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				Um encontro com Manuel Gusmão (1945) 
				
				
				
				  
				
				
				
				Floriano Martins 
				
				  
				
				FM 
				Em entrevista a Ana Marques Gastão, comentas a respeito das 
				diversas vozes que se podem perceber em tua poética, vozes que 
				ora são imaginárias, citações reais, deformadas etc., o que 
				acaba dando uma valiosa carga teatral a muitos poemas. O que 
				está por trás disso tudo? O que busca a poesia através de Manuel 
				Gusmão? 
				
				MG 
				São vozes ou por vezes apenas entoações, citações de outros 
				poemas ou de romances, às vezes de personagens de um filme, mas 
				podem também ser frases de cartas que recebi ou coisas que me 
				disseram, ou certos jeitos quotidianos da língua. Trata-se de 
				responder a essas vozes outras, de dar a entender como uma voz 
				singular se faz ou pode fazer a partir das “palavras dos 
				outros”. Nenhum de nós inventa a língua em que escreve, podemos 
				reconfigurá-la um pouco, podemos construir alguns possíveis 
				novos dessa língua, mas no limite a invenção só é possível 
				porque a língua já existe. Aquilo que para muitos aparece como 
				uma condenação, para mim é como se fosse uma condição de 
				possibilidade, a generalidade e a socialidade da língua são 
				aquilo mesmo que torna possível o fazer da singularização e da 
				individuação. Trata-se também da descoberta e da invenção de uma 
				coralidade que, mesmo se mínima, é uma hipótese de vitória sobre 
				o silêncio imposto, de não deixar que a solidão, entretanto 
				necessária, se feche por completo sobre nós e nos congele, de 
				dar voz ao que em nós e fora de nós não fala. Por outro lado, 
				trata-se também de uma tentativa de mudar de registo discursivo 
				ou rítmico no interior de um livro ou mesmo dentro de um só 
				poema, de acolher a heterogeneidade daquilo de que sou feito, a 
				alteridade sem a qual só abraçamos o ar demasiado puro e 
				elevado. Na nossa câmara mais íntima, quando fazemos silêncio 
				para poder escrever, então aí, podemos ainda escutar esses 
				murmúrios em que outros falam, assim como cintilam e vibram as 
				imagens e os rumores do mundo. 
				
				  
				
				FM 
				De que maneira a escritura, em 1998, do libreto da ópera Os 
				dias levantados se insere dentro de tua obra poética, e o 
				que volta a significar agora quando o publicas em separado da 
				peça musical de António Pinho Vargas? 
				
				MG 
				Sobretudo agora quando me autorizei a publicá-lo autonomamente e 
				com alterações, julgo que não posso rejeitá-lo, ou seja, estou 
				disposto a pagar o preço por assiná-lo. A dificuldade e a 
				diferença vêm de que este livro começou por ter um “programa” 
				desde o início – era para ser sobre o 25 de Abril, sublinho o 
				“sobre”, e para servir uma sua realização outra, pela música e 
				num palco. Diria que é um livro que mostra ou dá a ver coisas 
				que nos outros livros de poemas são mais oblíquas, menos 
				directas, o que é no fundo admitir que há traços ou formas de 
				fazer que são comuns. Por exemplo: a coralidade; a ostensão aqui 
				explicitada das citações das vozes de outros; a afirmação de uma 
				posição política na história que não é demagogia, mas é 
				experiência vital, história da vida que tenho vivido e 
				passionalidade ideo-verbal e ético-política. Mas há também o 
				lado da construção, da arquitectura ou da composição do poema. 
				Aí, admito que o libreto é um poema dramático mais perto de 
				visar uma cantata ou uma ópera por quadros ou sequências. As 
				acções são sobretudo conflito de vozes. A partir de certa 
				altura, praticamente desde um dos quadros do Iº Acto, vai-se 
				citando as transformações ou as glosas, por poetas do século XX 
				(Jorge de Sena, Ruy Belo, Fiama Hasse Pais Brandão, Luiza Neto 
				Jorge e Gastão Cruz), de um verso de Sá de Miranda (séc. XVI) 
				que só será citado já para o fim (no “Êxodo”). Por um lado, 
				imagino a recitação ou a citação repetida como uma espécie de 
				repetição da origem, que regressa no tempo; por outro lado, que 
				o verso originário só apareça quase no fim, pode significar que 
				a origem ainda está à nossa frente, ou por vir. Por outro lado, 
				a recitação do verso através dos seus ecos é homenagem à poesia 
				e põe esse verso a costurar os tempos. Com estes procedimentos 
				vários, julgo que no libreto procuro maneiras para praticar a 
				deslinearização do tempo histórico, a constelação das várias 
				formas do tempo – uma das minhas obsessões, que vou buscar como 
				herança a Walter Benjamin. 
				
				  
				
				FM 
				Como se deu então o diálogo entre músico e poeta, e até que 
				ponto crês interessante para a poesia essa aproximação de outras 
				áreas da criação artística? 
				
				MG 
				Quando o compositor me convidou – não nos conhecíamos 
				pessoalmente - fiquei efectivamente surpreendido. Embora sempre 
				me tenha interessado por outras artes e até tenha trabalhado 
				sobre formas de encontro concertante ou dissonante entre elas, 
				nunca tinha pensado escrever sequer para teatro, quanto mais 
				para uma ópera. Por outro lado, o convite implicava escrever em 
				direcção a uma realização outra, diferente daquela que se 
				processa na leitura, mesmo em voz alta, e escrever “sobre” algo 
				que era à partida político e muito menos consensual do que pode 
				parecer. Quando me decidi a aceitar, disse ao António Pinho 
				Vargas que não escreveria nem um texto de propaganda nem 
				exclusivamente celebratório, assim como também não poderia nunca 
				escrever uma coisa neutra e consensual, porque a data é daquelas 
				que são simultaneamente história colectiva e história pessoal de 
				quem activamente as viveu. Desde o princípio ficou claro que ele 
				utilizaria o meu texto como a música lhe fosse ditando, assim 
				como eu ficaria livre de o editar de forma autónoma. O texto foi 
				sendo escrito em diálogo com o compositor e depois também com o 
				encenador, Lukas Hemleb, que trabalha sobretudo em França. Esse 
				diálogo que foi exigente interessou-me muito por várias razões. 
				Desde logo porque foi efectivamente um diálogo entre diferentes, 
				colaborando. Eu ia escrevendo cenas ou blocos de texto e obtinha 
				quase imediatamente a reacção de um ou dois leitores, que faziam 
				perguntas, comentários e sugestões. Depois, porque eu tinha de 
				escrever tendo à partida ou no horizonte algumas restrições ou 
				constrições no plano da produção: por exemplo, o número de 
				solistas ou o número de membros do coro. Para além disso, aquilo 
				que o António sugeria poderia levar-me a encontrar ou inventar 
				soluções em que não tinha pensado ou que tinha pensado de outra 
				maneira. Enquanto experiência de um diálogo que contamina ou 
				move quem dialoga, de um trabalho de escrita que se desenrola 
				integrando já uma escuta, foi para mim uma experiência muito 
				interessante em si mesma e que de alguma forma se projectou no 
				livro Teatros do tempo que eu também já começara a 
				escrever. Por outro lado, a minha “preparação” para o libreto 
				levou-me a ouvir outras peças musicais do António Pinho Vargas 
				(incluindo a sua 1ª ópera, “Èdipo, tragédia do saber”, com texto 
				de Pedro Paixão) e outras óperas contemporâneas que ele me 
				sugeriu. 
				
				  
				
				FM 
				Em tua participação em uma mesa-redonda na Associação Abril em 
				Maio (janeiro de 2004), em Lisboa, defendes que é necessário 
				criar uma consciência política em âmbito artístico, «se não 
				quisermos que a arte se dilua naquilo que é dominante na 
				sociedade». Não crês que essa diluição já esteja presente ao 
				ponto de tornar esta tua defesa, que é também a minha, mais 
				utópica do que a possamos imaginar? 
				
				MG 
				Não sei se disse mesmo assim. Lembro-me que nesse momento estava 
				a referir uma passagem do epílogo do ensaio de Walter Benjamin, 
				“A obra de arte na era da reproductibilidade técnica”. Nessa 
				passagem, ele estabelece uma relação entre o fascismo e a 
				esteticização da política que segundo ele culminaria na guerra. 
				Benjamin diz que a humanidade se tornou de tal forma estranha ou 
				estrangeira a si própria que se dá em espectáculo a si mesma e é 
				capaz de viver a sua própria destruição como um prazer estético 
				de primeira grandeza. E termina dizendo que a resposta dos 
				comunistas é a politização da arte. Eu procurava entender o que 
				ele escreve na sua circunstância e recolocar o problema, hoje, 
				em que a espectacularização da política e da própria vida 
				privada atingiu, juntamente com o crescimento das “indústrias 
				culturais”, uma exasperação enorme. E daí partia para a 
				consideração de que sem perder de vista a defesa da 
				independência relativa da arte (que justamente hoje está 
				ameaçada) cujo esquecimento por quem quer revolucionar o estado 
				das coisas pode conduzir ao desastre e, simultaneamente, sem a 
				tomar como uma autonomização absoluta, abre-se um espaço para 
				trazer à consciência política e estética a percepção da 
				politicidade da arte e trabalhar por uma cultura ao mesmo tempo 
				de resistência e de alternativa. Trata-se de compreender, por 
				exemplo, que a massificação do acesso a certos bens culturais 
				não é necessariamente uma democratização e que se trata de 
				intervir não tanto na criação (esse é um problema em larga 
				medida de opção do artista) mas nas formas de produção, 
				circulação e consumo culturais. A dissolução da arte no mercado 
				ou a neutralização da sua dimensão crítica e inventora de novos 
				possíveis, é hoje uma tendência dominante, de acordo, mas isso 
				não torna necessariamente utópica a intervenção pela arte. É 
				certamente mais difícil; obriga a pensar como, onde, de que 
				maneira, com quem e para quém. Por outro lado as utopias são nas 
				suas próprias formulações, contingentes, históricas, mesmo que 
				não tenham disso consciência. Se concebermos o utópico como 
				aquilo que resiste à tentativa de ocupação total do espaço, se 
				reagirmos ao uso da palavra “utópico” para acusar e desarmar 
				toda a tentativa de busca de um outro possível, numa estratégia 
				de cancelamento ou estreitamento de qualquer horizonte diferente 
				para as nossas sociedades, então, eu poderia aceitar essa 
				dimensão utópica daquilo que me move, mas insistindo na sua 
				determinação histórica. 
				
				  
				
				FM 
				E qual contribuição têm dado, seja em busca de solução ou na 
				permissão de agravamento, os próprios artistas, poetas, 
				intelectuais? 
				
				MG 
				Para além de julgar que é importante procurar pensar a história 
				do problema, digamos assim, até para perceber melhor a sua 
				configuração presente, posso falar do que tenho perto de mim. 
				Acho que posso dizer que uma grande parte dos intelectuais 
				portugueses desejaram e acompanharam, participando de formas 
				muito diversas, o fluxo pelo menos inicial da revolução 
				portuguesa, entre Abril de 1974 e o verão de 1975. Depois, nos 
				longos anos que vêm até hoje, dividiram-se, confrontaram-se, 
				desistiram ou regressaram a casa, tal como aconteceu com outras 
				camadas sociais intermédias. É evidente que abriu há umas 
				décadas atrás uma espécie de caça aos intelectuais. Não creio 
				que seja um fenómeno redutível a uma compra e venda, antes se 
				trata de algo mais complexo, onde se usou e usa o quantum 
				satis de discriminação e, ao mesmo tempo se recorre em larga 
				escala à sedução. Isto em determinadas circunstâncias sociais e 
				culturais marcadas pelo crescimento rápido das indústrias e de 
				um mercado cultural que se rege não apenas por regras económicas, 
				mas também por determinados valores simbólicos e ideológicos.  
				
				  
				
				FM 
				Mas se poderia acaso dizer, de uma maneira geral, que esta 
				camada social, artistas e intelectuais, esteja hoje como que 
				acomodada a esse avançado processo de atomização, sendo raro 
				manifestar-se em “defesa da independência relativa da arte”? Em 
				havendo, isto viria unicamente do fascínio exercido pelos meios 
				de comunicação de massa? 
				
				MG 
				Eu não tenho a certeza se há uma acomodação da maioria. É 
				possível que sim, mas num quadro que a médio prazo e seguramente 
				a longo prazo é de grande mutabilidade. Nos movimentos contra a 
				globalização capitalista e recentemente contra a guerra houve e 
				há uma participação sensível de intelectuais. A proletarização 
				crescente daquilo que podemos designar por profissões 
				intelectuais e que excede largamente os artistas e os 
				intelectuais, enquanto porta-vozes tradicionais, comporta 
				fenómenos de grande diferenciação interna da camada, de 
				desemprego ou sub-emprego, de perda de controlo sobre o seu 
				trabalho e de estreitamento ou compressão da sua independência 
				relativa. Entretanto, não estamos apenas perante o fascínio 
				exercido pelos grandes meios de comunicação de massa; acontece 
				também que as novas tecnologias permitem formas de trabalho e de 
				associação em micro-empresas que geram uma experiência virtual, 
				que não é apenas uma ilusão, de independência e de 
				universalidade, na qual o cosmopolitismo esquece o 
				internacionalismo. Ora esse esquecimento esquece também que, em 
				períodos ou conjunturas de relativo bem estar, grande número de 
				intelectuais integra os 2/3 que vivem sobre um terço de 
				excluídos nas sociedades do mundo capitalista mais desenvolvido, 
				que por sua vez assenta o seu “desenvolvimento” na 
				sobre-exploração dos outros mundos e na exportação das mais 
				violentas desigualdades.   
				
				  
				
				FM 
				Retornando à tua poética, onde está bem clara a relação com o 
				tempo, indagaria agora por sua relação com o corpo, ou seja, que 
				gradação de sexualidade da escrita se poderia evocar ao tentar 
				compreender esta poesia? 
				
				MG
				De algum modo a poesia na sua enorme 
				diferença em relação a si mesma sempre foi uma forma de 
				inscrição perdida do corpo amoroso, do “amor realizado de um 
				desejo que permanece desejo” como escreveu René Char. Aquilo que 
				escrevo imagino-o em certa medida como uma espécie de extensão 
				não-orgânica do corpo-a-corpo amoroso, pelo qual procuro estar 
				próximo do coração da terra, uma narrativa interrompida e 
				recomeçada dos corpos que me tatuaram, uma narrativa que acumula 
				feridas e queimaduras e procura reinventar, para sobreviver, 
				aquela inenarrável perda da consciência que nos liberta de nós e 
				que só julgamos conhecer nesse corpo-a-corpo. O Eros prolongado 
				no corpo da linguagem ou, melhor no corpo-a-corpo com a 
				linguagem, é uma maneira de querer a alegria, de imaginar a 
				morte como a condição de uma alegria feroz, de aprender e 
				aceitar que “só pode queimar quem aceita ser queimado”. E então 
				as coisas confundem-se muito. A experiência do amor que julgamos 
				receber da vida e que em larga medida seria muda sem a poesia, a 
				arte, vem-me por exemplo não só daqueles corpos-músicos que amei 
				e me amaram como da definição da alegria por Spinoza, ou da 
				fabulosa frase de Catherine Earnshaw no inesquecível Monte 
				dos Vendavais, de Emily Brontë: “I am Heathcliff”. De 
				certa maneira gostaria que a poesia pudesse ser um dar voz à 
				experiência que a frase final de um poema de Rimbaud, “Being 
				beauteous” inventa: “Oh! nos os sont revêtus dun nouveau corps 
				amoureux”. 
				
				  
				
				FM 
				E como te sentes integrado a uma tradição lírica portuguesa? 
				
				MG 
				Deixa-me começar por dizer que não partilho da ideia de que a 
				poesia acabou, nem mesmo da versão reduzida de que o lirismo 
				estaria exausto, ou teria chegado ao fim. È mais um decreto, 
				proclamado no quadro da ideologia dos fins, e no máximo poderá 
				ter o valor de sintoma de um mal-estar na cultura sobretudo em 
				algumas sociedades contemporâneas desenvolvidas. Julgo, por 
				outro lado, que é mais interessante admitir que há várias 
				tradições e não apenas uma ou, então, falar de uma tradição 
				plural e heterogénea, que comporta diversas genealogias que, 
				aliás se podem cruzar. No meu caso, gosto de imaginar que aquilo 
				que faço procura manter unidos gestos e processos de linhagens 
				diferentes: por um lado, a obsessão com a construção de cada 
				livro, o rigor da composição verbal que não deixe o lírico 
				ronronar e creio ter andado a aprender, por exemplo, com poetas 
				como Carlos de Oliveira; por outro lado, não desistir da 
				veemência, da imagem alucinada, como ela sopra lá para os lados 
				de Herberto Helder e, entretanto, trazer a estas duas 
				genealogias a heterogeneidade de registos e níveis discursivos, 
				como a podemos encontrar de modos muito diversos e de forma 
				particularmente intensa numa poeta como Luiza Neto Jorge. É 
				difícil falar disto, sem parecer pretensioso ou sem ter a 
				sensação de que me perco entre espectros, então, que sejam eles 
				ao menos os daqueles que prefiro. Apenas, diria mais que me 
				fascina a possibilidade de encontrar para hoje as formas ou as 
				entoações da poesia narrativa. E ainda, esta tensão de procurar 
				manter unidas - nunca sei bem como – duas exigências: não deixar 
				de me manter perto do coração selvagem do que é da terra e ao 
				mesmo tempo não faltar à resposta que, por tomar a palavra, devo 
				àqueles que da sua própria voz são expropriados. Saber que vimos 
				de muito longe, que somos animais longos no tempo, imaginar que 
				há qualquer coisa em frente à minha espera mas que me vem de 
				Hölderlin, do 1º romantismo alemão, o romantismo de Jena, de 
				Rimbaud, e que é uma promessa e, ao mesmo tempo, não me despedir 
				nunca por completo daqueles que me trazem a depuração de uma 
				oficina onde pode soprar uma fúria rigorosa, Mallarmé, Cesário 
				Verde, Ponge, João Cabral de Melo Neto, Carlos de Oliveira. Aqui 
				já comecei a alucinar, portanto é melhor calar-me.  |