Luís de Camões, leitor de Petrarca, amoroso pela “activa”
				
				
				
				Júlio Conrado 
				
				
				
				Luís 
				Vaz de Camões, o maior poeta português de sempre e um dos vultos 
				da literatura do Renascimento, permanece um enigma para a 
				maioria dos estudiosos da sua obra e da sua vida. Densas zonas 
				de penumbra impedem a caracterização rigorosa do sulco juvenil 
				numa literatura que não prima pelo encarecimento da factualidade 
				biográfica, afigurando-se apenas indiscutível que as 
				atribulações de uma existência insegura desde cedo sinalizaram 
				os destinos do homem como inapagável marca de água sem contudo 
				obliterarem a prodigiosa evidência do seu consistente arsenal 
				teórico. Logo aí, na adolescência, haveria que determinar as 
				causas do que viria a revelar-se uma sólida cultura bebida nos 
				clássicos, servida por uma intuição de sobredotado para 
				apreender os modelos e os códigos literários vigentes na Europa 
				erudita e disseminados no ocidente periférico pela via do latim. 
				Dá-se por provável que este cabedal de erudição o tenha Camões 
				adquirido em Coimbra, onde estudou     ( talvez ) sob a 
				protecção de um tio, o frade crúzio Bento de Camões, prior do 
				Mosteiro de Santa Cruz e chanceler da Universidade. Aí terá 
				frequentado um curso de Artes e desistido de abraçar a carreira 
				eclesiástica para a qual eram encaminhados os filhos dos 
				fidalgos pobres, depois de ter tido acesso aos centros da 
				aristocracia intelectual coimbrã - a biblioteca do Mosteiro era, 
				só por si, uma das melhores da Europa - e convivido com mestres 
				de superior formação humanística forjados na escola do 
				Renascimento triunfante.  
				
				
				De regresso à cidade natal, Lisboa, por volta dos vinte anos, 
				salienta-se pelo envolvimento nas mais variadas tropelias que o 
				conduzem a desterros, à prisão, ao Paço, onde levanta os olhos 
				para damas inacessíveis e a prostíbulos como o 
				Malcozinhado onde confraterniza com a escória local. Daí, 
				parte para um primeiro desterro no Ribatejo (Constância) ao qual 
				corresponde a lenda de um amor por alguém que pairava acima das 
				suas possibilidades, sendo que a dama em questão tanto poderia 
				ter sido a infanta D. Maria como Francisca de Aragão ou uma das 
				três Catarina de Ataíde, comprazendo-se os seus biógrafos em 
				especulações ambiciosas à volta do objecto da paixão daquele que 
				em vária flama variamente ardia. Nada há que comprove este 
				contencioso nos termos em que a lenda o articula no imaginário 
				popular e nas suspeitas de alguns historiadores mais dados à 
				leitura livre do espírito da época. Daí, Lisboa, sai para a 
				expedição a Ceuta, onde perde o olho direito numa escaramuça 
				contra os mouros. Lisboa assiste ainda à sua partida para a 
				Índia como soldado raso depois de cumprido o castigo resultante 
				do famoso episódio da cutilada no funcionário da Cavalariça 
				Real, Gaspar Borges, que lhe valeu o encarceramento durante nove 
				meses numa das piores enxovias da capital - a prisão do Tronco. 
				A menção, na Carta de Perdão Real de 1553, de que o mancebo 
				pobre se oferece para servir el-rei na Índia, expediente 
				de que Camões decerto lançou mão para acelerar o acto de 
				benevolência régia que o colocaria fora da cadeia e naturalmente 
				também para “fugir a quantos laços nessa terra (Lisboa) me 
				armavam os acontecimentos”, como mais tarde dirá numa carta a um 
				amigo, esvazia a versão do desterro compulsivo ainda que dele, 
				desterro, se não exclua a importância da pressão das 
				circunstâncias adversas. 
				
				
				O espólio epistolográfico constituído por cartas dirigidas a 
				amigos dá do “período de Lisboa” um retrato arrasador que 
				dificulta a construção do mito nacional camoneano nos moldes em 
				que tantos o tentaram erguer - ao arrepio da verdadeira condição 
				social do poeta no quotidiano do seu tempo e da natural 
				propensão para se enredar em casos de ordem pública pouco 
				dignificantes para a sua reputação. O carácter brigão que o 
				celebrizava como arruaceiro roubava-lhe espaço como cidadão e 
				provavelmente qualificava-o como ornamento cultural indesejável 
				no Paço. Por algum motivo lhe chamavam o Trinca Fortes, 
				alcunha de que, aliás, se ufanava, achando que, quanto às solas 
				dos pés, de mas não verem nunca, me fez ver as de muitos. 
				O auto-reconhecimento das nefastas consequências para a sua 
				imagem das amizades que se acendiam em ódios que disparavam 
				lume que (lhe) deitavam mais pingos na fama do que nos 
				couros de um leitão é patente numa das cartas.  
				
				
				António José Saraiva, um dos biógrafos de Camões, comentando o 
				livro de Aquilino Ribeiro Camões Fabuloso e Verdadeiro 
				(1951), não hesita em corroborar a tese do grande escritor 
				português segundo a qual “as mulheres ( de Camões ) foram não as 
				infantas eternamente virginais mas as rameiras; por companheiros 
				teve os arruaceiros que se chocavam em bandos na Lisboa nocturna 
				da época, de mistura com os embarcadiços de passagem.” Mas não 
				embarca em todas as interpretações que Aquilino, na sua ânsia de 
				apoucar um mito recuperado e trabalhado para servir os desígnios 
				do nacionalismo salazarista, vai buscar às cartas, apesar 
				de concordar com a ideia de que o poeta foi um outsider 
				relativamente aos literatos instalados, um inadaptado, um 
				mal-amado orgulhoso mas impotente perante a acção de mecanismos 
				de poder cujo funcionamento não percebia e cuja malignidade, ao 
				ser escolhido para vítima, atribuía à má fortuna e ao 
				destino. 
				
				
				Escreve Saraiva: 
				
				
				“A poesia de Camões revela uma cultura incompatível com uma 
				formação literária superficial ou de autodidacta. Não é apenas a 
				mitologia, a história, a cosmografia, semeadas na sua obra com 
				segurança e familiaridade; não é apenas o conhecimento da 
				Bíblia, de que glosou vários passos...; não é apenas o 
				platonismo, que conheceu e meditou. É, mais do que isso, o 
				conhecimento dos clássicos latinos, com Vergílio à cabeça. E é 
				sobretudo a qualidade do estilo, revelando o saber experimentado 
				do latim, a mão longamente amestrada, a mão sábia. Camões é, 
				mais do que um homem de letras, um letrado, e o mais sabedor 
				letrado do nosso século XVI... Ora essa mão ensinada e erudita, 
				produto de uma longa paciência estudiosa, só se adquire na 
				escola, desde menino... Camões cursou com aproveitamenrto as 
				Humanidades.” 
				
				
				Salta, pois, à vista de todos que Camões, homem culto em cujo 
				espírito fermentou o ideal renascentista de ressurreição das 
				letras e das artes, viveu intensamente, na parte que lhe coube, 
				em sintonia afectiva, emocional e cultural com ele, o período 
				caracterizado por Jean Delumeau como promoção do Ocidente, 
				“durante o qual a civilização da Europa ultrapassou em muito o 
				nível que fora atingido pela da Antiguidade e pelas outras 
				civilizações paralelas”. Inteligente e inconformista, 
				sobrevivendo no dia-a-dia por vezes ao nível da pura 
				subsistência mas situando-se em plano superior aos seus 
				concidadãos nas luzes do conhecimento, na inquietação 
				intelectual e na intuição artística, Camões cantou o Amor nas 
				belas composições em dolce stil nuovo que denunciam a 
				influência retardada de Petrarca e do seu epígono Bembo na 
				exaltação da figura da Mulher, pelo menos numa fase da sua 
				produção - a da juventude - que se presume ser a mais ligada ao 
				paradigma italiano.  
				
				
				“Boa parte do lirismo camoniano é constituído por poesia amorosa 
				do mais alto e fino platonismo, e o grande mestre dos 
				platonizantes dos séculos XV e XVI, entre eles Camões, era 
				Petrarca.”, diz Hernani Cidade no seu Luís de Camões, 
				Arcádia, 1964. Trinta e um anos mais tarde Aníbal de Castro (Biblos, 
				1995) chama a atenção para a urgência em se promover um trabalho 
				de investigação exaustivo “segundo as recentes metodologias da 
				teoria da recepção e do confronto intertextual, de modo a 
				determinar com mais precisão a complexa rede de relações que 
				liga o texto camoniano à cultura literária do seu tempo.” Para 
				este professor da Universidade de Coimbra, o papel da poesia 
				catalã de um Ausias March na transmissão dos códigos do 
				Petrarquismo e do Neoplatonismo peninsulares, reclamam uma nova 
				e especial atenção da parte dos investigadores. Camões cantou o 
				amor e a mulher “segundo os cânones mais rigorosos da tópica e 
				da retórica petrarquistas”, é certo, mas, refere ainda Aníbal de 
				Castro, “recolhendo, com um admirável sentido de ecletismo 
				várias tradições estéticas”, para com os elementos delas 
				recebidos operar “uma profunda metamorfose, que abrange todos os 
				aspectos conteudísticos e formais presentes no texto literário.” 
				Nesta medida, Camões ter-se-á apropriado do código petrarquista 
				para o reorganizar “em função de um veemente e múltiplo dissídio 
				dialéctico” cuja afirmação lírica passou pelo recurso “aos meios 
				semânticos e estilísticos que a tradição petrarquista, numa 
				dimensão bem mais reduzida, consagrara à simples expressão 
				'estado incerto' “ e que, na época, “já estavam confinados à 
				condição de estereótipos formais bem pouco convincentes”. 
				
				
				Passando por alto que a vertente petrarquista da lírica de 
				Camões, associada a manifestações de petrarquismo noutros 
				autores, conhece hoje em Portugal um renovado movimento de 
				atenção por parte de alguns estudiosos ( veja-se o texto de Rita 
				Marnoto O Petrarquismo Português do Renascimento e do 
				Maneirismo, U. Coimbra, 1994), fixemo-nos, para terminar, 
				num livro precioso intitulado Viagens do Olhar, Retrospecção, 
				Visão e Profecia no Renascimento Português ( Prémio Jacinto 
				Prado Coelho,1998 ), da autoria de um romancista e ensaísta, 
				Helder Macedo, e de um filósofo, Fernando Gil. Neste trabalho a 
				duas mãos sublinha-se, em jeito de lamentação, o facto de Camões 
				não se ter organizado para a posteridade, tal como o fizeram 
				Dante e Petrarca, o que leva a que a questão da cronologia da 
				lírica seja um processo permanentemente em aberto, território 
				mal identificado, perigoso para os timoratos, sedutor para os 
				audazes. O escritor, que se ocupou da lírica ajudado por algumas 
				cartas, optou pela audácia. Preferiu pôr o seu olhar arguto a 
				viajar pela obra com o propósito de conferir alguma coerência 
				sequencial ao que se dava a ver, mau grado a inocente 
				ausência de coordenadas de tempo e de lugar constrangerem a 
				visibilidade do trajecto diacrónico da escrita e do seu sujeito. 
				Helder focou a lírica numa perspectiva do desejo - apetite e 
				razão - não muito estudada por contemporâneos e antepassados, 
				que aponta para a reavaliação da personalidade do poeta através 
				do recurso a métodos de psicanálise textual em que o tema 
				recorrente do amor fornece as informações de que a investigação 
				precisa por forma a que o veio satírico-vitalista se sobreponha 
				à linha mais conforme às convenções literárias da época. 
				 
				
				
				No ensaio de H. de M. são evidenciados alguns sinais da 
				consciência que Camões tem da oposição entre a experiência 
				vivida e os modelos estéticos que durante um dado período foram 
				os seus. De certa maneira, o poeta “petrarquista” liberta-se do 
				pai poético num processo normal de ruptura que configura o 
				abandono de uma tutela que não encaixa já no conhecimento 
				prático das dialécticas do quotidiano e no que desse 
				conhecimento se torna matéria viva do poema. Camões - escreve H. 
				de M. - “ficou a dever a Petrarca acima de tudo a aprendizagem 
				poética que lhe permitiu tornar a língua portuguesa um 
				instrumento capaz de cantar com italiana luminosidade.” Mas a 
				crítica ao amor inconsequente expressa numa das suas epístolas, 
				com alusões directas a Petrarca e a Platão, deixam poucas 
				dúvidas quanto ao entendimento anti-petrarquista e pragmático 
				que Camões tem do assunto amático: E eu já de mi vos hei 
				confessar que os meus amores hão-de ser pela activa, e que ela 
				há-de ser a paciente e eu agente, porque esta é a verdade.” 
				Entre a passiva deificação da Mulher da lição clássica e as 
				tarefas de agente “pela activa” que têm por objecto a 
				submissão da paciente, o vate resolve-se pelas segundas, 
				ou seja, pela tomada de partido pela vida, o que vale por uma 
				revisão radical do aprendido à custa do que a experiência ensina 
				e corrige. De facto, uma experiência de errância, de conflito 
				com a lei, de permanente desafio da novidade, de viagem, de 
				amores múltiplos espalhados pelas partidas do mundo onde pousou 
				os pés, só poderia repercutir no texto poético do modo que 
				Helder de Macedo lucidamente sintetiza: apetite e razão. 
				
				
				A razão da angústia existencial não lhe vem da dicotomia amor 
				platónico / amor consumado porque essa, tudo o indica, logrou 
				ele resolvê-la dando escoamento normal aos mais categóricos 
				apelos orgânicos, mas sim dos desconcertos de um mundo 
				onde o apetite de ser feliz “pela positiva” sempre se cruzou no 
				lugar mítico da contabilização dos seus erros com o agudo 
				remorso desses mesmos erros. Erros meus, má fortuna, amor 
				ardente, eis a confissão l de infelicidade vinda de quem tanto 
				desesperou para ser feliz. No fim, o universo pesaroso que 
				anunciava a dissolução da pátria no império espanhol e a 
				consolidação do poder emergente da Santa Inquisição 
				associaram-se da pior maneira ao fado triste que foi a vida 
				deste poeta maior.   |