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				Nicolau 
				Saião: as disposições de um espírito 
				
				  
				
				
				Floriano Martins 
				
				  
				
				[…] 
				mais 
				importantes 
				[…] 
				do que 
				para o espírito o encontro de certas disposições 
				
				de 
				coisas, 
				[são]
				
				as disposições de um espírito perante certas coisas. 
				
				André 
				Breton [1] 
				
				  
				
				Nicolau 
				Saião (1946) integra o 2º movimento surrealista português, cuja 
				atuação se situa nos anos 60 e configura um momento outro dentro 
				de um painel de filiações e assimilações do movimento francês 
				nas décadas anteriores. Trata-se de momento em que, no dizer de 
				António Luís Moita, já se encontrava “digerida e superada […] a 
				bela utopia da escrita automática a que, duas décadas antes, 
				outros poetas haviam metido mãos inovadoras”. [2] Pertence à 
				mesma geração de Luiza Neto Jorge – muito embora comece a 
				publicar somente em meados da década seguinte –, que eram vozes 
				de certa forma isoladas, em Portugal, no que diz respeito a uma 
				aproximação declarada do Surrealismo. Ele mesmo me diria: “Tens 
				toda a razão! Praticamente isolada – só me lembro, nesta praça, 
				do Carlos Martins e da Ana dos Santos e da adesão do Palácios da 
				Silva, mas eram artistas plásticos.” E em seguida acrescenta, 
				com mais firmeza: 
				
				Isolado 
				– e marginalizado, esta é a verdade nua e crua! Uns porque o 
				surrealismo lhes deixara más recordações (desmascarava-lhes a 
				prosódia); outros porque, até com certa honestidade, não 
				percebiam como era e queriam à viva força que o surrealismo 
				tivesse ficado parado no espaço e no tempo (e como o Dali estava 
				requentado, não queriam comer dessa loja – sem verem que o 
				surrealismo não é questão de escola ou jeito, mas sim uma 
				questão vivencial e que vai evoluindo e se modificando). Não me 
				convidavam para participar em nada, eu não existia… Lembro-me 
				que houve várias antologias, pretensamente bem-feitas e sérias, 
				que nem sequer citavam o meu nome (já não digo arrolarem-me…); 
				sucederam até coisas engraçadas: um bom poeta, que por essa 
				altura me leu (calhou!) escreveu-me e disse: “Afinal, gostei 
				muito! Pensava que… você era um epígono do…”. Eheh! Por isso só 
				consegui publicar os meus poemas porque recebi (foram os filhos 
				que mandaram sem eu saber para a APE…) o Prémio Revelação. [3] 
				Devo dizer, por pura verdade, que o José do Carmo Francisco, 
				antes de eu ser poeta em livro, tudo fez (em revistas e jornais 
				onde colaborava) por me tirar da “maldição” em que me queriam e 
				eu não queria (poeta maldito, safa!). Eu admirava-me por me 
				repudiarem assim, por que será que me afastam? – pensava eu, 
				ingenuamente, na época. 
				
				Depois 
				havia os dum certo sector – o partidão! – que tentavam fazer o 
				deserto à volta pelo que se calcula (surrealista era para eles 
				adepto do Trotsky…). Também havia os aderentes à igreja, que 
				pensavam que íamos escaqueirar o Vaticano… Ou seja, eu estava, 
				enquanto poeta, praticamente só, aqui. E então se deu o 
				seguinte: não entrei naquela geração, na altura; depois, agora, 
				não entro nesta (por causa da idade). Sou uma espécie de “terra 
				de ninguém” uma não-ilha. Eheh (riso, mas algo dolorido). Nos 
				anos 60, a ortodoxia surrealista abre passo para uma leitura 
				mais sensível e valiosa da obra de autores como Herberto Helder 
				e Antonio Ramos Rosa. Saião esboça sua particularidade a partir 
				do interesse pelo mistério e o humor negro, duas fontes de 
				intranqüilidade ou de subversão da realidade. De tais anotações 
				– 
				Mistério, 
				Imaginação, Fantástico & Aventura - uma lista para este tempo
				
				(1974) e
				
				Os labirintos do real - sobre a Literatura Policial 
				(1980) são 
				os primeiros livros publicados – surge uma poética inquietante, 
				que mais se aproxima do Surrealismo quanto menos afetada se 
				mostra por sua ortodoxia. Sua relação com uma prática coletiva 
				em torno do movimento leva-o a assinar manifestos, montar 
				exposições, criar um Bureau Surrealista Alentejano, na região 
				portuguesa para onde se mudou, porém aos poucos vai se 
				configurando uma aposta no individual, e é justamente a partir 
				daí que sua poesia melhor se define. 
				
				O olho 
				posto sobre a obra de Nicolau Saião, o convívio com ela, ir 
				tomando seu pulso a cada desdobramento de imagens, sondando como 
				as presenças evocadas saltam do plano poético para a plástica, 
				como ele rabisca imagens que depois transitam com exímia 
				vertigem de um ponto a outro, esta intimidade de figuras que 
				saem e entram a todo instante em salas aparentemente distintas, 
				exuberância serena com que o poeta se mostra e ao mesmo tempo 
				oculta partes de si, dá-nos uma prazerosa sensação de entrar no 
				espelho como se tratasse de um mergulho na memória. Este é o
				
				poema 
				central de 
				sua obra: trazer de volta da transfixão da linguagem o que cada 
				um de nós considera único em sua experiência. Defende a idéia de 
				que o simulacro está ligado aos vestígios fechados, não 
				revelados, da existência. Isto nos leva ao palco, ao tablado 
				agônico das simulações, aos enredos míticos e místicos que se 
				esmeram em conferir realidade à fábula. Lugar sagrado onde o 
				poema, a criação artística como um todo, busca algo mais 
				substancioso do que simplesmente derrotar o intelecto. Mete-se 
				com o “finíssimo vazio”, onde vai explorar suas possibilidades 
				de ser. Absorve todos os engates e desgastes. 
				
				Não há 
				como fugir da criação. Ela revela de tal maneira seu criador, 
				que logo o desmascaramos em suas declarações à imprensa. Nicolau 
				Saião salta de um quadro para outro da existência, suas 
				observações, devaneios, recordações, fixações, tudo entra na 
				pauta do poema que não se desvincula dos ganhos de linguagem, 
				mas que essencialmente busca dar corpo instável ao objeto de que 
				trata – ou pelo qual se deixa tratar. A vida se excede em seus 
				mecanismos de indagação. A lentidão está sempre da alçada do 
				pressentimento e da projeção. Os inúmeros retratos que 
				encontramos na obra poética de Nicolau Saião indicam sua 
				reflexão aguçada acerca de modelos e sua atualidade. Jamais 
				evoca um personagem do passado apenas movido por um 
				sentimentalismo glorificante. Sua memória é a do desconforto, do 
				choque entre passado e presente. É sarcástico, não desvia o 
				terreno do humor negro nem busca dissimular a 
				vítima
				
				de seus 
				retratos. Uma tática visceral de sua poética radica na 
				credibilidade que impõem os nomes dos personagens convocados. 
				Tática subversiva que elimina qualquer discussão sobre a 
				ocorrência anotada em relação a este ou àquele personagem. 
				
				Paul 
				Eluard dizia que a poesia cria, se cria, destrói e se destrói. 
				Cabe estabelecer os vínculos indissociáveis entre estes 
				elementos todos. Nicolau Saião diz em um poema que “o mundo é / 
				inteiramente composto / por telefones e santos”. Isto me lembra 
				a brilhante suspeição de Salvador Dali, de que a realidade um 
				dia seria entendida como um estado de depressão, uma ausência 
				configurada como tal. Um personagem em Nicolau Saião simplifica 
				este ponto: “tudo depende de como se vai vivendo”, argumento 
				posto em dúvida ou inaceitável quando a realidade opera sobre o 
				homem. O poema é o lugar da dúvida. Este é o ponto. 
				
				Toda e 
				qualquer forma de rebelião se chama dúvida. Não é, portanto, a 
				fé a remover montanhas, mas antes seu questionamento. Tais 
				pontos de coordenação diversa representam a realidade móvel, 
				esta que circula “nas ruas que não recusam nada”, somos nós, 
				sim, nós todos, nós somos a diferença. O poeta sabe disto tanto 
				quanto sabe que as sociedades secretas são uma deformação da 
				nossa aceitação de um estado comum de convivência. 
				
				Nenhuma 
				alma se salva longe da poesia. A substancial teimosia 10 de 
				Nicolau Saião está justamente em afirmar que o homem em si, cada 
				homem, é seu último refúgio de humanidade. 
				
				  
				
				
				*** 
				
				  
				
				FM 
				Eu gostaria de saber por onde começas a criar, se pela expressão 
				lírica ou pela plástica. Conversemos sobre os primórdios da 
				criação em Nicolau Saião e a partir daí vamos construindo o 
				universo de nossa entrevista. 
				
				NS 
				Tanto quanto me lembro, sempre tive ritmos, que mais tarde 
				aprendi que se chamavam versos, na minha cabeça. As pessoas mais 
				chegadas e os meus amigos em geral sempre notaram – com alguma 
				inquietação, até, o que me diverte – que disponho duma memória 
				que me atreverei a classificar de 
				muito boa. 
				Por isso, recordo perfeitamente que, bem pequeno, já respondia 
				aos acontecimentos do quotidiano de maneira específica que 
				depois se foi configurar em poesia escrita. Creio que a 
				denominada “poesia da infância” vive em todos e perdura – é o 
				elo que mais tarde permite que haja leitores a buscar-nos e a 
				entender-nos – e, nalguns, encarna mais tarde numa escrita 
				deliberadamente construída e desconstruída. 
				
				Comecei a 
				ler aos cinco anos, porque o meu pai era professor pelo “método 
				de João de Deus”, a célebre “Cartilha Maternal” incrementada 
				durante a Primeira República. Eu ouvia-o ler o jornal e todo eu 
				me danava por não poder fazer o mesmo. Às vezes, simulava que o 
				lia… Tanto o atenazei que ele, com a bondade e a paciência que o 
				caracterizavam, me ensinou. E nunca mais parou o meu contacto 
				com as letras e os livros, esses castelos enfeitiçados! 
				Publiquei o meu primeiro poema no canônico 
				Juvenil, 
				do 
				Diário de 
				Lisboa, 
				andava 
				pelos 16/17 anos. Importa dizer que uns dois ou três anos antes, 
				na sala de espera dum médico, eu contatara com o surrealismo ao 
				folhear uma revista brasileira, 
				O Cruzeiro, 
				que dava a lume nesse número um artigo sobre diversos autores. 
				Fiquei encantado, porque vi que as coisas que se agitavam dentro 
				do meu entendimento afinal tinham nome! No que respeita à 
				pintura, começou assim: havia e ainda há perto da casa que 
				habito em Portalegre uma espécie de moradia apalaçada que tinha 
				na frontaria uns painéis de azulejos com flores e motivos 
				vegetais em diversos tons de cor. Aquilo fascinava-me e sempre 
				que ia para a “mestra” virava-me repetidas vezes a 
				contemplá-los. Nas minhas horas desenhava, mas sem muito 
				empenho. Aos dezoito anos, tendo já mais mundo, entrei uma vez 
				numa galeria de pintura e, agradando-me uma obra, perguntei 
				quanto custava. A quantia que me indicaram derrotou-me de 
				imediato. Mas eu desejava ver-me rodeado de beleza e então 
				pensei com os meus botões: “E se eu tentasse fazer quadros?”. 
				Andavam-me frequentemente na cabeça, de mistura com os versos, 
				traços, cores, formas… Comprei uma caixa com canetas de feltro – 
				e meti mãos à obra. 
				
				Há dias em 
				que é alucinante: uma palavra, uma música, o simples olhar duma 
				coisa fazem-me agarrar no papel ou nos cartões e nos materiais 
				de pintura e gastar todo o santo dia naquela 
				construção/desconstrução. Outras vezes, passo semanas sem tocar 
				em nada. A escrita pode aparecer a seguir, ou antes; dum texto 
				se passa para um quadro e daí para dias sem pintar e escrever, 
				inventando, arrolando, transfigurando coisas na cabeça e se 
				calhar no corpo todo: fico sendo um magneto, um motor alquímico, 
				uma panela onde se cozinham os quadros e os versos. 
				
				FM 
				Em teu Os Olhares Perdidos (2001), logo no prefácio, João 
				Rui de Souza refere-se a “uma palavra devastada e devastadora na 
				procura contraditória do seu espasmo e da sua luz”, como sendo 
				uma das características essenciais de tua poética. O que buscas 
				por meio da poesia? 
				
				NS 
				Peguemos no título que referes. Por que este título? 
				Simplesmente por isto: quando um editor me convidou a publicar o 
				anterior livro, 
				Flauta de 
				Pan, 
				disse-me mais ou menos assim: “Veja se não sai um volume muito 
				grande… Arranje aí coisa para cento e tal páginas…”. Os 
				editores, ao que me dizem e eu acredito, têm de ter cuidado com 
				certos aspectos não propriamente poéticos. Então, bom aluno, 
				arranjei cento e quarenta páginas de flauta… Verifiquei de 
				imediato que me havia ficado, do acervo que tinha, uma boa 
				quantidade de poemas. Olhares perdidos… Olhares que não pudera 
				dar à luz das montras (diz um confrade que muito estimo, José do 
				Carmo Francisco, que “os poemas devem ser para a luz das montras 
				e não para o escuro das gavetas”). Depois, com a natural 
				evolução dos dias, o Ruy Ventura alertou-me: “Amigo, creio que 
				tem aí material que dá outro livro!” 12 Tinha quase, de fato. 
				Acrescentados de mais poemas que, entretanto, fui fazendo, os 
				ditos 
				olhares
				
				antes 
				postos em 
				sossego
				
				saíram 
				noutra editora com o título que lhes acertava em cheio. 
				Portanto, creio poder inferir-se que, à partida, através da 
				poesia, busco olhar as coisas duma maneira reconvertida, 
				transfigurada. Na poesia há, implícito, um 
				jogo
				
				intenso 
				que ao poeta permite renovar-se, dar mais vida a si mesmo ou 
				conservar, intacta, a que tem – antes de tudo o resto. Faço 
				poesia para não morrer. Ou seja, para dar vazão ao núcleo duro 
				de vida plena que em mim sinto e que a sociedade, 
				frequentemente, busca extinguir em nós ou se vai corroendo por 
				ação dessa mesma sociedade informe ou deformada. Também é uma 
				incursão no mistério, nesta coisa estranha que é haver 
				existência e palavras e maneiras de as fazer bailar desta ou 
				daquela maneira e darem com maior ou menor perfeição o cheiro 
				dum momento passado, a cor dum pensamento, o rebrilhar duma 
				emoção antiga, dum temor, duma alegria. 
				
				Repara que 
				aponto, sem soberba, antes com serenidade feliz, para a 
				
				sabedoria 
				e não para 
				o 
				
				conhecimento. 
				Digamos que a poesia é o pedacinho de sabedoria que pudemos 
				granjear ou a que temos direito. Se nisso fazemos concorrência 
				aos deuses, pior para eles. Não têm de que se queixar, é o 
				resíduo divino que em nós mora e que epigrafamos sem maldade… 
				
				FM 
				Mas o que, exatamente, procuram ser teus escritos? 
				
				NS 
				Interrogo-me se procuram ser alguma coisa… Quando escrevo, estou 
				preso ao 
				motivo
				
				do que me 
				apareceu na cabeça, como Cézanne ante o seu quadro. O que 
				naquele momento me interessa 
				é a coisa 
				em si: 
				se servir para algo, tanto melhor. Mas isso não me preocupa 
				grandemente. Creio que, como dizia Gherasim Luca, a beleza é uma 
				doença de pele, de sangue, de nervos. Cito de memória. E cito 
				também um poeta que muito me interessa, Cristóvam Pavia, que num 
				poema escreveu: “Até as imagens me são inúteis porque 
				contemplo 
				tudo”. 
				Nas alturas em que escrevo entra tudo, creio: o que aprendi, o 
				que fui sentindo através do tempo, as alegrias e fundas mágoas, 
				o que esqueci, o que desejo. Nos últimos tempos, pois com a 
				passagem da idade adquirem-se novos olhos e novas tristezas, a 
				presença da nostalgia e a fidelidade aos amores mortos têm na 
				minha escrita um peso cada vez maior. Eu costumo dizer, com 
				ironia, que 
				“não 
				tenho fantasmas mas tenho muitas nostalgias”. 
				E os fantasmas, se acaso se apresentarem, procurarei fazer-lhes 
				frente com as pobres mas implacáveis armas que possuo: as 
				palavras, a sua organização e reorganização, as frases com a sua 
				construção e desconstrução. Nada mais quero, nada mais me 
				preocupa do que viajar por esses continentes encantados e 
				temerosos que são a feitura do poema e a sua introdução no 
				espaço e no tempo. Não sei quanto tempo eles irão durar, mas 
				espero que alguns dos meus versos possam tocar o coração e a 
				mente de algum ou alguma daqui a um considerável lapso de tempo… 
				Por outro lado, já do outro lado do espelho – os poemas feitos, 
				já em estado de papel: que sejam uma proposta de interrogação 
				para aqueles que os lerem 
				e mesmo de 
				confrontação 
				com os 
				mistérios da existência. Sim, amigo, estás a perceber-me bem: a 
				matéria poética como 
				matéria 
				philosófica. 
				Seria preciso acrescentar mais? Talvez isto: que os poetas 
				honrados (e não tenho de 
				honra
				
				uma noção 
				burguesa ou cínica) entre si se congreguem para que os que 
				desejam impedir que eles publiquem não levem a sua avante. 
				
				FM 
				Até aqui vens tendo o cuidado de fazer referência emparelhada ao 
				duplo construção/desconstrução. Contudo, é possível 
				distingui-los em tua criação, tanto na plástica quanto na 
				poética? 
				
				NS 
				Creio que sim, já que o perguntas. Pensando bem, digamos que, 
				sem ser premeditado, sempre que tentei construir o fiz buscando 
				erguer a partir de novas bases, que assim implicavam a 
				desconstrução do que tinha como material – dado pela tradição, o 
				quotidiano que vivia, os próprios hábitos do 
				milieu
				
				literário 
				que tinha em volta. 
				
				Devo dizer 
				que, mesmo depois de quarenta e tal anos de escrita, continuo 
				fascinado, admirado e seduzido pelas 
				nuances
				
				que as 
				palavras possuem, pelas infinitas variações que possibilitam. 
				Nunca tentei 
				fazer 
				diferente 
				pelo 
				simples desejo de originalidade: tal impunha-se-me, digo mesmo 
				que até dum ponto de vista ético, vê lá tu… Uma das coisas que 
				mais me espantava, se pessoas ou críticos pouco argutos me liam 
				e falavam comigo sobre as minhas produções, era o admirarem-se 
				ante um 
				jeito
				
				(uma 
				inflexão) para eles pouco usual (digamos assim mansamente…) e 
				que estava fora do tom geralmente empregue por outros operadores 
				menos aventurosos… Depois percebi o porquê: habitualmente, 
				usava-se outra 
				fatiota, 
				que também desejavam eu vestisse. Mas ela não me servia e, 
				portanto, tinha de a talhar mais ao meu gosto – tanto mais que 
				se precisava de andar à-vontade para se descobrir outros 
				horizontes. Ir por outros continentes. Então, já com outros 
				aprestos na minha sacola, podia enfim tentar criar outras 
				residências, outros locais de morada (a escrita e a poesia como
				
				palácios do nosso afeto). 
				Mas os dois 
				jogos
				
				
				interpenetram-se, sempre se têm interpenetrado, seja na escrita 
				ou na pintura. Duas grandes aventuras, que dão para preencher 
				diversas vidas… 
				
				FM 
				Publicaste, em 1999, um livro intitulado 
				O crime e 
				a sociedade, 
				pelas edições Bureau Surrealista Alentejano. Eu gostaria que me 
				falasses um pouco a respeito desse livro, de sua atualidade, e 
				também do funcionamento desta célula surrealista no Alentejo. 
				
				NS 
				O livro, um pequeno ensaio completado por recortes apropriados 
				tirados da imprensa portuguesa “de referência”, surgiu porque eu 
				necessitava interiormente de clarificar certos aspectos 
				respeitantes à lei e à justiça – corporizadas, mal ou bem, no 
				sistema judicial – que, a meu aviso, têm a ver com o cerne das 
				sociedades e são o que motiva a atenção que se dá ao 
				leit motiv
				
				presente 
				na literatura policial. Que li e sobre a qual me debrucei 
				durante mais de quarenta anos de encanto e perplexidade… Ao ler 
				A. Christie, Ellery Queen, Fred Kassak, Francis Beeding, 
				Sebastien Japrisot etc. – todos os grandes cultores do “polar”, 
				do romance de enigma (“whodunit”) ao 
				crime 
				story 
				e ao
				
				social-thriller 
				(expressão 
				que propus aos apaixonados pelo gênero), apercebi- me de que 
				eram não só entusiasmantes, mas permitiam uma radiografia 
				correta e mesmo exaltante das sociedades, nomeadamente aquela em 
				que vivemos. Esses livros, mesmo os que certa gente tentava dar 
				como “simples entretenimento” 
				et pour 
				cause, 
				estão longe de o ser. Estudando a LP (literatura policial) e 
				lendo os denominados “casos do dia”, meditando em tudo isso, 
				concluí que em certas sociedades (a que chamo “sociedades 
				criminais”) o dito sistema não visa ser como que uma “entidade 
				reguladora”, digamos, mas sim controlar o quotidiano das 
				populações. Ou seja: haver democracia, mas isso não servir de 
				nada ao povo – porque o dito sistema vela para que tudo continue 
				na mesma e o jogo esteja falseado sem que as pessoas possam 
				deitar abaixo os próceres do mando. Em Portugal, onde o sistema 
				judicial está quase totalmente desqualificado dum ponto de vista 
				ético, foi-me fácil fazer a fotografia deste estado de coisas. E 
				digo: um dos pontos – talvez o mais importante – em que as 
				pessoas sérias e que querem que o mundo melhore devem insistir, 
				é na necessidade imperiosa de esse sistema funcionar sem álibis 
				hipócritas. Ou, então, tirar-lhes a máscara – é essa máscara que 
				lhes permite continuar a tripudiar ilegitimamente sobre as 
				pessoas, sobre a sociedade em que estas coexistem. Deve 
				tentar-se a todo custo que os intervenientes no sistema sejam 
				responsabilizados (democraticamente) pelas “demoras”, pelas 
				imensas caquexias – que são propositadas e mediante as quais 
				estabelecem um clima de intimidação, de medo e de sufocação 
				interior. 
				
				Com 
				relação ao Bureau Surrealista Alentejano (BSA), no que respeita 
				a esse núcleo de pessoas que existiu aqui no Alentejo, era, 
				grosso modo, composto por mim, pelo Carlos Martins, pelo 
				Palácios da Silva (devido a problemas existenciais foi apanhado 
				pela toxicodependência e morreu prematuramente de Sida), pela 
				Ana Santos, pelo A. J. Silverberg, pelo companheirismo do 
				Almeida e Sousa, depois pelo vigor criativo do João Garção, pela 
				solidariedade do Ruy Ventura… Emitíamos folhetos (também feitos 
				em conjunto ou assinados pelo Cesariny, o Inácio Matsinhe e um 
				que outro mais, conforme recordo), pequenos livros copiografados 
				(não havia então esta máquina mágica que é a digitalização), 
				fazíamos exposições de colagens e pintura aqui e acolá…). A 
				edição 
				before the 
				fact 
				de 
				
				Arquitectura do silêncio, 
				por exemplo, que depois valeu ao Ruy o Prémio Revelação da APE, 
				compu-la eu dactilografada, fiz o prefácio e a capa (Ed. Folhas 
				do Rosto) para dar a amigos… Um circuito personalizado, mas que 
				deixou resíduos. O BSA era uma espécie de irmão-colaço do Bureau 
				Surrealista de Lisboa, que o Cesariny tinha na capital e através 
				do qual dava a lume coisas muito giras. Tenho dele muitas cartas 
				e bilhetes, no sótão da “Casa da muralha”, em Arronches, que um 
				dia sairão à luz do dia assim eu tenha saúde e sorte… 
				 
				
				FM 
				Já participaste de inúmeras exposições de 
				mail art. 
				No Brasil, a 
				mail art
				
				acabou 
				limitando-se a um ludismo da forma sem maiores conseqüências 
				estéticas. É muito raro encontrarmos entre nós um artista como o 
				Hélio Rola, cuja interferência a partir da 
				mail art
				
				sempre se 
				deu de uma maneira crítica e não de mero seguimento de modismos. 
				Meteram-se com a 
				mail art
				
				mais os 
				poetas afeitos a um construtivismo inócuo do que propriamente os 
				artistas plásticos que, eventualmente, poderiam ver ali uma 
				possibilidade de fusão de duas linguagens, a plástica e a 
				poética. Como se deu tua aventura em tal território e até que 
				ponto se pode vislumbrar algum contributo estético a ser 
				destacado em Portugal em tal área? 
				
				NS 
				A 
				mail art
				
				é, por 
				definição à letra, a arte que se pode enviar pelo correio. Mas 
				se encararmos o seu espírito, chegaremos a definições e 
				conceitos mais apropriados: arte que, modestamente, aproveita as 
				virtualidades de se poder enviar algo de especificamente 
				artístico ou poeticamente plástico num simples envelope, numa 
				pequena encomenda. À partida, as encomendas dos que são 
				civilmente despossuídos ou não muito abonados, que não dispõem 
				de galerias para as suas trocas artísticas, para as suas 
				mundividências de alma de seres do lado 
				dos que 
				sofrem a História e não dos que a fazem. 
				Em suma: dos que procuram utilizar os meios que os outros, mais 
				fornecidos de dinheiro ou poder, desprezam ou não aproveitam. O 
				envio interior, a troca, processa-se em geral a partir de 
				materiais pobres, usando de maneira muito própria as 
				possibilidades postas à disposição do artista e, a partir daí, é 
				a imaginação que comanda o jogo: utilização de cartões 
				habilmente modificados, fotografias rasgadas e recompostas com 
				outra estrutura, invólucros poeticamente deturpados e 
				transfigurados, bocados de revistas e jornais forçados doravante 
				a proporcionar outro “espetáculo”, desenhos, guaches ou 
				aquarelas dissimulando-se nos intervalos da vida 
				plástico-quotidiana etc. Nos últimos tempos, assiste-se, no 
				entanto, a umas burlazitas: o que alguns enviam são pequenos 
				quadros sem especificidade. Chega-se mesmo a isto: certas 
				escolas dão aos alunos possibilidade de enviarem para exposições 
				produções suas, à guisa de trabalho curricular – com 
				horripilantes resultados, adulterando a verdade, a realidade e a 
				liberdade da 
				mail art. 
				
				No meu 
				caso, comecei por enviar coisas a amigos, sem mesmo pensar que 
				era uma atividade que podia desaguar em exposições. Depois, com 
				o Almeida e Sousa, o Carlos Martins e o João Garção, entrei no 
				chamado 
				circuito. 
				Procuramos sempre ser autênticos na nossa participação, o que se 
				pode comprovar vendo os catálogos que transportam as coisas 
				remetidas por nós. 
				
				Devo 
				salientar que muitos organizadores, ao levarem a efeito mostras 
				de 
				mail art,
				
				visam sim
				
				alambazar-se 
				com 
				pequenos museus mais que serem um motivo para as trocas, sempre 
				excitantes e por vezes surpreendentes, da arte postal. 
				
				FM 
				Fala-me, agora, da tua aproximação de Mário Cesariny e Carlos 
				Martins, da maneira como acabou resultando na organização da 
				exposição “O Fantástico e o Maravilhoso”. Claro que ambos os 
				conceitos estavam ligados e numa percepção dentro da ótica 
				surrealista. Mas o que a eles acrescentavam então poetas e 
				artistas portugueses? 
				
				NS 
				A exposição surgiu da maneira mais espontânea e informal que se 
				possa pensar. Mas já lá vamos… Conheci o Carlos na chamada vida 
				militar, em Leiria – numa noite com certas peripécias surreais. 
				Ficamos amigos quase de imediato e verificamos que navegávamos 
				na escuna surrealista e libertária. Estivemos depois em comissão 
				de serviço “por imposição”, como oficialmente dizia na 
				guia-de-marcha, na Guiné. Escrevíamos, principalmente, e, quando 
				podíamos, pintávamos - eu pratiquei mesmo cerâmica e tentei 
				aprender, em boas condições, tapeçaria com os nativos. Quando 
				viemos para casa, contatamos com os membros do “Grupo do Grifo”, 
				da revista do mesmo nome, que saíra por essa altura, e a PIDE 
				[4] logo apreendera: Virgílio Martinho, Ernesto Sampaio, António 
				José Forte, Pedro Oom, António B. da Fonseca, Ricarte-Dácio. 
				Também apareciam no Café Monte Carlo, local da tertúlia, o 
				Herberto Helder, o Luís Pacheco, o Miguel Erlich, a Luiza Neto 
				Jorge, a actriz Eunice Muñoz, o declamador Mário Viegas… 
				
				Só em 1976 
				conheci o Cesariny: eu estava ao pé da Estação do Rossio quando 
				ouvi ao lado uma voz a pedir à ardina um jornal que tivesse 
				notícias boas… Era o Mário. Dirigi-me a ele, apresentei-me: 
				ficamos até as quatro da manhã a conversar no seu 
				atelier. 
				E passamos a contatar regularmente e a levar a efeito atividades 
				em conjunto. A exposição surgiu por acaso: tanto o Mário como o 
				Carlos partilhavam comigo o deslumbramento pelas coisas do 
				Lovecraft, do Georges du Maurier, do “Monk Lewis”, do Bulgakov, 
				dos antigos e modernos cultores do humor negro, do maravilhoso e 
				do fantástico e falávamos muito a seu propósito. Como nessa 
				altura o Carlos e a Ana estavam no Teatro de Xabregas, ela como 
				actriz e ele como encarregado do sector cultural, pensamos em 
				artilhar a mostra. Eu conhecia o Miranda Calha, que estava 
				secretário de Estado do Desporto, e ele falou com o Coimbra 
				Martins, ministro da Cultura de então. Ultrapassadas algumas 
				dificuldades que nessa época ocorriam – o Cesariny por seu turno 
				falara com a secretária do Mário Soares –, articulou-se a 
				exposição com o apoio do movimento Phases e de autores ingleses, 
				brasileiros, belgas, angolanos, moçambicanos, holandeses etc. 
				Conseguimos também, por intervenção do Mário Soares junto de 
				certas embaixadas, a participação de alguns autores do Leste… 
				
				Os 
				portugueses (Mário Botas, Paula Rego, Eurico, Armanda Andrade, 
				António Quadros, Relógio, Garizo do Carmo, Areal, Júlio Reis 
				Pereira, Escada, Isabel Meyrelles, entre muitos mais) quando 
				vivos eram contatados por conhecimento próprio de uns e de 
				outros ou disponibilizavam-se ao saber da 
				coisa.
				
				Se 
				falecidos, falava-se com os herdeiros. A minha contribuição de 
				maior vulto – além de traduzir textos e publicar poemas no 
				catálogo-livro e expor dois quadros – foi descobrir um 
				surrealista ínsito, meu companheiro de adolescência: de sua 
				profissão carpinteiro, meio-surdo e com dificuldades na fala, 
				mas muito atento e inteligente, o Manuel Mourato, nos dias em 
				que tivera de ficar em repouso por haver partido uma perna, 
				pintara um enorme quadro com as tintas da profissão: 
				O bosque 
				encantado, 
				título de minha lavra e que foi uma das revelações da Mostra. 
				Mal recebida pela crítica 
				au pair
				
				(estava-se 
				em plena época da reação pura e dura aos que não aceitassem os 
				ditames 
				culturais
				
				dum certo 
				setor), a mostra foi depois levada para a Sociedade Nacional de 
				Belas Artes pela mão competente e esclarecida do crítico 
				democrata Rui Mário Gonçalves. 
				
				FM 
				Este teu deslumbramento por Lovecraft o levou à tradução de seus 
				poemas. O que exatamente esta afinidade acrescentou à tua 
				poesia? Penso até que ponto nos teus retratos não se verifica a 
				mesma simulação, o mesmo efeito das “surpreendentes fabulações 
				engendradas” que percebes na poética do autor de 
				Fungi from 
				Yuggoth. 
				
				NS 
				Penso que tens razão, é uma observação perspicaz! O primeiro 
				livro que dele li foi 
				O caso de 
				Charles Dexter Ward, 
				editado pela Livros do Brasil em janeiro de 1956 sob o título
				
				Os mortos podem voltar. 
				Eu apanhei-o dois anos depois, tinha uns doze, e nessa altura já 
				recebia semanada – o que me permitiu economizar para o adquirir… 
				
				O que 
				desde logo me fascinou em Lovecraft – depois pude corroborar 
				esta idéia – é que o fantástico que encena se inscreve num 
				realismo apurado. Lovecraft é um grande escritor realista. 
				Descrições dele da Nova Inglaterra são do mais apropriado que se 
				traçou: porque o realismo dele não é estrito, não é charro – é 
				transfigurador, sente-se nele um frêmito de vida, uma intensa 
				palpitação de coisas e de pessoas. Daí o interesse que os 
				surrealistas americanos (e franceses que depois o leram) tiveram 
				por ele, o que só mais tarde vim a saber por ter lido um 
				exemplar (oferecido em fotocópia pelo Cesariny) de 
				Cultural 
				Correspondence 
				dado à 
				estampa por Franklin Rosemont como editor convidado para esse 
				número, “Surrealism & its Popular Accomplices”. O que Lovecraft 
				me deu – e já agora quero confidenciar que me encantou imenso 
				ter sido o tradutor da edição integral e fiável do seu 
				“Fungi”
				
				(trabalhei 
				a partir dum dactiloscrito de HPL, fotocopiado e enviado ao 
				Carlos Martins por intercessão de Jean-Pierre Andrevon segundo 
				informação dele, pelo grupo de Providence – foi a sensação de 
				que não estava só na caminhada empreendida. A adolescência é um 
				lugar mágico, e se temos a sorte de a ter pacífica e aberta à 
				criatividade, como foi o meu caso, a viagem fica escancarada a 
				todos os ventos e rotas: Lovecraft foi um admirável companheiro, 
				um tio afável e possuidor de um universo onde eram possíveis o 
				sonho e os raciocínios menos convencionais. 
				
				FM 
				Na tradução de 
				Fungi from 
				Yuggoth, 
				optas pela estrutura do soneto inglês, enquanto, 
				originariamente, Lovecraft modula seus sonetos em dois blocos 
				únicos, com 8 e 6 versos. Por que esta interferência tua na 
				concepção formal do autor? 
				
				NS 
				Porque a certa altura, quando o estava a ler aturadamente antes 
				de começar a traduzir, me apercebi de que não poderia/ deveria 
				seguir a estrutura que ele seguia. Diferenças de língua e de 
				cadências… Há um poema, por exemplo – trata-se do undécimo, “O 
				Poço” – que ficava desfigurado se eu tentasse rimar como ele 
				rimou. Então, notei que resultava se a terminação fosse sempre 
				em “ar”: ficava com um tom de balada – das baladas que ele bem 
				conhecia. E com aquele final de duas linhas, os poemas 
				afivelavam o tom dos contos de mistério, que em geral terminam 
				por uma revelação súbita e desconcertante… que concerta tudo 
				para nosso gáudio. 
				
				FM 
				De que maneira te sentes integrado ao surrealismo em Portugal? 
				Explica-me tua participação efetiva no movimento e as afinidades 
				eletivas. 
				
				NS 
				Começarei por dizer que “surrealismo em Portugal” é uma espécie 
				de 
				ave rara
				
				que 
				diversos caçadores tentam abater, uns por umas razões e outros 
				por outras. Se ser surrealista é sentir o primado da imaginação 
				e da transfiguração que a liberdade livre proporciona, do 
				sentido que o humor negro, o amor e a lealdade aos poderes do 
				espírito nos concede, sou surrealista e tenho como meu albergue 
				a terra inteira. Ser surrealista em Portugal é, entretanto, um
				
				negócio arriscado, 
				no mínimo, constantemente sujeito a deturpações, difamações, 
				fingimentos e desprezos subreptícios. Nesta nação nunca houve 
				uma verdadeira democracia – o que há agora é uma partidocracia 
				num país belíssimo, paisagem que o povo vai ornamentando (e com 
				freqüência o melhor surrealismo sai do povo espontaneamente, 
				feito com arte ingênua e perfurante inocência), mas dominado por 
				gente que se apóia nos meios de comunicação, no caciquismo e nos 
				maus hábitos seculares. Nestas circunstâncias, o espaço de 
				manobra do surrealismo é pequeno. É 
				impensável, 
				por exemplo, que a entrevista que você me está a fazer me fosse 
				feita por qualquer órgão de referência nacional. A imprensa 
				portuguesa vive dominada por uma espécie de paranóia guerreira 
				que existe entre os diversos quadrantes políticos, sendo 
				porta-voz das 
				trocas e 
				baldrocas 
				em que 
				estes vivem mergulhados. Também se alimenta intensamente da saga 
				futebolística e dos 
				talk-shows
				
				
				televisivos, criando um espaço letal para a poesia e de entre 
				ela para a poética surrealista. Quando necessidades de maquiagem 
				cultural a isso aconselham recordam-se de novo, pela milésima 
				vez, os tempos já idos dos surrealistas Cesariny, Seixas e um ou 
				outro mais (António Maria Lisboa e o também já falecido Mário 
				Henrique Leiria, quando muito) faz-se uma excursão por esses 
				anos (cerca de 50 atrás…) e aproveita-se para dar a entender 
				que, afinal, o surrealismo, que foi giro nessa época, está 
				extinto, 
				kaputt, 
				passemos agora a coisas sérias e importantes – as literatices 
				que rendem. 
				
				Por isso o 
				que há, falando em grupos, é 
				grupos de 
				um 
				– como o 
				Cesariny me dizia há anos, com ironia – ou de dois ou três no 
				máximo, reunidos quase por acaso, ajudados por 
				
				companheiros de jornada. 
				De vez em quando se tem a possibilidade de fazer uma exposição, 
				publicar um livro… A minha participação no… movimento (?) 
				caracterizou-se por um lado pela feitura de poemas e pela 
				efetivação de mostras, os primeiros publicados em jornais e 
				revistas que respeitavam a sua qualidade sem repararem muito na 
				sua condição surreal e as segundas levadas a cabo pelas 
				entidades que, sendo um pouco de letras grossas, não viam bem a
				
				epidemia 
				que lhes 
				levávamos… Quanto aos meus livros, faço questão de salientar que 
				foram dados a lume com dificuldade. E saíram porque subsidiados 
				pela autarquia da minha cidade – onde gozo/gozava de respeito 
				pela minha condição de democrata, que ajudou a fazer o “25 de 
				Abril”. Por outro lado, nos tempos mais chegados com o Ruy 
				Ventura e o João Garção, tenho levado a efeito palestras e 
				conferências 
				
				aproveitando as abertas que se podem 
				e sempre 
				escorado no prestígio pessoal como poeta e militante democrata. 
				Escrevendo nos jornais que me dão eventual guarida, indo à rádio 
				de tempos a tempos, metendo aqui e ali a palpitação surrealista… 
				Nunca tive, todavia, qualquer dificuldade em mostrar-me em 
				Espanha e em colaborar com entidades culturais espanholas, em 
				razão da maior abertura que existe do outro lado da fronteira. 
				
				FM 
				Fala-me um pouco mais destes outros nomes referidos por ti e 
				ligados ao Surrealismo em Portugal. Muitos desses autores vêm 
				tendo suas obras reeditadas, o que permite uma reaproximação. 
				Quais nomes, no entanto, foram deixados para trás e que 
				consideras importante recobrar?  
				
				NS 
				Certos nomes de autores chegavam até mim por meio de referências 
				dispersas, como, por exemplo, Manuel de Castro ou José Sebag. 
				Este último ainda tive ensejo de o ouvir frequentemente na 
				Antena 2 da rádio, pois era ali, até falecer, locutor ou 
				realizador, não sei bem se mais isto que aquilo. Tanto um como 
				outro são de considerar, acho que fará sentido serem reeditados.
				
				Paralelo W 
				ou 
				Estrela 
				rutilante 
				são livros 
				de levar em conta no não tão vasto como isso campo dos 
				surrealistas que conseguiram epigrafar-se. Também devia, a meu 
				ver, fazer-se uma recolha – em estilo livro-catálogo, digamos – 
				das pinturas e cerâmicas de Carlos Martins, Lud e Ana dos 
				Santos. Cito ainda Pedro Oom, do qual não saiu nenhum livro 
				enquanto vivo. Faz sentido que seja de igual modo conhecido, ou 
				conhecido mais intensamente, entre vós. Um outro autor que me 
				vem à memória: Ricarte-Dácio, com estórias e crónicas entre o 
				real e o imaginário, com um tom muito peculiar de grande senhor 
				criando mansões misteriosas. 
				
				FM 
				Já me disseste que estou certo ao observar que és uma voz 
				praticamente isolada, em tua geração, no que diz respeito a uma 
				defesa do Surrealismo. Decerto que esta posição refletia também 
				certa marginalização, não? 
				
				NS 
				Eu diria uma clara marginalização, à qual fui sempre submetido 
				por responsáveis de órgãos de comunicação “de referência”. Isto 
				se deve, tanto quanto percebo, ao seguinte: 1. Clara incultura e 
				incapacidade de ler os que não sejam vedetes evidentes ou por 
				aí; 2. Necessidade de irem em frente com sua razão muito 
				própria: as estantes da literatura e da escrita serem o que eles 
				determinam; assim sendo, este não pode cá entrar (como é que 
				explicariam então o rosto do acervo que sem cessar montam ou 
				desmontam para efeitos de comércio mental ou mesmo social?); 3. 
				Intolerância/repúdio pelos que não fazem parte da equipa 
				(política, social, de confraria etc.) e eu não faço de fato 
				parte: não andei com eles na faculdade, não alinho no/s seu/s 
				partido/s, sempre fui dotado de uma certa vitalidade de 
				maneiras… (Em Portugal, a vida das literaturas também é muito 
				física… E eu, como fui pugilista e esgrimista, tive sempre a 
				segurança suficiente para dizer na cara de certos fulanos o que 
				de fato pensava deles sem temer levar uma sova…). Contra mim 
				falo: não tenho nem nunca tive, digamos, feitio para beijar a 
				mão a putas e putos literatos… ou gente “atravessada” – e isso é 
				mortal entre nós, apesar de ser um indivíduo pacífico que quase 
				nunca utilizou os músculos distribuídos por oitenta e tal 
				quilos… 
				
				FM 
				Ao lado da poesia tens uma produção teatral, de que são exemplos
				
				As estrelas sobre a casa 
				(em 
				elaboração), 
				O desejo 
				dança na poeira do tempo 
				e 
				
				Passagem de nível. 
				Já me dirás se algumas dessas peças foram montadas. O que mais 
				me interessa saber aqui é como identificas o corpo – sua 
				percepção espacial, a ressonância do convívio com outros corpos 
				etc. – em um plano de ação. Há uma distinção entre o corpo 
				evocado no poema e em sua representação teatral? 
				
				NS 
				Respondendo em seqüência: nunca foram encenadas. Pouco depois de 
				sair 
				Passagem 
				de nível, 
				um belga que estava nessa altura numa vila para os lados de 
				Évora a escrever um livro, como a achou sugestiva e original 
				propôs-me traduzi-la e levá-la à consideração de um teatro de 
				Bruxelas – se o setor cultural da edilidade portalegrense lhe 
				pagasse o tempo de trabalho, pois não era/estava muito abonado… 
				Escusado será dizer que, na altura, a gerência desse setor não 
				se dispôs a abrir os cordões à bolsa para esportular esses 
				míseros 500 euros… Também um indivíduo de um grupo de teatro, de 
				que aliás nunca esperei muito, analisou a obrinha – parece que 
				era gira… –, mas o fato de ter um padre (padre Joaquim Gráfico) 
				pouco ortodoxo entre os personagens, diminuiu-lhes o apetite: os 
				próceres locais podiam levar a mal… Quanto à questão do corpo, 
				vejo a coisa assim: nos poemas, mais ou menos marcadamente, 
				aparecem pessoas, mas a estrutura do poema dá-lhes uma 
				existência específica, só sugerida e como que suspensa sobre os 
				acontecimentos, a progressão de verso para verso. Então, 
				escreve-se uma peça – para que haja pessoas que executam os atos 
				do quotidiano: comer, dormir, passear daqui para ali, tomarem 
				banho, dizerem ao que vêm e o que desejam… 
				
				Nas peças 
				que citei, mistura-se o que as personagens dizem e o que o autor 
				diz por elas e o que elas dizem por ele: frases que sugerem algo 
				que se passou sem estar absolutamente descriptado, que o leitor 
				(ou o potencial espectador) deve destrinçar para entrar na posse 
				do conhecimento completo das peripécias. Por isso, julgo, é que 
				João Garção, em “Algumas palavras” que dedicou à peça citada, 
				refere que as personagens “ora assumem um ar circunspecto, ora 
				se lançam em tiradas decididamente talhadas no material do humor 
				negro e do onirismo fingidamente quotidiano”. Essa troca, esse 
				percurso incessante entre real e trans-real (se me permitem o 
				neologismo) interessa-me prodigiosamente e espero vir 
				futuramente a concretizá-lo noutras obras. 
				
				FM 
				Diz o estadunidense Allan Graubard, também poeta e dramaturgo, o 
				que segue: “No teatro, o ator projeta palavras, transformando o 
				corpo num palco que soa. O ator incorpora a linguagem ao 
				revivê-la dentro da peça. O poeta joga com a linguagem sem 
				recorrer a um ‘jogo’. Não há nenhum personagem, exceto nas 
				palavras que o poeta escreve, e na ressonância a que elas dão 
				vida.” [5] Estás de acordo? 
				
				NS 
				Creio que estou. Sim, sim, é muito arguta a observação que ele 
				faz e a forma como o faz. Também pensei nesse duplo sentido da 
				expressão inglesa: jogo e representação. Onde começa e acaba o 
				jogo, onde se representa e onde nos representamos? Devo dizer 
				que para mim o teatro – a sala de teatro, assim como o circo, 
				que adoro – é o lugar por excelência do encanto e do segredo, o 
				território do maravilhamento, do mistério, das perguntas 
				nucleares que se nos colocam enquanto seres que por cá vivem 
				durante os anos que nos é dado viver. Gosto muito de cinema, mas 
				é na sala de teatro que volto de novo à infância e de repente 
				tenho centenas de anos e, parece-me, fico entendendo algumas 
				coisas. Talvez por isso não vou muito ao teatro, por receio de 
				levar com “alfacinhismos” nas narinas – quando apanho um fraco 
				“banquete” fico infeliz por muito tempo. Mas quando o que me foi 
				proporcionado é efetivamente bom, é um deslumbramento que me 
				suscita a vontade de fazer logo coisas a seguir…  
				
				FM 
				No que diz respeito ao “temperamento” da imprensa em Portugal, 
				isto tem sido a tônica dos organismos de comunicação em todo o 
				mundo, não constituindo uma particularidade portuguesa. O que 
				intriga é a maneira como esta forma violenta se tornou natural 
				com a conivência da própria casta intelectual que a deveria 
				combater. Meter-se com a mídia hoje é coisa para excluídos que 
				ainda sonham em ser incluídos. Já não se questiona a deformação 
				moral do que seja. Não se trata de ideologia ou estética e sim 
				de um naufrágio existencial. 
				
				NS 
				Gostaria de contar uma pequena estória que eu apelidaria, com 
				humor negro, de “proveito 
				e exemplo” 
				como se diz por cá: no filme do Oliver Stone, sobre o 
				assassinato do Kennedy, o procurador que está a investigar a 
				conspiração, ao encontrar-se com o operacional reformado que 
				pertencera aos mais altos círculos da “secreta” e lhe dar 
				informações, começa a falar-lhe na 
				filosofia 
				do mal 
				dos 
				previsíveis assassinos e em outras coisas transcendentes que 
				tais. Ele, com um sorriso, diz-lhe então: “Deixe-se de 
				filosofias e de ‘poesia’ e siga a pista da massinha…”. A minha 
				posição perante o que deixas transparecer na tua observação é 
				exatamente a mesma. A meu ver, não se trata de um naufrágio 
				existencial e sim de algo que tem a ver com a charra e crassa 
				falta de ética e do desejo de estar à manjedoura do poder. Há 
				uma parte da intelectualidade que questiona a deformação moral 
				que muito bem referes. Mas são defenestrados, marginalizados e 
				mesmo perseguidos, quando é necessário. Creio que os movimentos 
				sociais de ponta – nos quais os surrealistas a mais de um título 
				militam – devem forçá-los a definir-se – e não se julgue que é 
				um esforço ingênuo ou desinteressante, este. Pela minha parte, 
				não estou nada intrigado com os fastos que os lacaios de sempre 
				se auto-ofertam: os oportunistas sempre jogaram pelo seguro e 
				têm artes de estar sempre do lado em que há sol… 
				
				Creio que 
				a pouco e pouco a figura está a se reconfigurar: também os do 
				Leste se pensavam eternos e veja-se a implosão que os deitou 
				todos abaixo. Nisto, sou otimista. Também os que pensam que a 
				bambochata seqüente durará encontrarão o seu Waterloo mais 
				depressa do que julgam. Hoje, já nem os próprios gurus da 
				economia de mercado se atrevem a arvorar um sorriso sobranceiro, 
				eles sabem bem quanto as suas aparelhagens aparentemente de 
				precisão são falíveis. As próprias religiões reveladas, que são 
				outra das partes (baixas) da questão, sentem um frio mortal à 
				sua volta. Mesmo os chefes do Islã, de acordo com dados a que se 
				tem acesso, no fundo estão muito pouco tranqüilos – e por isso 
				tentam uma fuga para a frente mediante o fundamentalismo mais 
				agreste e o terrorismo como razão intrínseca duma linha que já 
				se perdeu na História e está prestes a perder a própria 
				História. Aos surrealistas caberá então uma tarefa definitiva: 
				colocar sempre e cada vez mais em evidência as margens do 
				amor 
				sublime, 
				da transfiguração imaginativa para além do simplesmente 
				literário ou societário. Como diziam e viviam os mestres 
				alquimistas, a questão que se põe é mais 
				artística
				
				(ou seja, 
				de 
				paixão
				
				e de um 
				realismo que sabe espiritualizar a matéria e materializar o 
				espírito) que técnica ou filosófica (no sentido estrito). O 
				próprio exagero das forças dominantes – entre as quais os 
				médias
				
				se contam 
				– em rebaixar a ética, nos diz que eles percebem que existe 
				certo estrebuchar imparável. Não tenho da vida um sentido 
				catastrofista e, por isso, sinto certa calma que me permite 
				viver sem a angústia que é natural muitos terem colada aos ossos 
				e à alma. 
				
				FM 
				Qual a situação hoje do Surrealismo em Portugal? Bem sabemos da 
				importância do trabalho que vem realizando um crítico como o 
				Perfecto Cuadrado. Contudo, não te parece que se está dando ao 
				Surrealismo uma conotação essencialmente historicista, 
				minando-lhe a atualidade? 
				
				NS 
				Confesso, sem nenhuma malícia, que não conheço muito o trabalho 
				a que te referes. E isso será já significativo em si. Num país 
				normal, eu não poderia deixar de ter bom conhecimento disso. Mas 
				se calhar sou como o personagem do livro do Richard Wright sobre 
				o racismo, um 
				homem 
				invisível. 
				E como eu há mais… É claro que isto sucede porque, precisamente, 
				o Perfecto Cuadrado estará dando ao surrealismo isso que 
				referes. Ou então foi alguém que, interessado, inteligente, 
				agilmente manobrador, lhe deu a volta, como se diz que o 
				Napoleão fez a um encarniçado opositor. Mas isto são 
				conjecturas. Não conheço esse estudioso, não sei se é uma alma 
				cândida ou uma pessoa que, interessada e ardente, terá 
				eventualmente do surrealismo português a visão que o imperador 
				Guilherme tinha da Alemanha: uma dama pronta para todas as 
				aventuras… Sério calculo eu que deva ser. Seja como for, o 
				historicismo interessa a muita gente – desde logo os pequenos 
				aristocratas da fantasia aplicada, que são ótimos para lançar 
				uma cortina de nevoeiro sobre os tempos e os modos. 
				
				Só posso, 
				a este propósito e de boa catadura, dizer que houve uma ensaísta 
				que em tempos escreveu um tomo sobre o surrealismo que, lido por 
				mim e pelo Carlos Martins – que, aliás, lhe mandou uma carta, eu 
				dispensei-me de tal maçada –, nos fez rir primeiro a bandeiras 
				despregadas. Aquilo que lá dizia que nós tínhamos feito era, com 
				o devido respeito, uma traquinice pegada, não foi nada daquilo. 
				Depois, pelo menos eu – que tenho um temperamento dramático, 
				quase trágico –, gelou-se-me o riso nos lábios. 
				
				FM 
				Olha, o Perfecto é um espanhol que vem cuidando de recuperar a 
				memória do Surrealismo em Portugal. Está à frente do Centro de 
				Estudos Surrealistas, da Fundação Cupertino de Miranda, e vem 
				publicando alguns livros, tanto pela Ed. Assírio & Alvim como 
				pela Quasi Edições. Tem sido também o responsável por algumas 
				importantes exposições de artistas portugueses ligados ao 
				Surrealismo. A rigor, tem cuidado melhor do Surrealismo em 
				Portugal do que qualquer português. 
				
				NS 
				Fico ciente. Então ainda bem. Ou ainda mal – passe a ironia – 
				isso diz bem da estrutura lusitana do “panorama” envolvente. 
				Espero, sinceramente, que esse organismo da dita fundação não 
				seja uma estrutura para liofilizar o surrealismo, mas sim com 
				pundonor e 
				
				caballerosidad 
				(com 
				heterodoxos e competentes 
				cojones, 
				para seguir o requisito de Pavese) destrinçar as coisas que 
				importam ao mundo e à realidade sem antolhos e sem academismos 
				decentezinhos e compenetrados. 
				
				FM 
				Até 2005, quando então te aposentaste, foste o responsável pelo 
				Centro de Estudos José Régio, em Portalegre. De que maneira isto 
				permitia alguma aproximação entre literatura em Portugal e 
				demais países de língua portuguesa? O que se conhece da poesia 
				brasileira em Portugal? 
				
				NS 
				Régio era um poeta que, apesar do que certos sectores ainda 
				pretendem, prezava os encontros, além de ser dotado de um 
				espírito curioso e interessado. Tinha muito razoáveis contactos 
				no Brasil. A talhe de foice: Ribeiro Couto (que ele recebeu em 
				Portalegre numa noite memorável de que há registros), Cecília 
				Meireles, Dante Milano, Manuel Bandeira, Herberto Sales, José 
				Paulo Moreira da Fonseca, Mauro Mota, Domingos Carvalho da 
				Silva… Trocavam os livros, exprimiam-se mutuamente apreço e 
				admiração – e, como se diz, passavam palavra, procediam a 
				cooptações. Logo que cheguei ao Centro – e já lá vão 13 anos –, 
				comecei imediatamente a ler tudo o que ele tinha em acervo, não 
				só por brio profissional e necessidade decorrente da minha 
				função, mas por gosto e vontade. Aliás, há lá livros que se 
				calhar já só se encontram nas bibliotecas nacionais… Em certos 
				casos, foi um deslumbramento. Autores de que só tinha ouvido 
				falar, nalguns casos e, noutros, lera de raspão na, à altura, 
				mal fornecida Biblioteca da cidade, estavam à minha disposição! 
				É claro que depois passei as minhas leituras, entre outros 
				elementos que lhes fornecia, aos visitantes. Não é para me 
				gabar, mas muitas pessoas em Portugal passaram a ler autores 
				brasileiros com renovado interesse depois da minha 
				“evangelização”… E não só visitantes, mas confrades e amigos. E, 
				muitas vezes, quando ia ou vou à Rádio, frequentemente leio 
				poemas dos teus compatriotas. Porque tenho prazer nisso, porque 
				eles merecem – mas também porque acredito que é importante 
				difundir a literatura brasileira. E tenho sido “recompensado”: 
				tempos atrás, por exemplo, foi-me solicitado por uma senhora de 
				Almada que lhe enviasse fotocópias de poemas de Moreira da 
				Fonseca e, de uma escola do Baixo Alentejo, fui solicitado a 
				proferir uma palestra sobre Régio e os escritores brasileiros, o 
				que fiz, tendo depois escrito um pequenino ensaio. Não me parece 
				que se conheça muito da vossa poesia cá no país. Em geral, 
				fala-se em Bandeira, Murilo Mendes, Jorge Amado, Lêdo Ivo, 
				outros como Rubem Fonseca – mas é nas correntes intelectuais que 
				o conhecimento pode ser mais fundo. Estou a lembrar-me que um 
				poeta de categoria, C. Ronald, eu mesmo só relativamente há 
				pouco tempo o li. E deve haver dezenas de autores de mérito que 
				desconheço, o que diz de imediato que se num leitor tenaz e 
				intemerato como eu isso é assim… como não será noutros um pouco 
				mais distantes da leitura! 
				
				FM 
				Houve um momento em que se entendia em perfeita sintonia o poeta 
				e o revolucionário. Nos anos 40, o Benjamin Péret chegou a dizer 
				que “o poeta atual não tem outro recurso que ser revolucionário 
				ou não ser poeta, pois deve lançar-se sem cessar ao 
				desconhecido”. Depois houve certo 
				
				apaziguamento 
				dessa 
				idéia de se lançar ao desconhecido, restringindo-se mais ao 
				âmbito da linguagem e não propriamente de entrega total, a 
				analogia entre vida e obra. Também o termo 
				
				revolucionário 
				caiu em um 
				desgaste sem fim. Pensando em Péret, qual recurso tem à sua 
				disposição ou imposição o poeta atual? 
				
				NS 
				O que sempre teve: a linguagem e a escrita que ela propicia, se 
				a soubermos merecer. E deste termo, merecer, já decorre que o 
				poeta verdadeiro é sempre um revolucionário: revoluciona os 
				conceitos, as estruturas de comunicação. Revoluciona o real 
				quotidiano e o imaginário das comunidades, inclusivamente. O que 
				acontece é que em determinado período se começou a chamar 
				
				revolucionário 
				não ao 
				revolucionário mesmo, mas ao tipo que seguia os ditames dum 
				certo partido, duma agremiação de chefes e de 
				
				apparatchikis 
				que 
				estavam longe de ser novos e propugnadores do novo: eram velhos 
				e relhos, cínicos e até hipócritas. Ao serviço da propaganda, 
				elaborava-se versalhada que depois os alto-falantes se 
				encarregavam de promover como 
				o que 
				interessava, 
				estabelecendo o equívoco e fazendo o deserto à volta. Levantando 
				processos de intenção aos que queriam ver bem e ver livremente… 
				(Do outro lado estavam os boas-bocas do hábito e da conversa 
				frascária pseudometafísica ou, numa versão muito atual e 
				portuguesinha, os do “regresso ao real” que não passa 
				frequentemente de álibi para semi-fazedores com pouco gás). 
				
				Pela minha 
				parte – e fico bem satisfeito com tal fato, tive sorte e 
				felicito-me por isso – senti sempre a ligação entre a renovação 
				da linguagem e da escrita e o apelo do magnífico desconhecido. 
				Creio que pude conservar a disponibilidade para, como dizia o 
				mesmo Péret, “navegar sem norte e sem estrela/através das 
				tempestades/ rumo aos areais refulgentes de ágatas/onde brilham 
				os olhares provocantes das opalas”. Estou a citar de memória, 
				mas se há diferenças nos versos creio que são talvez mínimas… 
				
				  
				
				NOTAS 
				
				1. Nadja [trad. 
				Ernesto Sampaio]. Editorial Estampa. Lisboa. 1971. 
				
				2. “A 
				propósito da poesia de Nicolau Saião”. Miradouro. s/d. 
				
				3. APE - 
				Associação Portuguesa de Escritores. Nicolau Saião recebeu o 
				prêmio Revelação/90, pelo livro 
				Os 
				objectos inquietantes, 
				que seria publicado em 92 pela Editorial Caminho, de Lisboa. 
				
				4. PIDE: 
				Polícia Internacional e de Defesa do Estado, a “secreta” de 
				Salazar. O nome, com o sucessor Marcelo Caetano, mudou para DGS 
				(Direcção Geral de Segurança). Contudo, toda a gente lhe 
				continuava a chamar o antigo nome, o que, aliás, marcava uma 
				posição de conhecimento da essência. 
				
				5. Graubard, 
				Allan. “Notas para a reintegração do gesto e da linguagem”. [trad. 
				Eclair Antonio Almeida Filho]. Texto publicado na revista 
				Agulha
				
				# 50 
				[março de 2006]. Em nota do tradutor, destaca-se o que segue: 
				“Jogo de palavra intraduzível com 
				play
				
				
				significando peça de teatro e jogo”.  |