P R O J E T O   E D I T O R I A L   B A N D A   L U S Ó F O N A

 

 

J O R N A L   D E   P O E S I A   |   F O R T A L E Z A l C E A R Á l B R A S I L
COORDENAÇÃO EDITORIAL   |   SOARES FEITOSA | FLORIANO MARTINS
2000-2010
 

 

 

BANDA LUSÓFONA | BRASIL

Nicolas Behr | (1958)

Nicolas Behr e as seletas laranjas da poesia de 70

Aíla Sampaio

 

Se eu tivesse que dizer como gostaria de ler ou escrever um poema nos dias de hoje, não hesitaria: Não adianta colocar o poema num carro alegórico. Todos vão ver o carro alegórico. Eu gosto do estilo claro, limpo, direto. Sem rodeios, às vezes até sem poesia.

 

Poesia é pra ler com os dentes e mastigar bem. Com os dentes de Dante, aquilo que era poeta. Nós somos apenas bardos. Ai é só engolir, ou deglutir. Ou ruminar. E transitar sossegado entre o gado manso, evitando prêmios e famas. E administrar esse latifúndio literário onde os críticos berram e os leitores pastam.

Nicolas Behr

 

Introdução

A poesia produzida nos anos 70 é sintética, irreverente, crítica, e revela a inquietação de uma juventude que vivia à margem do sistema editorial do país. Em plena ditadura militar, os poetas vendiam seus poemas impressos em mimeógrafo, livretos artesanais, de bar em bar. A produção literária desse período recebeu várias denominações, entre elas: “poesia jovem dos anos 70”, “poesia marginal” e “poesia mimeógrafo”. Nicolas Behr, remanescente desse grupo (que nunca foi propriamente um grupo) mantém vivo o espírito dessa poética cáustica que constitui o motivo deste ensaio.

 

O que é ‘poesia marginal’?

Poesia marginal designa a produção poética caracterizada pela experimentação estética, além do abandono, por parte dos poetas, dos meios tradicionais de circulação das obras (editoras, livros, livrarias). A poesia foi levada às praças, às ruas, aos bares e às universidades. Os poemas circulavam em cópias mimeografadas, eram pendurados em "varais", jogados do alto de edifícios, distribuídos de mão em mão. Marcada pelo trabalho artesanal, praticada poetas que queriam se expressar livremente em época de ditadura, essa poética revela o espírito criativo de jovens que buscavam caminhos alternativos para divulgar sua poesia, mesclando, inadvertidamente, técnicas do concretismo e do poema-processo, experiências de vanguardas anteriores, já que defendiam o ‘fim’ do verso convencional e importavam-se com a espacialização e os efeitos visuais. Recebe influências claras do Modernismo de 1922, do Tropicalismo, e de movimentos de contracultura como o rock, o movimento hippie, histórias em quadrinhos e o cinema, sobretudo o cinema novo. Os textos são sempre pautados no senso de humor, na linguagem coloquial, espontânea, e nas temáticas cotidianas e urbanas.

 

Nicolas e a poesia marginal

A geração que fez a poesia dos anos 70, nos rastos do Tropicalismo, lutava pelo seu espaço e criticava o momento político do Brasil – a Ditadura Militar – que impunha censura à mídia e às artes. Contemporâneo de Chacal, Ana Cristina César, Chico Alvin, Cacaso, Ulisses Tavares e Waly Salomão, Nicolas Behr é, hoje, o representante mais atento dessa turma de poetas que, em diversas partes do Brasil, vivia a mesma realidade de 'exclusão editorial'. Em entrevista à Revista Há Vagas, nos anos 80, Alvin, fazendo um balanço sobre a produção literária da época, diz que “as experiências eram individuais, mas havia um comportamento comum em torno de uma série de problemas vitais”. Acrescenta que é uma poesia bastante realista e que “havia uma total indisponibilidade aos manifestos. Éramos contra as teorias... o movimento nunca chegou a ser organizado, havia, isso sim, uma conspiração de grupos”.

De fato, o jocoso manifesto que surgiu, escrito por Chacal, foi em tom de total irreverência. Ele traduz bem o espírito anárquico que os movia. Além de definir explicitamente o que é ser um poeta marginal – “não correr atrás de padrinhos literários”, “não sentar em fúnebres academias para milhar o biscoitinho” -, institui 11 artigos nos quais constam os direitos deles, entre os quais, a “aposentadoria por tempo indeterminado de serviço” e “abatimento no preço do papel”. Na verdade, o texto desfere ironias às editoras, às academias e à poesia institucionalizada, aos aparatos estéticos. Assim, como uma espécie de ‘sindicato’ para agregar os poetas fora do sistema, ele declara criada a POBRÁS, órgão que lutaria pelos direitos reivindicados. É nesse mesmo tom sarcástico que Behr se apropria da sigla para intitular dois poemas seus igualmente corrosivos:

POBRÁS

- poesia brasileira –

orgulhosamente apresenta

um produto que vai pro lixo:

os poetas

(Laranja seleta p.139)

 

- poesia brasileira –

orgulhosamente apresenta

um livrinho que veio do lixo:

este

(Laranja seleta p. 152)

 A figura do poeta, como a do livro, é vista por eles como descartável. Nicolas Behr faz esse deboche, mas ‘não larga o osso’, continua criando e distribuindo poesia a mancheias. Ele surgiu na poesia brasileira, em fins dos anos 70, junto aos poetas rotulados de ‘marginais’ por estarem, como dissemos, sem editora para publicar seus livros. Como todos dessa geração de 70, ele imprimia seus poemas em mimeógrafos e os vendia nos bares, nas portas de teatro, em praças públicas ou onde houvesse público para essa produção ‘fora do sistema’. Sua primeira obra apareceu em 1977, quando ele lançou, no Planalto, um livrinho mimeografado intitulado “Iogurte com farinha”. Seguiram-se: “Restos Mortais”, de 1980, que reúne os livros Iogurte com farinha, Grande circular, Caroço de goiaba, Chá com porrada e Bagaço, lançados entre 1977 e 1979; “Vinde a mim as palavrinhas”, de 2005, reúne os livros “Com a boca na botija”, “Perto do dia”, “Elevador de serviço”, “Põe sai nisso!”, “Entre quadras”, “Brasiléia desvairada”, “Saída de emergência”, “Kruh”, “303F415”, “L2 noves fora W3”, lançados entre 1979 e 1980. A criação dos anos noventa aparece em “Porque construí Braxília”, “Beijo de hiena”, “Pelas lanchonetes dos casais felizes”, “Segredo secreto”, “Viver deveria bastar”; vieram depois: “Em Primeira Pessoa”, 2005, “Umbigo”, “Menino diamantino”, “Peregrino do estranho”, “Braxília revisitada”, “ Introdução à dendrolatria” e “Laranja Seleta”, o primeiro por uma editora convencional (a Língua Geral) e, recentemente, “Beije-me”, em produção independente.

A despeito de tudo o que se fala dos jovens poetas de 70, a poesia por eles produzida não foi esvaziada ideologicamente. Embora não se enquadrassem no engajamento político-partidário da poesia produzida nos moldes prescritos pelo Centro de Cultura Popular, da União Nacional dos Estudantes (UNE), durante a década de 60, os textos aproximavam-se da banalidade cotidiana e tornaram-se um instrumento de luta, de reação aos tantos impedimentos e aos ‘quadros de infelicidade’ que cerceavam a vitalidade dos poetas, como afirmou Alvin. Saiu, pela espontaneidade da palavra poética, o grito rebelde de uma juventude podada pela repressão militar, que queria “destoar do coro dos contentes”, como anunciava Torquato; além de fazerem apologia à liberdade de ser e fazer, lançaram críticas ao momento político, eivadas de um sarcasmo às vezes dilacerante:

e eis que

da mão decepada

brotaram dedos

(Laranja seleta p.106 )

 

quem teve a mão decepada

levante o dedo

(Laranja seleta p.130)

A alusão à tortura é nítida, como nítido parece o poder de resistência dos jovens submetidos involuntariamente à situação. Era a vida o que os interessava. Nicolas Behr, na transversal de todas as questões do seu tempo, ergue ainda uma bandeira ecológica, ao colocar a natureza como um dos motivos constantes de sua criação, não raro por meio de jogos ambíguos, mas sempre bem-humorados. A referência clara aos desmatamentos de Brasília pode, na verdade, subtender bem mais que a desertificação da cidade; é a solidão imposta pelo lugar ermo de calor humano:

corte essa árvore!

ela atrapalha a vista

que tenho do deserto

(Laranja seleta p.117)

Independente de críticas, a relação com a natureza é metaforicamente seu eixo como homem que se desloca numa cidade cujo concreto não pode suplantar o afeto. Não é à toa que a fauna e a flora são elementos recorrentes em seus versos: Flamboyant, pé de manga rosa, borboletas, cupim, flor do pequi, fícus, o que parece um registro de sua mundividência ecológica. A simbiose homem-árvore denota explicitamente o poder do verde em sua vida, como se lê em: dento de mim / vive uma árvore // árvore interior / que me põe de pé // árvore que é quase corpo / quase troco / quase casca // quase nada (Laranja seleta p.106). A árvore é a metáfora do homem que ele é. Ou seria o contrário?

 

O homem e a cidade

Nascido em Cuiabá em 1958, Nicolas Behr mora em Brasília desde 1974 e lá fez sua trilha pessoal e profissional. Mantendo o estilo sintético, ele ultrapassou o estigma da poesia datada e imprimiu atemporalidade à sua poética, cujas temáticas são, essencialmente, o homem e a cidade. O homem aparece na recuperação do menino que, a Drummond, pinta sua infância: “a mãe campeia dores / que o pai junta no curral / e o menino, bezerro enjeitado, /  espera a noite branca / se derramar no úbere do céu / pra mamar a via láctea” (Laranja seleta p.29)

Há, no homem, um menino que resiste à maturidade e que é reconstituído permanentemente. Ele se desdobra no tempo transcorrido, incapaz de ser recriado pela palavra (p.34), mas, ainda assim, se revela em sua multiplicidade inexorável: “velha infância que carrego // bato no peito e pergunto:/ tem alguém aí? // quantos meninos correm dentro de mim?”(Laranja seleta p.28)

“O anzol da memória”(p.29) é permanente, bem como o perene “garimpar de lembranças”(p.27), seja para descrever a falta de concentração do menino na missa (A missa, p. 30-31), a rebeldia na escola (Ficou bonito o meu desenho, professora? p.32) ou fatos cotidianos que mostram o menino no homem, no jovem que vislumbrava o futuro cheio de planos: “ano que vem eu me caso / ano que vem eu compro um fusca / ano que vem eu termino a faculdade / ano que vem eu vou mudar de vida / e morar no andar de cima” (Laranja seleta, p.119)

A cidade é evocada constantemente, numa relação que demonstra seu deslocamento espacial e existencial entre quadras e blocos, afeto e concreto, numa relação ambígua que ora critica, ora celebra, mas sempre a evoca, tenta entender e definir seu significado: “brasília é a incapacidade / do contato afetivo / entre a laje e o concreto”. Brasília é seu lugar no mundo, lugar de desencontros e desajustes, lugar de eixos que se cruzam / pessoas que não se encontram (p.89). A ela, ele declara:

brasília, faltam exatos 3232 dias

para o nosso acerto de contas

 

me deves um poema

te devo um olhar terno

...

não te reconheço

não me reconheces

(Brasília enigmática in: Laranja seleta, p.80)

O descompasso recíproco entre o poeta e a cidade, e a inevitável convivência entre ambos, levam-no a criar, qual Manuel Bandeira, sua ‘Passárgada’. Assim ele explica em “Porque construí Braxília”: “Braxília não, Braxília é sonho. A cidade que cada um de nós pode inventar e construir, sem tijolos e sem dor. A utopia dentro da utopia, como se isso fosse possível. A outra Brasília, a sua, a nossa, a velha, a real, já foi sonho sim. Já foi. Hoje esta cidade são linhas retas que substituímos por linhas sinuosas, barrocas. A imposição da régua substituída pela disposição do traço livre e solto”. De acordo com a análise de Diego Pretarca, “Além de toda a simbologia que a cidade representa, Nicolas alegoriza do seu modo (na expressão Braxília, por exemplo) em sua maneira de se relacionar com a cidade pela ótica atual, desde a promessa de felicidade e a realidade que hoje Brasília apresenta”. Com efeito, essa visão arquitetônica do lugar ideal está na desconstrução do espaço real e na liberdade de fazer a utopia possível: chega de linha reta! Ele mesmo (Nicolas) declara: “Construí Braxília porque Pasárgada fica longe demais. Braxilia é uma cidade não-capital, não-poder, não-Brasília. A utopia dentro da utopia”. Tão presente está a cidade na construção do seu pensamento, que até a musa é cantada nos moldes e traços do Planalto, como se lê em “Vozes do cerrado” (p.70):

naquela noite

suzana estava

mais w3

do que nunca

toda eixosa

cheia de l2

 

suzana,

vai ser superquadra

assim lá na minha cama.

 

Os seletos diálogos

“Laranja Seleta” (2007), a coletânea de que venho falando até agora, marca os 30 anos de criação de Nicolas Behr, fazendo uma síntese da sua criação poética. Chico Alvim, na orelha do livro, diz que “Há muitas entradas e saídas na poesia de Nicolas Behr. Como se trata de uma poesia em que a noção de movimento, de lugar de onde parte o autor em direção ao mundo, e de seu próprio caminhar é fundamental, essa ideia de situações em movimento, que se fecham e se abrem para o poeta, está muito presente”. De fato, a noção de movimento espacial e temporal é nítida e parece traduzir a inquietude de um indivíduo em permanente transição.

A obra é representativa da trajetória do poeta que, embora mantendo o estilo aparentemente simples e prosaico da geração mimeógrafo, não tem soluções formais estagnadas, dispensa o anacronismo. Além de evocar a cidade e o homem, seus textos refletem, muitas vezes, o processo criador e dialogam constantemente com textos modernistas, reafirmando o legado da poesia deles aos poetas de 70. A linguagem coloquial e os temas banais, a poesia breve, nenhuma dessas características tornam-nos originais. O que singulariza essa poética é exatamente a atitude de "desengravatar" a poesia e levá-la às ruas, às praças, às praias, aos bares, às universidades. No ambiente ambíguo de contracultura que se impunha nos grandes centros urbanos, a poesia marginal surge com a intenção de contestar, fosse pelo ““desbunde”, pelo palavrão, pela apologia do lado sórdido da vida ... Daí ser chamada também de “lixeratura”, a literatura do lixo, da sujeira”, como afirmou Nely Novaes. A juventude da época, tendo as mesmas aspirações, os mesmos anseios e frustrações, identificou-se com a forma simples e ao mesmo tempo arrojada como enfrentavam os padrões estabelecidos.

Nicolas viveu intensamente essa realidade e sempre adotou um comportamento ousado tanto em relação à vida quanto aos textos que produzia, todos eivados por posturas iconoclastas e demolidoras. Criativo e seguro do seu estilo, manteve-se fiel à poética sem compromisso com discursos elaborados e estéticas convencionais. Poucos dos seus poemas trazem títulos e nenhum utiliza a letra inicial maiúscula quando ‘exigida’ pela gramática, o que reitera a postura de vanguarda de não estabelecer hierarquia entre as palavras.

 

Os intertextos

A intertextualidade é, também, um recurso recorrente na produção poética dos poetas de 70, sobretudo a paráfrase e paródia, diálogos que, respectivamente, retomam e subvertem o sentido do texto base. Behr faz, constantemente, releituras de poemas emblemáticos da nossa literatura, como ocorre na clara alusão ao anjo gauche, do “Poema de sete faces”, de Drummond, que se transveste em árvore:

quando eu nasci uma árvore torta

dessas que vive no cerrado

chegou pra mim

e não disse nada

 

não havia nada a dizer

não havia nada a salvar

(Laranja seleta p.118)

Já em “Drummond brasiliensis” (p.96), é o poema “José” (de Drummond), o texto base da criação de Behr. O eu-poético usa sua voz, com toques irônicos, para clamar por saídas, mas todas se revelam improváveis:

 “Brasília, e agora?

Com o avião na pista quer levantar vôo

Não existe vôo

Quer se afogar no Paranoá mas o lago secou

Quer falar com o presidente mas este viajou...”.

 “Política literária” (p.59) pede licença, também a Drummond (com licença, Carlos), para parodiar o poema homônimo:

“O poeta municipal

discute com o poeta estadual

qual deles é capaz de bater o poeta federal.

Enquanto isso o poeta federal

tira ouro do nariz”.

O poeta de Behr, entretanto, “tira lama do sapato” em vez de ouro, o que demonstra certo sarcasmo em relação ao poeta tradicional e à irreverência do poeta descompromissado com tendências tradicionais. Em “O horror, o horror” (Laranja seleta p. 162 ), o poema-notícia tem o mesmo prosaísmo do “Poema retirado de jornal”, de Manuel Bandeira, numa recriação da linguagem jornalística que aproxima o leitor do texto poético tanto pela ausência de formalidade no uso da língua quanto pela simplicidade temática:

“como, depois de ler nos jornais a notícia

da morte do menino que foi torturado

com óleo quente para revelar o paradeiro

do pai, escrever um poema?

 

como se olhar no espelho?

como dividir com vocês todos

esse ar que respiramos?

como ficar indiferente e passar à próxima página?

como sair na rua e desejar bom-dia

aos que passam?

como continuar vivendo?

 E as releituras se desdobram em recriações não apenas de textos de poetas modernistas. Em “Vozes do cerrado”, o diálogo se dá com “Vozes d’África”, de Castro Alves. A evocação da cidade, o clamor para que ela se revele, é feito nos moldes em que o poeta romântico evocou Deus para mostrar a atrocidade do tráfico de escravos nos navios negreiros: “brasília! brasília! / onde estás / que não respondes? / em que bloco / em que superquadra / tu te escondes?”. (Laranja seleta p.70)

Caetano Veloso, ícone do movimento Tropicália, esteio dos poetas da geração mimeógrafo, tem seu discurso incorporado na paráfrase da canção “Sampa”. Enquanto o baiano canta sua emoção ao “cruzar a Ipiranga e a avenida São João”, Behr, mais uma vez, revela sua relação ambígua com Brasília: ao mesmo tempo em que a considera um deserto, confessa-se emocionado ao atravessar suas quadras: “alguma coisa acontece / no meu coração / que só quando cruzo / a w3 l2 sul / ou eixão”. (Laranja seleta p.71)

Em “Capim Navalha” (p.121), a confissão do eu-lírico sobre sua própria existência é feita por meio de um quádruplo diálogo. Primeiro, com o “Poema em linha reta”, de Álvaro de Campos, heterônimo de Fernando Pessoa. Comparemos os versos:

“E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,

Indesculpavelmente sujo,

Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,

Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo...”

(Álvaro de Campos)

 

“eu, irrecuperavelmente eu

desgraçadamente eu

irrecuperavelmente eu”

(1ª estrofe do poema de Behr in Laranja Seleta)

Depois, o diálogo ocorre com “O guardador de rebanhos”, de Alberto Caeiro (outro heterônimo de Fernando Pessoa), com o “Poema de sete faces”, de Drummond, também parodiado por Adélia Prado em “Com licença poética”. Leiamos um fragmento dos três e mais a 2ª estrofe do poema de Behr:

“Eu nunca guardei rebanhos,

Mas é como se os guardasse.

Minha alma é como um pastor,

Conhece o vento e o sol

E anda pela mão das Estações

A seguir e a olhar”.

(Alberto Caeiro)

 

“Quando nasci, um anjo torto

desses que vivem na sombra

disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida”.

(Drummond)

 

“Quando nasci um anjo esbelto,

desses que tocam trombeta, anunciou:

vai carregar bandeira.

Cargo muito pesado pra mulher,

esta espécie ainda envergonhada”.

(Adélia Prado)

 

“eu, o guardador de rebanhos alheios

eu, que não consegui escrever

o poema em linha reta

eu, o anjo torto dos outros

eu, a sua adélia prado”

(Nicolas Behr)

 

Nessa miscelânea de textos que se intercalam na poesia de Behr, nota-se a capacidade da assimilação de suas leituras de poetas tradicionais, distintos de vanguardas, e a influência que exerceram e exercem em sua poética. Todos os textos parafraseados servem-lhe de base para discutir seu próprio processo criador desprovido de pretensões de originalidade ou da prepotência de ter (ou querer ter) escrito uma obra prima.

 

Finalmente, um beijo em Brasília

O livro “Beije-me”, lançado recentemente, reafirma a relação do poeta com a cidade de concreto, que foi cenário não apenas de uma ditadura que podou a criação artística, como já afirmamos, mas de uma juventude que resistiu aos desencantos da censura e do concreto armado, criou alternativas para se manter viva e, metaforicamente, ‘arborizou’ Brasília, para que nela se pudesse respirar.

 “Beije-me” é um álbum estilizado, impresso em papel couché, com fotos da capital federal ainda nascente. Nicolas cola sua história à da cidade que o viu ‘adolescer’ e transformar-se num adulto. Como ele mesmo diz, “são instantâneos de uma geração brasiliense que ousou descer dos blocos e assumir Brasília na passagem dos anos 70 para os 80. Flashes de uma moçada alegre, rebelde, criativa e roqueira”.

Esse filtro, que só o tempo concede, faz com que vejamos, através das fotos por ele selecionadas, uma forte resistência à solidão da cidade, literalmente construída, arquitetada para ser o centro do poder; jovens andam em busca do espaço para ser e fazer poesia, sob a trilha sonora de um Caetano que bradava “Caminhando contra o vento, sem lenço sem documento... eu vou”. Diferente, porém, quando retomamos as palavras de Jean-Paul Sartre, incluídas por Caetano na letra, eles sempre levavam algo no bolso ou nas mãos: fosse um spray para grafitar muros, canetas para escrever em guardanapos, álcool e tinta para o mimeógrafo.

Parte do acervo iconográfico de Behr são fotografias de muros e paredes grafitados com frases que revelam bem o espírito da moçada: “Viva a arte em 80”, “Leia poesia”, “A poesia passou por aqui”, “ouvira a vaia do vento”, “Sei tua sede, parede”, “As paredes tem boca”, Vamu nessa Vanessa”, “Cadê você?”. Eros, personagem ativo nessas inscrições, a revelar a liberação sexual, talvez, faz questão de deixar sua marca nos muros, em cima de pichações já feitas: “Eros esteve aqui”. Muitas revelam protestos: “Brasil canalha”, “Terrorista é a ditadura, que mata e censura”, “Figueiredo é...”. “Aos militares: a forca/Aos perdedores: o medo/ Aos vencedores: o nada”. Outras mostram a busca por um horizonte mais ameno: “esperança, cadê você?”, “Esperamos por uma aurora”. O poema “Te amo 24 horas por segundo”, de autoria do Nicolas, aparece inteiro escrito num muro. No final da obra, há textos sobre a grafitagem, opiniões distintas sobre as inscrições nos muros que, nesse período, não constituiu um protesto vazio.

A esse recorte de memória, somam-se imagens de cartazes, panfletos, livros, disco de vinil e fitas cassetes, máquina datilografia, mimeógrafo, papel ofício... registros de uma vida devotada à arte da escrita, mesmo quando o que restava, diante da censura, era escrever o “que desse na telha”: Há foto de telha com inscrições poéticas, forma que Behr encontrou para reproduzir seu pensamento, na falta de permissão que eles chegassem ao papel.

Anos de chumbo, anos loucos, louca juventude, poesia irreverente. O que permitiria mais a época? Ironia, despretensão, imediatismo, despojamento, desejo de síntese. A linguagem coloquial e eivada de pessoalidade possibilita o diálogo direto entre poeta e leitor. Nicolas sobreviveu e conta a história.

 

 

O Projeto Editorial Banda Lusófona foi criado em janeiro de 2010, como complemento ao Projeto Editorial Banda Hispânica. Assim o Jornal de Poesia integra em sua plenitude a poesia de línguas portuguesa e espanhola. Aqui registraremos criação e reflexão, reunindo autores de distintas gerações e tendências, inclusive inéditos em termos de mercado editorial impresso. Aqueles poetas que desejem participar devem remeter à coordenação geral seus dados bibliográficos, seleção de 10 poemas e resposta ao seguinte questionário:

1. Quais são as tuas afinidades estéticas com outros poetas de língua portuguesa?
2. Quais são as contribuições essenciais que existem na poesia que se faz em teu país que deveriam ter repercussão ou reconhecimento internacional?
3. O que impede uma existência de relações mais estreitas entre os diversos países de língua portuguesa?

Todo este material deve ser encaminhado em um único arquivo em formato word, para o seguinte e-mail: agulha.floriano@gmail.com. Agradecemos também o envio de uma fotografia (jpg), assim como de textos críticos, livros de poesia e material jornalístico sobre o mesmo tema. O Projeto Editorial Banda Lusófona é uma fonte de informações que reflete, sobretudo, a ampla generosidade de todos aqueles que dele participam. O acesso a cada país deve ser feito através do selo correspondente.

 
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