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				O corpo 
				aceso da poesia de Maria Teresa Horta 
				
				  
				
				Uma 
				conversa com Floriano Martins 
				
				  
				
				FM
				
				Se 
				voltarmos no tempo, a teus primeiros escritos, como esboças 
				inicialmente esta evidente cartografia erótica que se destaca em 
				tua poética? 
				
				MTH
				
				Penso que 
				os meus primeiros poemas estão longe de ser eróticos, embora 
				neles as raízes do erotismo fossem já evidentes. No entanto, 
				prefiro dizer que as minhas primeiras poesias eram de uma 
				intensa sensualidade recôndita, presente em mim desde muito 
				pequena: na busca obsessiva da beleza, num trato intenso com o 
				corpo, num desassossego diurno repleto de claridades intensas, 
				de odores, de sabores, de vertigem. O erotismo chegará mais 
				tarde, em 
				Verão 
				coincidente. 
				Intensa e incontrolável onda, rolando para sempre na minha 
				escrita, no meu imaginário; quotidianamente, em toda a minha 
				vida. 
				
				FM
				
				Que 
				interlocutor buscavas ao eleger o corpo como palco e bastidor de 
				uma viagem pelo interior do que talvez se possa aqui chamar a 
				essência feminina? 
				
				MTH
				
				Quando 
				escrevo nunca busco um interlocutor, a poesia pura e 
				simplesmente brota como o cristal de rocha na parede de uma 
				gruta. Algo que eu não controlo nem pretendo controlar nessa 
				viagem, como dizes, pelo interior de mim mesma. E nessa medida, 
				sem dúvida, pelo interior da essência feminina, porque sou uma 
				mulher e portanto tenho uma escrita feminina. Há anos que venho 
				defendendo que a escrita, tal como os anjos, tem sexo. 
				 
				
				FM
				
				O 
				escândalo decorrente da leitura de alguns livros teus 
				naturalmente não se limita a si mesmo, ou seja, não se regozija 
				com os seus efeitos, revelando outra inquietude… 
				
				MTH
				
				O 
				escândalo de que falas só surge em 1971, quando da publicação de
				
				Minha senhora de mim. 
				E é sobretudo um escândalo que parte do puritanismo, do 
				machismo, do marialvismo, que então minava e destruía a 
				sociedade portuguesa. Produto de uma mentalidade formada, 
				moldada pelo Fascismo e pela igreja católica, portanto pela 
				falta de liberdade, pelo moralismo, pela hipocrisia; uma 
				sociedade onde as mulheres não tinham sequer direito a possuir 
				uma sexualidade própria. Então, um livro como 
				Minha 
				senhora de mim, 
				onde não só canto o corpo do homem amado e desejado, como 
				claramente falo do meu próprio corpo e menciono o meu próprio 
				desejo e prazer, só poderia escandalizar e ser proibido, como 
				aliás aconteceu. 
				
				FM
				
				Como 
				percebes esse jogo de falsos pudores, que inclusive segue 
				definindo a moral em nosso tempo, como elemento inseparável da 
				ordem cristã à qual o homem parece reduzido? Ou há algo mais 
				atrás do tema? O que provoca escândalo actualmente? 
				
				MTH
				
				Há sempre 
				algo mais atrás de qualquer tema, assim como há sempre uma nova 
				inquietude e, no caso do erotismo, particularmente, essa 
				inquietude está sempre lá, embora a maior parte das vezes 
				oculta. Quanto aos falsos pudores, esses continuam, 
				infelizmente, quase tão fortes hoje como antes. Não deixa de ser 
				curioso verificar que no Portugal pós 25 de Abril, onde a 
				pornografia é já aceita e até mesmo procurada sem qualquer 
				escândalo, a minha poesia continua a incomodar! 
				
				FM
				
				Ou seja, 
				tudo reside no modo de ver o tema? 
				
				MTH
				
				Creio que 
				a minha poesia continua a incomodar, não por ser poesia erótica, 
				mas por ser poesia erótica de uma mulher, que continua a fazer 
				uma abordagem da sexualidade que perturba; e que perturba 
				sobretudo os homens, porque não diz aquilo que se convencionou a 
				mulher dizer e até mesmo sentir. Pior do que isso, porque aborda 
				sem o tradicional comedimento ou “recato feminino” o corpo da 
				mulher e a sua ardência, o seu fogo, o seu desejo. Desejo esse 
				de fruição absoluta. 
				
				FM
				
				Queres 
				dizer que isto não converte a alusão a um componente da ilusão. 
				Recordo um verso teu: “Disponho e ponho ilusão / na perfeição da 
				beleza”. 
				
				MTH
				
				Mas eu 
				persigo a beleza durante todo o tempo, precisamente porque a 
				idealizo… Portanto, como dizes muito bem, converto a alusão a um 
				componente da ilusão. Na minha poesia a alusão também pode fazer 
				parte da pulsão, uma pulsão por onde perpassa, a maior parte das 
				vezes, a beleza sofrida e sempre ambígua. Desejando ir mais 
				longe, mais fundo, na sua ânsia de tocar, de convocar, e de 
				nisso me perder.  
				
				FM
				
				A escrita 
				como um jogo de sedução onde a beleza é o aguilhão, a matriz 
				geradora de todo o sentido. É isto?  
				
				MTH
				
				A escrita 
				é sedução. Sempre. E para mim seduzir só faz sentido se for um 
				acto de radiosa beleza. Uma rosa do corpo ou o corpo como rosa, 
				onde o espinho representa a sua própria beleza; o  agulhão, a 
				matriz geradora do não sentido, ou como dizes, de todo o sentido 
				da escrita, enquanto sedução absoluta. 
				
				FM
				
				Recordo 
				aqui um fragmento de Novalis: “Assim como a mulher é o mais 
				elevado alimento visível que faz a transição do corpo à alma – 
				assim também os órgãos sexuais são os órgãos externos mais 
				elevados, que fazem a transição dos órgãos visíveis aos 
				invisíveis”… 
				
				MTH
				
				
				Habituei-me desde cedo a desconfiar dessas frases lindíssimas 
				usadas pelos homens cultos acerca da mulher, que parecendo 
				colocá-la num plano superior, afinal, a marginaliza; mesmo os 
				delicados e românticos como o Novalis. Quanto aos órgãos sexuais 
				serem de entre os órgãos externos os mais elevados… Bem, quanto 
				a mim, aquilo que os distingue de todos os outros, é o facto 
				determinante de serem os órgãos do prazer do corpo, do gozo 
				sexual, de onde se parte para a fruição, para o erotismo, numa 
				ardente e tumultuada viagem. 
				
				FM
				
				O erótico 
				reconcilia-se com o sagrado em tua poesia ou reflecte 
				fundamentalmente a sua condição imanente? 
				
				MTH
				
				Na minha 
				poesia o erótico reflecte, fundamentalmente, a perenidade do 
				corpo, enquanto lugar da natureza, da beleza, do contínuo 
				florescimento do prazer; logo, reflectindo a sua condição 
				imanente. Mas, o facto dos meus poemas pouco ou nada terem a ver 
				com o sagrado, não quer dizer que não se alimentem do mistério, 
				não mergulhem na ambiguidade, não se entreguem ao fascínio da 
				ambivalência, não sejam atraídos por aquilo que os transcende. 
				Mas, sempre para tornarem a si próprios enquanto corpo terreno: 
				o frágil e o fogo, o tudo e o nada, o voo e as raízes, num 
				entrançamento enredado e infindável. 
				
				FM
				
				Recordo o 
				espanhol Juan Eduardo Cirlot dizendo que em arte “tudo se 
				corresponde, enlaça e comunica”, ao mencionar as 
				correspondências existentes entre seu ciclo Bronwyn e 
				personagens como Hamlet (Shakespeare) ou Aurélia (Nerval). 
				
				MTH
				
				O rio que 
				desemboca no mar e o mar que se enlaça-desenlaça e matiza ao 
				misturar-se com a água do rio? Claro que isso acontece… No 
				entanto, há também a hipótese precisamente contrária: a recusa 
				da arte a toda e qualquer correspondência, mesmo entre si 
				própria. Creio que é quando a arte se torna verdadeiramente 
				inovadora. 
				
				FM
				
				Mas, não 
				poderíamos identificar algumas correspondências, pensando no 
				erotismo da tua poesia? 
				
				MTH
				
				Sem 
				dúvida. Podemos encontrar correspondências na minha escrita, com 
				outras escritas e não só necessariamente no que diz respeito ao 
				erotismo. Mas, sempre pelo avesso dessa mesma correspondência. 
				Como acontece, por exemplo, com o meu livro de poesia 
				Educação 
				sentimental 
				e com o 
				romance do mesmo nome de Gustave Flaubert. Ou seja, entre o seu 
				entendimento daquilo que é uma educação sentimental no 
				masculino, e o meu entendimento do que pode ser uma educação 
				sentimental no feminino. Essa correspondência, aliás, pode 
				existir também entre alguns textos meus e certos quadros da 
				Paula Rego ou da Frida Kahlo, e entre poemas meus e passagens do 
				diário da Sylvia Plath. 
				
				FM
				
				Observa a 
				Ana Marques Gastão, acerca da tua poesia, que “é seu um corpo 
				erotizado, pele sobre a pele, onde a própria nudez se diz 
				tecido, cintilância, seda-sede, dobra irreverente, que não 
				aceita a passividade das lisuras no uso de uma voz feminina”. Se 
				pensarmos em um tipo de jogo entre o erotismo carnal e sua 
				idealização, até que ponto estas duas esferas seriam mutuamente 
				excludentes? 
				
				MTH
				
				Em 
				qualquer jogo feito entre o erotismo carnal e a sua idealização, 
				penso que quem sai sempre perdendo é a idealização. O 
				desejo-prazer, o gosto-gozo rejeitam, recusam qualquer espécie 
				de idealização, até porque isso seria a recusa da excelência do 
				erotismo carnal. Como nos mostra, exemplarmente, a obra poética 
				de Hilda Hilst; embora na sua escrita essa idealização acabe por 
				se encontrar subjacente, só que por meio da sua recusa. O mesmo 
				acontecendo com a minha poesia e a minha ficção eróticas. 
				
				FM
				
				Como se 
				articulam ou convivem real e imaginário no plano da criação 
				poética? 
				
				MTH
				
				Creio que 
				usando-se mutuamente, misturando-se e rejeitando-se, um voando e 
				o outro pesando, um espelho e o outro imagem. Completando-se na 
				contradição, amando-se no desentendimento e assassinando-se 
				também. Pelo menos no caso da minha escrita. 
				
				FM
				
				Eu 
				gostaria que recordasses um pouco a tua participação no grupo 
				Poesia 61, inclusive mencionando que tipo de relação o grupo 
				mantinha, por exemplo, com o Surrealismo. 
				
				MTH
				
				Primeiro 
				de tudo, a Poesia 61 nunca pretendeu ser um grupo literário, 
				pelo menos no sentido habitual do termo, mas acabou, 
				curiosamente, por aparecer como tal para os outros. Assim sendo, 
				o Surrealismo teve, penso, uma importância diferente para cada 
				um de nós cinco – eu, Casimiro de Brito, Fiama Hasse Pais 
				Brandão, Luiza Neto Jorge e Gastão Cruz. Pessoalmente, ao mesmo 
				tempo que a leitura da poesia surrealista ia sendo 
				impulsionadora de um acto de libertação em relação a própria 
				escrita, fui fazendo amigos ligados ao Surrealismo, como o poeta 
				Alexandre O’Neill e o pintor Vespeira, com quem aprendi a cortar 
				amarras na criatividade e a voar em direcção ao futuro. 
				
				FM
				
				E essa 
				experiência nada teve a ver com a Poesia 61? 
				
				MTH
				
				Pela minha 
				parte teve a ver comigo mesma e com aquilo que então escrevia, 
				mas já depois da Poesia 61. Poesia 61 que recordo com uma 
				saudade feita ainda de grande entusiasmo. Lembro-me como se 
				fosse hoje dos nossos encontros, das nossas conversas, da 
				alegria e do entusiasmo que nos levaram a partilhar, a juntar os 
				nossos poemas. 
				
				FM
				
				Retomo uma 
				crítica da Ana Marques Gastão, quando ela se refere às 
				Novas 
				cartas portuguesas 
				(1971), 
				como sendo um livro “claramente feminista”, ao mesmo tempo em 
				que distinto do restante de tua obra. Estás de acordo? 
				
				MTH
				
				Vamos por 
				partes: concordo que 
				Novas 
				cartas portuguesas, 
				depois de 
				publicado, tornou-se (porque foi lido e entendido como tal, quer 
				pelos leitores, quer até pela crítica internacional) uma obra 
				claramente feminista, embora não fosse o feminismo que nos levou 
				a escrevê-lo. Para ser totalmente honesta, em nenhum momento da 
				escrita de 
				Novas 
				cartas portuguesas, 
				o feminismo foi explicitado por nós, suas três autoras: a Maria 
				Isabel Barreno, a Maria Velho da Costa e eu. Mas, já não 
				concordo totalmente quando a Ana Marques Gastão afirma ser este 
				meu livro distinto do resto da minha obra. Se um dia viéssemos a 
				dizer que textos, cartas ou poemas deste livro, cada uma de nós 
				escreveu (nunca o dizermos, foi uma das regras-pacto que 
				presidiu à sua ideia), ver-se-ia, no que me diz respeito por 
				exemplo, como eles são imprescindíveis, diria até, para a 
				escrita do que vim a editar em seguida; posso citar 
				Educação 
				sentimental 
				(poesia), 
				e mesmo o romance 
				A paixão 
				sobre Constança H. 
				
				FM
				
				E como 
				surge a escritura desta obra? 
				
				MTH
				
				Surge em 
				reacção ao grande escândalo provocado pela publicação do meu 
				livro de poesia 
				Minha 
				senhora de mim, 
				apreendido pela PIDE (Polícia Internacional e Defesa do Estado) 
				e indignando os inefáveis defensores da moral e dos bons 
				costumes da época. E como o desejo de escrevermos um livro 
				juntas já estava nos nossos planos, foi só acordarmos no que 
				seria o centro catalisador dos escritos de cada uma, e que 
				acabou por ser sóror Mariana Alcoforado, que por seu lado 
				escreveu as tão célebres e belíssimas 
				Cartas 
				portuguesas. 
				
				FM
				
				Mas, a 
				qual necessidade atendeu então? 
				
				MTH
				
				A de 
				trabalhar a escrita (literatura-beleza), enquanto forma de 
				resistência (também no plano estético e da descoberta formal 
				literária). Dando a ver o que de monstruoso se encontrava 
				escondido sob a ideia de propaganda fascista, da sociedade 
				portuguesa pobrezinha-mas-honesta (tipo uma casa portuguesa fica 
				bem, pão e vinho sobre a mesa…). E, sobretudo, conseguir dar a 
				ver aquilo que o “destino” sombrio das mulheres portuguesas 
				ocultava de discriminação, violência e crueldade. 
				
				FM
				
				São 
				incomunicáveis, em teu caso, os ambientes traçados pela poesia e 
				a narrativa? 
				
				MTH
				
				Pelo 
				contrário, na minha escrita a poesia e a ficção entrelaçam-se, 
				entrançam-se, inter-agem; ou seja, cada uma delas vai colher a 
				experiência da outra. Não faço o género do poeta que quando 
				escreve prosa, esconde, rejeita mesmo, o seu lado poético. 
				
				FM
				
				Há algum 
				outro ponto em comum, de afinidade, que estabeleças com a 
				brasileira Clarice Lispector, além da coincidência parcial de 
				títulos de um romance de ambas? 
				
				MTH
				
				Não há 
				nenhuma coincidência no facto do título do meu romance 
				A 
				paixão segundo Constança H. 
				ser praticamente igual ao da Clarice Lispector, 
				A paixão 
				segundo G. H. 
				Para mim isso representou uma espécie de desafio, numa intenção 
				clara de, ostensivamente, mostrar as diferenças e as semelhanças 
				da angústia, da solidão das mulheres, embora oriundas de 
				sociedades diferentes, que as repele, isola e as maltrata. 
				Pretendi jogar com as semelhanças diversas da ficção de duas 
				escritoras de língua portuguesa, diante da loucura feminina. 
				
				FM
				
				Agora que 
				vamos terminar Teresa, achas que nos esquecemos de alguma coisa? 
				
				MTH
				
				
				Esquecemo-nos, certamente, de montes de coisas, Floriano, ou se 
				preferires, muito ficou por dizer, apesar da nossa conversa ter 
				sido longa. Prefiro perguntar a mim mesma se o essencial teria 
				sido dito, e parece-me que sim. Mas, quem sabe…  |