-de-amanhãs que cantam”…). Neste 
				sentido, sim, a amargura com que incansavelmente vou destronando 
				os meus inacabáveis mitos interiores (e também sociais) 
				aparenta-me com a figura de Sísifo. Estou bem acompanhado. 
				
				
				  
				
				
				
				RAB 
				A sua obra poética é atravessada por várias outras tensões. 
				Joga-se numa contenção que às vezes deixa escapar um lado 
				confessional. Como se o pudor a que a escrita se obriga desenhe 
				o traço daquilo que quer apagar. 
				
				PT
				
				
				Esse é efectivamente um outro aspecto das coisas que escrevi, e 
				que aliás se relaciona com o que se disse atrás a propósito da 
				ironia. Através desta, tanto se toma a sério aquilo que se 
				adivinha que afinal não é tomado a sério como o exactamente 
				contrário: não se toma a sério aquilo que bem sabemos ser muito 
				sério. E assim, por esta última via, o carácter revelador, 
				impudente, desbocado, das minhas permanentes confissões é 
				“apagado” sob o traço de uma escrita que as ridiculariza. 
				Apetece-me dizer que este é o colete-de-forças que escolhi para 
				a minha loucura. 
				
				
				  
				
				
				
				RAB 
				Estas tensões e contenções observam-se, igualmente, ao nível 
				formal: a medida tentando equilibrar um desregramento mais 
				visceral e antigo, a medida como refúgio, como a “Pedreira” da 
				escrita: como o que o deixa a salvo daquilo que tem medo de não 
				poder controlar? 
				
				PT
				
				
				Penso que tem toda a razão no que a pergunta pressupõe. Na 
				formação que tive, e, estou certo, na pessoa que em qualquer 
				caso seria mas que com essa formação mais passei a ser, sempre 
				coexistiram, numa para mim mesmo curiosa relação dialéctica, um 
				desvairado desregramento e um maníaco apego à regra: o primeiro 
				disfarçado sob a capa do segundo e por ele permanentemente 
				contido, refreado. Na vida e na escrita, assim foi, assim é. 
				Aquele que começou um poema a dizer: “Pois dorme, meu amor, a 
				sono salto” é precisamente aquele que desenvolve esse mesmo 
				poema num esquema sintáctico, rítmico, rímico, estrófico, 
				consideravelmente complexo, labiríntico, mas regular. A regra, 
				máscara e freio, é também refúgio: a compostinha gravata que 
				salva de Rilhafoles… 
				
				
				  
				
				
				
				RAB 
				Utiliza às vezes o termo “barroco” para caracterizar a sua 
				poesia, no que se refere à busca de uma pluralidade de 
				perspectivas. O excesso é a figura de que se serve para operar a 
				deslocação e sobreposição de pontos de vista na linguagem 
				poética? 
				
				PT
				
				
				É exactamente isso. A linguagem, meu permanente interlocutor e 
				contendor, ela própria tantas vezes alvo da ironia de que 
				falámos atrás, é de modo constante apreendida como limitação (do 
				mesmo passo que é válvula de distensão!) e, por isso mesmo, 
				incapaz de revelar o real em toda a sua múltipla, diversa, 
				intrigante complexidade. Recorro sempre à velha alegoria do cego 
				a apalpar o elefante e que vai alvitrando sucessivos aspectos, 
				sempre insuficientes, da realidade que tem diante de si. Aquilo 
				a que eu próprio chamo “barroco” (de tanto ter ouvido o epíteto 
				aplicado ao que escrevi, e tantas vezes com aleivosa pejoração) 
				é apenas a desesperada tentativa de abordagem transfiguradora de 
				um real radicalmente inapreensível. Peco por excesso porque a 
				linguagem peca por defeito. 
				
				
				  
				
				
				
				RAB 
				Parece-me uma constante da sua poesia a coexistência de termos 
				da gíria, como “gramámos nos anos esmifrados” com termos do 
				português vernáculo. Cada poema descobre uma vertente erudita e 
				um lado coloquial. A pluralidade de registos da língua é também 
				um modo operatório do perspectivismo na sua escrita? 
				
				PT
				
				
				Esse é um dado, digamos, estilístico, que está longe de me ser 
				próprio (aliás, aqui para nós, eu sei que nada me é próprio…) e 
				que bebi naturalmente em alguns dos poetas que mais admirava 
				quando comecei a escrever “coisas de gente”: em Nobre, em 
				Cesário, mais ainda em Cesariny e O'Neill. O que talvez, porém, 
				valha a pena realçar é que, reconheço-o, esse elemento acaba por 
				ser poderosamente adjuvante do efeito irónico de que já várias 
				vezes falámos ao longo desta conversa. Os “registos da língua” 
				de que fala, e que, por exemplo, são de importância crucial para 
				o tradutor que sou, são para o poeta um processo como qualquer 
				outro. 
				
				
				  
				
				
				
				RAB 
				Num dos poemas do Guião de Caronte lê-se: “que se repete então, 
				mais que a vontade, / mais que o desejo obscuro, ou mais/ que o 
				mesmo escuro?/ (…) não se repetem coisas/ nem que fazer com 
				elas.” Esta não repetitibilidade das experiências (e o nem 
				querê-lo), é um programa de vida que se implica na sua poética. 
				Mas não deveria aplicar-se a qualquer poética? 
				
				PT
				
				
				Não é bem um programa de vida, mas uma verificação de facto. 
				Vamos lá, afrancesando, uma constatação. E velha como Heraclito… 
				Neste sentido, sem dúvida, deveria aplicar-se a qualquer 
				poética. Simplesmente, no contexto em que aparece nesses meus 
				poemas dos últimos anos, constitui uma dolorosa verificação, 
				porque aponta, não direi para a impossibilidade, mas para a 
				inutilidade, para o carácter insatisfatório da memória (e, por 
				isso mesmo, da vida). E dolorosa verificação, repare-se, é tanto 
				a da não repetição como a do não desejo dela, como acertadamente 
				sublinhou…  |