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				A poesia portuguesa depois da revolução de Abril 
				
				
				
				Júlio Conrado 
				
				
				
				Os 
				acontecimentos de 25 de Abril de 1974 encontraram os escritores 
				portugueses maioritariamente agrupados, do ponto de vista 
				político, numa ampla frente antifascista e treinados na arte de 
				iludir a censura salazar-caetanista com toda a espécie de 
				artifícios por forma a que a sua mensagem de protesto contra o 
				estado das coisas chegasse até um público virtualmente 
				anti-situacionista, de consciência cívica sensível aos problemas 
				do país e por conseguinte atento aos sinais de mudança que os 
				livros continham nas entrelinhas. Tornou-se então imperioso 
				aprender a escrever em liberdade. Fora subitamente alargada a 
				faixa de consumidores da escrita em tempo de “liquidação” do 
				regime antigo e de ensaio de tomada do poder por uma parte das 
				forças de esquerda vencedoras. A liberdade de expressão passara 
				a nutrir-se da efervescente luta de classes no seio das 
				empresas, nas ruas e nos campos; da querela ideológica no seio 
				das famílias e em sectores moderados aturdidos com a espiral de 
				violência verbal dos grupos radicais. Não é, pois, de admirar 
				que os poetas, nos trabalhos produzidos a “quente”, exprimissem 
				as suas emoções utilizando uma linguagem tão terra-a-terra 
				quanto possível que os conservasse em harmonia sustentada com a 
				dinâmica revolucionária posta em marcha. É o momento em que os 
				escritores se tornam “outros”, seja porque a censura os trouxera 
				amordaçados e a realidade de distúrbio feliz produz neles o 
				efeito insólito da garrafa de espumante aberta com estrépito no 
				quarto escuro, seja porque as convulsões sociais ateiam neles o 
				fogo da palavra útil que é preciso alimentar por imperativos 
				éticos e de intervenção directa na vida dos povos, seja, 
				finalmente, pelo aparecimento de condições propiciadoras de uma 
				tranquilidade criadora afecta a escolhas livres mesmo se o 
				contexto socio-político, nalguma medida, tende de novo a 
				constrangê-las. A recondução da Revolução dos Cravos ao seu 
				inicial projecto democrático, o conturbado processo de 
				descolonização, a chamada crise das ideologias gerada pela queda 
				do Muro de Berlim e pela implosão do império soviético, tanto 
				geográfico como mental, terão contribuído para a perda de 
				coordenadas de alguns dos romancistas e poetas mais atreitos a 
				considerarem os seus livros contributos materiais para uma 
				irreversível ascensão à sociedade socialista, mas constituiram 
				fenómenos que estimularam o reencontro de muitos outros com o 
				prazer do texto, na medida em que puderam, passada a fase 
				orgásmica da ruptura, apaziguadas as pulsões, serenado o 
				discurso inflamado da paixão, culminar em liberdade as suas 
				experiências com resultados notáveis atendendo ao volume e à 
				pujança da obra concluída. O mínimo que se pode dizer é que, se 
				a revolução mobilizou os poetas numa conjuntura favorável à 
				intervenção directa destes na vida da comunidade, coagindo-os 
				transitoriamente a adiarem projectos de realização próprios, 
				aqueles que tinham realmente algo a dizer fora do quadro do 
				pragmatismo revolucionário acabaram por fazê-lo com invulgar 
				brilho, corroborando assim a convicção há muito vulgarizada 
				segundo a qual a poesia portuguesa, dada a sua alta qualidade, 
				constitui o género literário que melhor “representa” a 
				literatura do país, pese embora o facto de também o romance ter 
				contado, nos últimos vinte anos, com intérpretes de grande 
				nível, contrariando uma outra ideia feita que dava os 
				portugueses como estruturalmente ineptos para a prática de 
				modalidade tão exigente. 
				
				
				  
				
				
				
				Cantigas, leva-as o vento 
				
				
				Num texto que se pretende da máxima abrangência relativamente a 
				um período tão extenso como é o que vai de 25 de Abril de 1974 
				até à actualidade, não é fácil evitar algumas generalizações nem 
				contornar com análises tecnicamente rigorosas a necessidade de 
				nomear, de lembrar, de não esquecer, porque se muitos são os 
				chamados e poucos os escolhidos, não é este um lugar de escolha 
				e sim de chamada. Comecemos por falar da canção de intervenção 
				na medida em que ela foi veículo privilegiado da poesia no 
				dealbar da liberdade. A Revolução nasceu, por assim dizer, a 
				cantar e constituíu o pano de fundo ideal para o desabrochar da 
				poesia como ela era então entendida por homens como José Carlos 
				Ary dos Santos, Joaquim Pessoa, José Jorge Letria, José Afonso, 
				Adriano Correia de Oliveira, Luís Cília, Manuel Freire, Sérgio 
				Godinho e Francisco Fanhais. Alguns destes nomes de referência 
				da esfera poético-musical tiveram grande influência na alteração 
				do gosto do público no sentido da adesão deste à poesia cantada 
				como “arma” contra a burguesia (terminologia e objectivos dos 
				poemas-canções da época). A canção foi o instrumento mais à mão 
				para fazer chegar a poesia ao povo e alguns dos que já eram ou 
				viriam a consagrar-se vozes de topo na poesia portuguesa das 
				últimas décadas estavam então conluiados com a música na 
				experiência única de transformar a coisa poética numa causa 
				popular de necessidade e urgência. A canção Grândola, Vila 
				Morena, de José Afonso, foi a senha para o arranque das 
				operações militares da madrugada de 25 de Abril e Ary dos Santos 
				(d)escreveu-a assim: “Disse a primeira palavra / na madrugada 
				serena / um poeta que cantava / o povo é quem mais ordena”. A fé 
				de Ary dos Santos no “povo unido” que “nunca mais será vencido” 
				levou-o a construir um poema-canção com base na palavra de ordem 
				célebre, importada do Chile revolucionário. Pedra Filosofal, 
				poema de António Gedeão de elogio ao futuro e à transformação do 
				mundo, foi escutada até à exaustão na balada de Manuel Freire. 
				Através de uma canção ouviu Natália Correia, emocionada, na 
				rádio, no dia seguinte ao da data-corte, o seu poema proibido 
				pela ditadura Queixa das almas jovens censuradas . “A 
				poesia está na rua” era vulgar dizer-se nesses dias de comer 
				estrelas na baixela da liberdade 
				muito por responsabilidade dos que a fizeram para ser cantada. 
				
				
				Se o sentimento de festa instalado na sequência da vitória dos 
				capitães, deu, com efeito, à poesia cantada, uma ressonância 
				nunca antes adivinhada, é preciso reconhecer na sua função 
				circunstancial precaridades que a evolução do processo 
				revolucionário e o percurso posterior dos próprios poetas 
				acabaria por confirmar. Abril não foi só ponto de partida, foi 
				também ponto de chegada. A frente antifascista dos escritores 
				não correspondia a qualquer unanimismo estético-literário: era 
				composta por grupos tendencialmente distintos que de diferentes 
				maneiras interpretavam a oposição à ditadura. No caso particular 
				dos poetas, havia-os de diversos matizes: os do conteúdo, os de 
				vanguarda, os obscuros, os elegíacos, os surrealistas, os 
				eróticos, os espiritualistas, os do quotidiano, os 
				estrangeirados, os da guerra colonial e alguns mesmo 
				realizando-se poderosamente sem ligação orgânica às linhas 
				preponderantes ou ainda revelando-se herdeiros assumidos do 
				património pessoano (influência não despicienda que Fernando J. 
				B. Martinho trata com o escrúpulo do historiador e com a 
				sensibilidade do poeta, que é, em vasta obra consagrada ao 
				assunto, que adiante mencionaremos com o merecido relevo) ou do 
				cesariano. Toda esta pléiade de poetas, unida na oposição ao 
				fascismo, festejou jubilosamente a derrocada do velho regime, 
				“caído de maduro”, como bem constatamos nos poemas de um céptico 
				culto, lúcido e furioso da estirpe de Jorge de Sena, siderado no 
				seu exílio de Santa Bárbara com o que em Portugal se passava: “ 
				Qual a cor da liberdade? / É verde, verde e vermelha./ Saem 
				tanques para a rua,/ sai o povo logo atrás: estala enfim altiva 
				e nua, com força que não recua,/ a verdade mais veraz”, 
				nos versos de Manuel Alegre alusivos à vida por um só dia: 
				“Foram batalhas perdidas. Foram derrotas vitórias./ Foi a vida 
				(foram vidas). Foi a História (foram histórias) / mil encontros 
				despedidas. Foram vidas (foi a vida)/ por um só dia vivida.”, na 
				dúvida sobre a legitimidade dos militares para instaurarem um 
				regime de liberdades que lemos em José Gomes Ferreira, dúvida 
				logo desfeita assim que o poeta foi capaz de interpretar 
				correctamente o rumo dos acontecimentos; nas tensas, tersas 
				palavras de José Manuel Mendes: “depois Lisboa / doca da 
				madrugada / tão de cravos nascida / o povo nas ruas / e o gosto 
				a terra / que só a pátria / tem.” 
				
				
				Cedo se percebeu, porém, que terminado o festim dos espantos 
				surgiriam os problemas e que os tempos vindouros seriam de 
				clivagens profundas entre gente intelectualmente honesta mas 
				profundamente divergente quanto às rotas sociais e estéticas a 
				trilhar. Cedo os poetas menos inclinados a abdicarem dos 
				pressupostos que haviam assistido à obra passada (Natália, 
				Torga, Sena, Sophia, Graça Moura) se posicionaram, não contra a 
				liberdade nem contra a democracia, mas contra o anúncio de uma 
				nova era totalitária, de sinal contrário ao da “ordem” 
				precedente, capaz de sacrificar a uma retórica do “uniforme” de 
				índole burocrática boa parte dos criadores inconformistas (ou 
				apenas incorfomados com o rumo que as coisas levavam) tendo em 
				conta tanto o modelo de sociedade que se pretendia implantar 
				como as equivalências conhecidas da aplicação desse mesmo modelo 
				noutras partes do mundo. Esta é, no entanto, uma luta que se 
				desenvolverá ao longo dos tumultuosos meses de febre balizados 
				pelas datas de 25 de Abril de 1974 e de 25 de Novembro de 1975, 
				altura em que se concretizaram acções de contenção 
				político-ideológica a partir das quais Portugal “regressou” à 
				via ocidentalizante, não sem algumas vacilações e receios de 
				perda de identidade face aos riscos insinuados, à esquerda e à 
				direita, de diluição numa confederação europeia indiferente às 
				especificidades nacionais. A Natália Correia, a poetisa que deu 
				a cara nesse combate, foram assacadas responsabilidades 
				golpistas na derrota do projecto de esquerda, mas a coerência 
				com que depois se bateu pelas suas convicções, tanto no trabalho 
				da escrita como no desempenho das funções de deputada na 
				Assembleia da República atesta uma fidelidade aos valores da 
				liberdade que ninguém ousa pôr em causa a não ser aqueles mesmos 
				que, por razões intrínsecas ao seu perfil intelectual, se 
				mantiveram apegados a irredutíveis visões do mundo e 
				comportamentos afins. 
				
				
				A homenagem de doze poetas a Vasco Gonçalves, o militar-político 
				que foi um dos rostos visíveis das forças acusadas de 
				pretenderem instaurar em Portugal uma democracia popular, pode 
				servir de contraponto à “luta” de Natália Correia pela 
				“liberdade” já porque tinha a legitimá-la objectivos igualmente 
				edificantes – uma “sociedade mais justa” – já porque ainda era 
				difícil de assimilar, pelos sectores apoiantes do general (o 
				famoso “Óscar” das operações militares de Abril) a inversão da 
				corrente História, dois anos depois dos enfrentamentos de 
				Novembro. Conquanto faça todo o sentido que a recolha tenha sido 
				organizada por inspiração partidária, não só é inequívoca a alta 
				qualidade de alguns poemas como se torna particularmente 
				estimulante acompanhar no tempo e no espaço da escrita a 
				evolução dos melhores destes doze cavaleiros do apocalipse: 
				António Ramos Rosa, Armando Silva Carvalho, Casimiro de Brito, 
				Eduardo Olímpio, Egito Gonçalves, Eugénio de Andrade, Gastão 
				Cruz, José Jorge Letria, José Barreiros, José Ferreira Monte, 
				Maria da Graça Varela Cid e Maria Tereza Horta. 
				
				
				  
				
				
				
				Guerra colonial: resistência e catarse 
				
				
				De onde vinha e como estava a poesia que tínhamos à chegada do 
				25 de Abril ? Peguemos na ponta de um dos muitos fios cruzados 
				do tecido da escrita poética – o que faz a ligação com a guerra 
				colonial. Manda o rigor histórico sublinhar o facto de serem em 
				número relativamente escasso as vozes poéticas que se ergueram 
				contra a guerra no decurso desta, pelo que a poesia de 
				resistência configurada como agente explícito de ruptura se 
				confina a versões poligrafadas da índole de Discurso Claro 
				como o Inverno (1961), de Liberto Cruz, 
				a discretas edições de autor como Três Natais (1967) de 
				José Correia Tavares, a livros proscritos como Praça da 
				Canção (1965) e O Canto e As Armas (1967), 
				de Manuel Alegre ou aos contidos poemas-relatos de circulação 
				restrita de Fernando Assis Pacheco, de que o título mais 
				conhecido é Catalabanza, Quilolo e Volta (1972, 
				reformulado em 1976). Ainda que da necessidade de exorcisar os 
				fantasmas da guerra tenha resultado, depois do 25 de Abril, um 
				importante acervo de testemunhos cuja “posterioridade” os situa 
				num contexto de recuperação, acrescento e rectificação da 
				memória colectiva (Vergílio Alberto Vieira, José Martins Garcia, 
				Eusébio Cardoso Martins, João de Melo, Maria da Graça Varela 
				Cid, J. H. dos Santos Barros, Celso Cruzeiro, Fernando Grade, 
				Fernão de Magalhães Gonçalves e Filomena Cabral entre outros) , 
				nunca é demais sublinhar o sacrifício dos pioneiros, tenha 
				presidido ao seu discurso a cólera, a revolta, o desespero ou 
				até mesmo o medo. Jornal de Campanha, de Liberto Cruz, 
				publicado em 1986, reúne “fragmentos” escritos em Buela, Luanda 
				e Sintra entre Maio de 1962 e Janeiro de 1965 que são, no dizer 
				do ensaísta Eugénio Lisboa, “disparos” de um texto “avaro, 
				rápido, seco, letal”. São na verdade incomplacentes para com a 
				guerra essas composições de dois, três versos de recorte 
				diarístico das quais não é excluído o desencanto pela ausência 
				de protesto dos escritores quanto ao que se passava em África: 
				“Onde estão os escritores do meu País / ó António Nobre, que 
				nada escrevem sobre esta guerra ?” e se revelam ora vorazmente 
				irónicas “Uma novidade: a partir de agora alguns pais vão passar 
				a receber no dia 1O de Junho, no Terreiro do Paço, uma medalha 
				em troca dos filhos.” ora de sibilante dramatismo nos limites da 
				dor: “ Com um serrote de cozinha, o médico cortou, há pouco / um 
				braço a um soldado. / A mão armada também salva.” Manuel Alegre, 
				ex-expedicionário, exilado em Argel, registará em livros como 
				Praça da Canção e O Canto e as Armas o absurdo da 
				guerra e a impotência da poesia perante esse absurdo, de que o 
				poema a seguir transcrito é exemplo: 
				
				
				
				De súbito três tiros na memória. 
				
				
				
				Apagaram-se as luzes. Noite. Noite.  
				
				
				
				De súbito três tiros nas palavras 
				
				
				
				um poeta calou-se apagou-se a canção.  
				
				
				
				  
				
				
				
				De súbito um poema foi bombardeado 
				
				
				
				um poeta fechou-se nas vogais 
				
				
				
				cercado por consoantes que talvez 
				
				
				
				caminhassem cantando para um verso.  
				
				
				
				  
				
				
				
				Eram granadas ? Eram sílabas de fogo ? 
				
				
				
				E de súbito a guerra. Noite. Noite. E um poeta 
				
				
				
				com cinco letras escreveu no chão: 
				porquê ? 
				
				
				
				Com cinco letras do seu próprio sangue.
				 
				
				
				
				  
				
				
				
				Praça da Canção 
				
				
				Também Fernando Assis Pacheco, no poema Monólogo e Explicação 
				em Catalabanza se amargura com a fragilidade das sua 
				“armas” preferidas – a poesia, os livros – no cotejo com a 
				violência irracional. 
				
				
				
				Não puxei atrás a culatra, 
				
				
				
				não limpei o óleo do cano,  
				
				
				
				dizem que a guerra mata: a minha 
				
				
				
				desfez-me logo à chegada.  
				
				
				
				  
				
				
				
				Não houve pois cercos, balas 
				
				
				
				que demovessem este forçado.  
				
				
				
				Viram-no à mesa com grandes livros,  
				
				
				
				com grandes copos, grandes mãos aterradas.  
				
				
				José Correia Tavares consegue fazer passar imagens doridas do 
				conflito em África glosando o Natal, tema, em si mesmo, caro às 
				autoridades, o que valeu ao pequeno livro Três Natais 
				(1967) não ter sido apreendido, embora nesses poemas em prosa se 
				denuncie com toda a veemência a malignidade do que então se 
				passava além-mar. Textos que Liberto Cruz eleva à categoria 
				de       “ testemunho duma geração que descobriu na guerra não 
				serem a dor e o luto, a morte e o suicídio, simples e estafadas 
				figuras de retórica.” 
				
				
				Ao sussurro confidencial da represada raiva, ao eco clandestino 
				ou de exílio dos que eram contra a guerra respondia a direita 
				nacionalista tocando a rebate para reunir as hostes que ainda se 
				lhe mantinham fiéis, quando julgou ser oportuno dar a impressão 
				de que eram afinal “muitos” aqueles que defendiam a ficção das 
				províncias ultramarinas de Portugal “do Minho a Timor”. Numa 
				recolha de poemas coordenada por António Almeida Matos O 
				Corpo da Pátria, antologia poética da guerra do Ultramar 
				(1961/71), são seleccionados “poetas da rectaguarda” e “poetas 
				da frente”. Tanto no primeiro grupo como no segundo há presenças 
				surpreendentes, como as de Rui Cinatti (1915-1986) – explicada, 
				de algum modo, pela sua forte ligação afectiva a Timor – (Antologia,1986), 
				de Manuel Geraldo e Álamo de Oliveira, que posteriormente 
				evoluiram para posições críticas em relação ao sentido e às 
				finalidades da guerra, a par do que de mais radicalmente 
				conservador o regime produziu: Amândio César, Fernanda de 
				Castro, Pedro Homem de Melo, Fernando Guedes, Barroso da Fonte, 
				António Salvado, entre outros. Coincidindo com o polémico I 
				Congresso dos Combatentes do Ultramar, foi editada uma antologia 
				dos “poetas do Ultramar” intitulada Vestido de Soldado e 
				organizada por António Salvado (1973).  
				
				
				Pode parecer estranho que, estando os poetas e escritores 
				realmente importantes, juntos na vasta frente de oposição à 
				ditadura, a guerra colonial lhes tenha passado praticamente ao 
				lado durante os treze anos que durou. Recorde-se, a propósito, 
				que uma terrível censura de guerra fez da questão colonial tabu 
				(“a pátria não se discute”). Em Portugal, país periférico 
				fechado ao mundo, cuja população era apertadamente controlada 
				por uma polícia política violenta e poderosa, não se 
				verificaram, por exemplo, os movimentos de opinião que nos 
				Estados Unidos contribuiram para pôr fim à guerra do Vietname ou 
				em França conduziram à independência da Argélia. Os escritores 
				eram sensíveis à ideia de que soluções para a questão colonial 
				passavam pelo estabelecimento de condições mínimas de democracia 
				interna que permitissem a sua discussão. O combate privilegiou a 
				restituição dos direitos, liberdades e garantias a um povo deles 
				privado desde 1926, data que marca o advento do salazarismo.
				 
				
				
				Reconheça-se, ainda, que nenhum poeta – salvo, talvez, Bação 
				Leal, morto na guerra, que não teve tempo para escrever senão 
				sobre ela 
				– fez do conflito o núcleo temático mais forte da sua obra. A 
				guerra constituíu um pesadelo que foi “poeticamente” digerido no 
				seu horror como na sua transitoriedade pelos nela 
				presencialmente envolvidos ou pelos contemporâneos cuja posição 
				ética os colocava na mesma margem de alarme. O sonho mau levou 
				tempo a passar, deixou fundos traços de desespero nas páginas 
				que o relatam, mas uma vez resolvido o problema os poetas foram 
				convocados para fazer outras coisas: a vida reclamava-os para 
				novos e fascinantes desafios embora os que participaram em 
				directo nos acontecimentos pontualmente os relembrem para 
				que não sejam esquecidos. O caso de Vergílio Alberto Vieira é, a 
				vários títulos, exemplar. O seu trabalho poético, de início 
				influenciado por Eugénio de Andrade e que depois ganhou 
				cambiantes particulares na experimentação de variantes de poesia 
				pura, foi “suspenso” na sua orientação semântica e 
				organizacional para abrir espaço a um livro catártico de 
				conteúdo “guerreiro”- A Paixão das Armas (1983) -em que o 
				autor sacode as mágoas do inferno quer recorrendo a implacável 
				veia sarcástica que não recua perante o recurso ao léxico mais 
				ousado para caracterizar situações caricatas sem olvidar a 
				premonição da morte no horizonte de certos poemas, obsessão 
				primordial de qualquer expedicionário lançado contra vontade na 
				sangreira dos combates:  
				
				
				
				Metalizaram o espaço 
				
				
				
				  
				
				
				
				Os olhos saltam das órbitas: 
				
				
				
				metalizaram o espaço 
				
				
				
				  
				
				
				
				A terra sangra 
				
				
				
				Apodrece sobre o rosto nimbado 
				
				
				
				dos mortos 
				
				
				
				  
				
				
				
				Pela madrugada, as buganvílias 
				
				
				
				deixaram de cantar 
				
				
				  
				
				
				
				O espaço é de ferro, arma-se 
				
				
				
				de sombras:  
				
				
				
				  
				
				
				
				Estamos dentro da morte.
				 
				
				
				  
				
				
				
				O neo-realismo e depois 
				
				
				A liberdade reconquistada graças ao Movimento dos Capitães deu 
				um segundo fôlego a alguns poetas resistentes, no passado 
				reunidos em torno de uma colecção editada pela Revista 
				Vértice, de Coimbra, intitulada Novo Cancioneiro 
				(1941/1944). À data de 25 de Abril estão ainda vivos sete dos 
				dez poetas, integrantes da colecção, dados como referências de 
				cume da poesia neo-realista: Fernando Namora, Mário Dionísio, 
				João José Cochofel, Joaquim Namorado, Manuel da Fonseca, Carlos 
				de Oliveira e Sidónio Muralha. Tinham falecido Francisco José 
				Tenreiro (1963), Álvaro Feijó (1941) e Políbio Gomes dos Santos 
				(1939) surgindo a publicação dos poemas deste último, em 1941, 
				como homenagem póstuma. Já na década de noventa viriam a 
				desaparecer Manuel da Fonseca e Mário Dionísio pelo que, 
				actualmente, não restam sobreviventes. (A obra de Carlos de 
				Oliveira está incluída em Obras de Carlos de Oliveira, 
				Ed. Caminho, 1992, com prefácio de José Manuel Mendes). 
				 
				
				
				Convidado a colaborar no nº 10 da colecção, que acabaria por não 
				saír, José Gomes Ferreira considerar-se-á sempre membro do 
				grupo. Todos estes criadores tinham a aproximá-los a intenção 
				social de conotação marxista (neo-realismo era a máscara nominal 
				de realismo socialista, para ludibriar a censura) conquanto 
				variasse de poeta para poeta a atitude face aos imperativos 
				estéticos da escrita: Fernando Namora jamais abdicará da 
				componente psicologística que lhe vem de assumidas afinidades 
				presencistas; Manuel da Fonseca manter-se-á ao rés do povo, 
				cantando-lhe as necessidades e as dores com versos de uma 
				densidade e depuração formal muito exigentes; Carlos de Oliveira 
				refinará o seu notório gosto pela palavra rigorosa e 
				contundente, construindo uma obra única à qual muitos defendem 
				ter ido “beber” alguma da Poesia 61, conquanto outros 
				preconizem que a influência foi de sentido inverso; João José 
				Cochofel, “um aristocrata que simpatizava com o povo” 
				será uma voz intimista, crepuscular e discreta que se terá 
				afirmado melhor no ensaio; José Gomes Ferreira, poeta do 
				quotidiano citadino e das metáforas pomposas, gestor afortunado 
				da dialéctica do eu individual-eu social, fará agulha, em 
				liberdade, para a irreverente coloquialidade com que questiona o 
				real a partir da observação directa da realidade, extraindo dos 
				efeitos desta ganhos de popularidade não negligenciáveis; 
				Joaquim Namorado será aquele em cuja obra pesará de forma mais 
				nítida o “programa” de transformação da sociedade a que na 
				literatura e na vida se devotou, e Mário Dionísio, intelectual e 
				teorizador do movimento, na primeira fase, derramará o seu 
				talento pelo ensaio, a crónica, a crítica, o conto e o romance, 
				além, evidentemente, da poesia. Do grupo (alargado) do Novo 
				Cancioneiro só Joaquim Namorado e José Gomes Ferreira são 
				“poetas militantes” em 25 de Abril. Cochofel pouco se expõe. 
				Carlos de Oliveira, Fernando Namora e Manuel da Fonseca são 
				então renomados romancistas. Mário Dionísio partilha-se pela 
				pintura, o ensaio, a crónica memorialista, depois de ter 
				escrito, convém lembrar, um romance paradigmático 
				causador de certa perturbação por se tratar de um trabalho 
				tecnicamente elaborado ao arrepio daquilo que postulara nos anos 
				quarenta como formalmente conveniente à boa consciência e 
				eficácia neo-realistas. Pastoral (1976), de Carlos de 
				Oliveira, Nome Para Uma Casa (1984), de Fernando Namora, 
				e Terceira Idade (1982), de Mário Dionísio, são os 
				títulos mais salientes de colectâneas de poemas assinadas pelos 
				últimos representantes de uma geração de notáveis que, tendo 
				começado pela poesia, se realizou predominantemente na prosa. 
				
				
				De entre os poetas de qualidade estreados nas décadas de 
				quarenta-cinquenta, vários são os que chegaram ao 25 de Abril em 
				plena actividade criadora, actividade que a libertação da 
				censura tornou mais impetuosa e vibrátil. Dos praticantes do 
				neo-realismo mais vincamente ideológico (Antunes da Silva, 
				Armindo Rodrigues, José Saramago) aos cultores de relações de 
				(boa) vizinhança ou de grande intimidade com um surrealismo 
				retardado e que deram nas vistas graças ao dinamismo por si 
				imprimido a modos de comunicação poética irreverentes e 
				provocatórios para a época (António Barahona da Fonseca, Mário 
				Cesariny de Vasconcelos, Alexandre O'Neill, Egito Gonçalves, 
				Natália Correia, António José Forte, Mendes de Carvalho, José 
				Carlos Gonzalez, Vergílio Martinho, Helder Macedo, Rui Cinatti, 
				alguns deles componentes do grupo “abjeccionista” do Gêlo, 
				uma tertúlia que animou, no café lisboeta do mesmo nome, a vida 
				cultural no final dos anos cinquenta) e aos que irradiaram de 
				projectos singulares ou grupais para fulgurantes caminhadas 
				solitárias (Miguel Torga, Jorge de Sena, David Mourão-Ferreira, 
				Sophia de Melo Breyner, Eugénio de Andrade, João Rui de Sousa, 
				António Ramos Rosa e Albano Martins), todos tiveram bons motivos 
				para se congratularem com a instauração das liberdades, 
				incluindo a que mais lhes interessava, a liberdade de expressão, 
				que os projectou no país finalmente à medida da sua verdadeira 
				estatura intelectual, dando-lhes e às suas obras a visibilidade 
				que os arrancou a um silêncio injusto e, nalguns casos, trágico, 
				junto do seu próprio povo.  
				
				
				É difícil isolar de entre os nomes atrás referidos os dos 
				“melhores”, dado tratar-se de criadores multifacetados que 
				nalguns casos levaram até às últimas consequências a indagação 
				metafísica da causalidade poética, como António Ramos Rosa, 
				autor entregue, nesse campo, a uma denodada porfia cujo processo 
				ainda decorre e à qual Vergílio Ferreira se reportou nos 
				seguintes termos: “De livro em livro, de poema em poema, essa 
				palavra rarefaz-se até ao desejo inexorável e absurdo de ser 
				fala plena no silêncio. Palavra discreta que mal se enuncia, faz 
				sinais longínquos a outras palavras à distância, estremece 
				indecisa à ponta do “lápis” que a torna real – ela evoca o gesto 
				de uma sacralidade e secreta iniciação.” (Do prefácio a O 
				Incêndio dos Aspectos, 1979). 
				Sophia de Melo Breyner explora com impressivo recorte 
				perfeccionista o engaste das paisagens límpidas e solares do 
				Mediterrânio helénico (ou do sul português que mais se lhe 
				assemelha) na palavra que, ao designá-las, resplende de um 
				imaginário encantatório de beleza e transparência (De pedra e 
				cal é a cidade / Com campanários brancos /De pedra e cal é a 
				cidade / Com algumas figueiras. Geografia, 1961) . 
				São-lhe assinaladas ao longo da obra certas inflexões de sentido 
				tendentes à adesão a realidades mais “tangíveis” através de uma 
				linguagem menos afectada por ressaibos aristocratizantes, mas a 
				sua escrita jamais perdeu a unidade que faz dela um marco de 
				coerência estilística na moderna poesia portuguesa. 
				David Mourão-Ferreira cristalizou em harmoniosa escrita clássica 
				de assumido pendor hedonista o louvor à figura da mulher como 
				mito erótico axial (Quem foi que à tua pele conferiu esse 
				papel / que mais que tua pele ser pele da minha pele, Do Tempo 
				ao Coração, 1966), mas notou com argúcia Eugénio Lisboa, a 
				propósito de um dos seus poemas, que “… toda a poesia de David 
				Mourão-Ferreira (1927-1996) com todo aquele deflagrar de corpos 
				que fulgem, é minada por rios subterrâneos de uma angústia 
				omnipresente: a luz segrega a sombra, como o deserto segrega a 
				sede”. 
				Eugénio de Andrade, mergulha em versos da mais pura água 
				sentimentos, afectos, paixões, solidões, desencantos, fundidos 
				na matéria das coisas, nos elementos naturais e no destino 
				precário do corpo depois do apogeu, sobretudo na fase posterior 
				a Obscuro Domínio (1971), momento de viragem para 
				uma das mais empolgantes aventuras poéticas do nosso tempo 
				português (obras mais recentes: Matéria Solar (1980), 
				O Peso da Sombra (1982) Branco no Branco (1984) 
				Vertentes do Olhar (1987), O Outro Nome da Terra 
				(1988), Rente ao Dizer (1992). Jorge de Sena (192O-1978) 
				em azedo contencioso com a terra-mãe, ergueu um protesto 
				gigantesco contra a exclusão a que o seu tempo o forçou, eivado 
				de ressentimento radical, caso sem paralelo nas lusas Letras: 
				“És cabra, és badalhoca, és mais que cachorra pelo cio, és peste 
				e fome e guerra e dor de coração. Eu te pertenço: mas ser's 
				minha, não.” escreveu, referindo-se à pátria, que ainda a tempo 
				recuperou como sua após demorado e aviltante exílio por diversas 
				partes do mundo, que culminou em Santa Bárbara (Estados Unidos), 
				onde o surpreendeu a notícia do golpe libertador. Homem de 
				Letras dos mais cultos do seu tempo, queixoso do descaso dos 
				contemporâneos em relação à sua obra, atormentado e vigilante, 
				como sobre ele escreveu Angel Crespo, poeta-filólogo maneirista, 
				como lhe chamou João Barrento, “caso-limite de identidade na 
				alteridade”, a propósito das máscaras de Camões, como referiu 
				José Augusto Seabra, Jorge de Sena é uma figura que impressiona 
				pelo excesso na afirmação do que nega, pelo superavit de 
				convicção alardeado nos seus textos, poéticos ou não, pelo 
				protesto violento de quem não se rende ao ignominioso ultraje de 
				um ostracismo imerecido. 
				Pela estrada larga da poesia viaja, com pujança criadora, João 
				Rui de Sousa, sempre fiel a um lirismo de “obscura” clareza que 
				não cessa de se renovar. 
				Miguel Torga (1907-1994) telúrico solitário, incansável no seu 
				amor pelos lugares de apreço calcorreados a par e passo com 
				paciência de peregrino e minúcias de investigador de sensações 
				fortes, foi o moderno cantor da pátria, o que lhe sofreu as 
				dores e os rancores e lhe captou os momentos cintilantes sem 
				nunca perder de vista o destino de um povo sacrificado mas 
				desperto para a defesa da sua unidade existencial. Arauto da 
				liberdade, a quem Fernão de Magalhães Gonçalves reconheceu um 
				itinerário órfico, um discurso cósmico, um discurso sociológico 
				e um discurso teológico, foi na “clandestinidade do espírito” 
				que estas linhas de sentido se intersectaram numa obra rica de 
				significação e actualidade.
				 
				
				
				
				Foste um sonho redondo 
				
				
				
				E és agora 
				
				
				
				Um palmo de amargura 
				
				
				
				Retornada.  
				
				
				
				Amargura que em mim 
				
				
				
				Também nunca tem fim 
				
				
				
				Por ter sido comigo baptizada.  
				
				
				[28.4.77 Diário XII] 
				
				
				Egito Gonçalves começa a ser um caso sério de longevidade 
				literária activa: ganhou recentemente o prémio do Pen Clube 
				Português, ex-aequo com Armando da Silva Carvalho, e sagrou-se 
				vencedor do sempre ambicionado Grande Prémio de Poesia, da 
				Associação Portuguesa de Escritores, com o livro “E no 
				entanto Move-se” (1995) no qual alguma crítica viu “os seus 
				melhores versos”, mas a sua obra vem do início dos anos 
				cinquenta: encontramo-lo já entre os colaboradores de Árvore 
				, revista dirigida por António Ramos Rosa, António Luís Moita, 
				José Terra, Luís Amaro e Raul de Carvalho de que sairam apenas 
				quatro números mas que constituíu, segundo Clara Rocha, “lugar 
				de afirmação de um grupo de poetas ligados pelo vínculo 
				geracional e por um comum entendimento da criação artística”. 
				Além dos fundadores e de Egito Gonçalves, por aquelas “folhas de 
				poesia” passaram Matilde Rosa Araújo (cuja finura e 
				sensibilidade poéticas pudémos rever em Voz Nua, 
				1986 e A Estrada Fascinante, 1988) Sebastião da Gama, 
				Alberto Lacerda, Sophia de Melo Breyner, David Mourão-Ferreira, 
				Cristóvam Pavia e Mário Cesariny de Vasconcelos. 
				Egito Gonçalves, autor de poesia de matriz surrealista, é 
				considerado na História da Literatura Portuguesa, de 
				Óscar Lopes e António José Saraiva, “o mais importante caso de 
				imagismo-surrealismo que se transcende”, na primeira fase da sua 
				carreira, e continuador “da tradição lírica do amor por uma 
				partitura onde, às vezes com extraordinário acerto e audácia, a 
				exuberância de registos metafóricos e de timbres afectivos se 
				casa com a dialéctica ausência-presença, saudade-desejo, 
				textualização possível-impossível, de um (dois) corpo(s) e suas 
				circunstâncias.” A obra de Egito Gonçalves até 1991 está reunida 
				em Pêndulo Afectivo, Ed. Afrontamento. Alexandre O'Neill 
				(1924-1986) controversa figura literária à qual foram colados os 
				rótulos de “surrealista”, “herdeiro” de Nicolau Tolentino (poeta 
				satírico do século XVIII), poeta do “concreto” e “publicitário”, 
				entre outras minudências de encarecimento personalista tendentes 
				a arrumá-lo nos armários da História devidamente classificado, 
				fez do verbo sistematicamente insubordinado o instrumento com 
				que arranhou os tiques, as manias e as disfunções psicológicas 
				dos seus contemporâneos, satirizando em versos breves e secos, 
				plenos de eficácia, desbordantes de inventiva, uma quantidade 
				enorme de tipos citadinos sem nunca cortar as asas às expressões 
				que, adquirindo dinâmica própria, queriam voar para fora do 
				quadro do “concreto” em que à viva força Alexandre Pinheiro 
				Torres quis encarcerá-las, a avaliar por um textozinho 
				programático incluído num livro intitulado justamente 
				Programa para o Concreto (1966). Fernando J. B. Martinho, 
				todavia, não anda longe das verificações de Pinheiro Torres ao 
				reconhecer que O'Neill se “detém a observar criticamente o real, 
				a sujeitá-lo, em tom de fala, próxima, viva, a uma visão 
				ora ternamente irónica ora virulentamente sarcástica, de modo a 
				dar-nos, na radiografia dos nossos pequenos ridículos e 
				mediocridades, o retrato certeiro do país que somos.”, ao invés 
				de libertar o real quotidiano “para as zonas do surreal onde se 
				busca a anulação das contradições…”. 
				Albano Martins é mais um poeta defensor da economia verbal, que 
				no seu caso se caracteriza por incidir numa escrita fortemente 
				alegórica, portadora de fascinantes associações simbólicas de 
				marcada ligação à natureza e à vida (Afluentes / dum rio: 
				conúbio / da água com a água, Com as Flores do Salgueiro, 
				1995). 
				Raul de Carvalho fez da poesia o espelho da sua timidez, o 
				vazadouro das suas amarguras de homem socialmente marginalizado. 
				Serafim Ferreira, investigador da obra do poeta alentejano e um 
				dos seus biógrafos, observa que na “dor” e no “sofrimento” “toda 
				a poesia de Raul de Carvalho mergulha e se cumpre no destino de 
				ser forma de expressão tão pessoal e própria, lembrando, como 
				Lautreamont, que “só o poeta consola a humanidade”. 
				E para Luís Amaro (autor de delicada poesia intimista que não 
				voltou a publicar em livro desde Diário Íntimo, Dádiva 
				e outros poemas, de 1975) o desaparecido companheiro da 
				Árvore viria a merecer-lhe as seguintes palavras na 
				homenagem que lhe foi prestada em 23 de Novembro de 1996 na 
				terra natal, Alvito: “A dada altura, descobrira, como fuga, o 
				sentido de humor surrealizante – e quanto, no íntimo, sonharia 
				ingressar no grupo marginal e culto, negativista, dos 
				surrealistas lisboetas ! Mas não: as suas raízes nunca de todo 
				se desprenderam do húmus natal, do vero padrão lírico de início, 
				ainda que superando-o, enriquecendo-o de leituras, experiências, 
				incursões no campo artístico em que se movia como em terreno 
				próprio.” 
				António Gedeão, poeta, e Rómulo de Carvalho, professor, 
				historiador e divulgador da Ciência, são uma e a mesma pessoa. O 
				poeta estreou-se em 1956 com Monumento Perpétuo e em 1964 
				publicou Poemas Completos com prefácio de Jorge de Sena, 
				asseverando Fernando Guimarães (J. L. 6.11.96) que o 
				imaginário de António Gedeão “talvez esteja mais perto da 
				expressão barroca” e salientando como “aspecto importante” da 
				sua poesia “ o modo como se usa a sua figuração irónica”. Ao 
				completar, no ano transacto, 90 anos de idade, as comunidades 
				literária e científica juntaram-se para lhe prestar 
				significativa homenagem. Dos poetas estreados na década de 
				cinquenta que mantém um alto índice de produtividade, há a 
				destacar Pedro Tamen, cujo livro inicial, Poema para Todos os 
				Dias, 1956, ressente preocupações religiosas, tal como 
				Fernando Echevarría (recolhas: Poesia 1956-1979; 
				Poesia 1980-1984), seu companheiro de geração, evoluindo 
				aquele depois para formas de crítica subtil e irónica da 
				realidade quotidiana, como é bem patente em Horácio e 
				Coriácio,1981: “Olha Daisy: quando amanhã for à praça / 
				compro-te um peixe com uma chave no bucho. / Não serei Gepeto ou 
				Jonas devolvido,/ mas leitor moído, colecção Manecas”; 
				Maria Alberta Menéres (Poemas Escolhidos 1952-1961, José 
				Carlos Gonzalez (estreia: 1957; antologia: 7O Poemas,1990), 
				Helder Macedo (Poesia 1957-1977, Moraes Ed., 1979) Rui 
				Knopfli (Memória Consentida – 20 Anos de Poesia 1959-1979, 
				Imprensa Nacional, 1982), Orlando da Costa (A Estrada e a Voz, 
				1951, Canto Civil, 1979, Caminho), José Blanc de Portugal 
				(Parva Naturália, 1959, O Espaço Prometido, 
				Moraes Ed., 1960) José Bento (Silabário, 1992, Relógio d'Água, 
				obra poética 1953-1992) e António Cabral (O Mar e as Águias, 
				1956, Os Homens Cantam a Nordeste, 1967, Emigração 
				Clandestina, 1977, Novos Poemas Durienses, 1993) são 
				outros dos poetas estreados na década de cinquenta que vêm 
				publicando com maior ou menor regularidade. Fernando Guimarães, 
				estreado em 1956, é um caso notável de alteridade 
				crítica/criação. A par do labor crítico bem evidenciado ao longo 
				dos últimos anos nas páginas da Revista Colóquio/Letras e 
				do J. L. escreve poesia, já reunida em Poesias 
				(1956 a 1988) tendo recebido o Grande Prémio da Associação 
				Portuguesa de Escritores e o Prémio do Pen Clube pelo seu livro
				Anel Débil, 1994, Afrontamento.  
				
				
				  
				
				
				
				Os polémicos anos sessenta
				 
				
				
				Aqueles que o poeta Vasco da Graça Moura considera “uma boa 
				merda”, 
				os anos sessenta (altura em que se estreou), são, objectivamente, 
				anos decisivos para a poesia portuguesa contemporânea. Desde 
				logo o aparecimento do grupo da Poesia 61 constituído por 
				cinco poetas animados da vontade de romper com a “praxis” 
				dominante veio alterar os equilíbrios existentes. Contra a 
				verbosidade, a litania do social – que já não lograva impor com 
				eficácia os seus estafados clichés messiânicos (os amanhãs que 
				cantam, etc.) – e um certo conformismo reinante, os cinco 
				intérpretes de Poesia 61 (Gastão Cruz, Fiama Hasse Pais 
				Brandão, Maria Teresa Horta, Luiza Neto Jorge e Casimiro de 
				Brito) propunham-se, através da adopção de uma linguagem tensa e 
				densa, cifrada, de uma economia textual auto-vigiada a par de 
				reiterada preocupação social, relançar nos circuitos 
				comunicacionais mensagens em código, não de imediato 
				referenciáveis pela censura, que compatibilizassem inovação 
				significante e reforço da atenção aos mais candentes problemas 
				que afligiam a sociedade portuguesa. Todos eles viriam a 
				construir obra poética duradoura ainda que o trabalho da maoiria 
				se tenha ressentido da pluridisciplinaridade que já informara a 
				produção da anterior geração neo-realista: Maria Teresa Horta 
				tergiversou, sem grande sucesso, pelo romance, em repetidas 
				digressões eróticas de registo intimista; Fiama Hasse Pais 
				Brandão repartiu-se pela poesia e pelo teatro, expondo-se à 
				crítica, que viu na “obsessão” pela metáfora, causa de asfixia e 
				devorismo textuais, o sinal de um momento “historicamente 
				determinado” de valorização recorrente dos “padrões míticos” 
				e inflectindo ultimamente para modos de acentuação da carga 
				sonora da sua poesia, depois de discutida a presença, nela, do 
				sujeito intertextual e da autonomia da escrita, em composições 
				de ressonância camoneana; 
				Casimiro de Brito cultivou a ficção romanesca (sendo co-autor de 
				um interessante romance “a dois” com Teresa Salema), a crónica e 
				a crítica, evoluindo na poesia para patamares superlativos de 
				inteligência do prazer, trazendo a provocação do desejo à 
				superfície das palavras solares que o nomeiam, depois de 
				ultrapassado o pessimismo “elegíaco” dos primeiros versos (Corpo 
				Sitiado, recolha, 1955-1963). No seu último trabalho, 
				Intensidades (1996) nostalgia, androginia e afirmação 
				narcísica da urgência de amar como saída para o “belo caos 
				inquieto do mundo em volta”, fundem-se numa valorização do 
				presente e dos seus momentos privilegiados “Já que não posso 
				mudar o mundo / deixa-me sacudir a areia / das tuas sandálias”; 
				Gastão Cruz e Luiza Neto Jorge (1939-1989) terão sido, digamos 
				assim, os menos erráticos, a segunda porque viria a falecer 
				quando ainda tinha muito para dar à poesia e a sua herança 
				literária se confina aos versos de intransigente e dorida 
				frontalidade – não isentos de uma exigente contenção formalista 
				– com que ataca o universo das ideias feitas, exalta as 
				metamorfoses do corpo minado pela doença ou dominado pelo desejo 
				erótico e luta pela dignidade humana, e o primeiro por opção, o 
				que faz dele o poeta mais coerente com os objectivos iniciais do 
				grupo, 
				até porque, tendo sido um dos seus teóricos, capitaliza numa 
				escrita que retém da lição camoneana a sua essencialidade, as 
				capacidades de expressão que dão corpo a muitos dos objectivos 
				que postulou. 
				
				
				Os poetas aglutinados à volta do projecto Poesia 61 
				tiveram a sua “réplica” em Coimbra, ainda sob a égide tutelar da
				Vértice e do incentivo ideológico de Joaquim Namorado, na 
				publicação dos primeiros poemas de José Carlos Vasconcelos, 
				Fernando Assis Pacheco e Manuel Alegre. Diferentes seriam os 
				percursos destas três figuras importantes da sua geração: José 
				Carlos de Vasconcelos trocaria o suado labor poético pelas 
				seduções do jornalismo, mantendo de pé, depois de dezasseis anos 
				de teimosia, um baluarte das Letras – o Jornal de Letras, 
				Artes e Ideias -, título de referência na imprensa cultural 
				portuguesa; Fernando Assis Pacheco (1937-1996), de quem já 
				falámos a propósito da guerra colonial, evoluiria para uma 
				poesia de recorte surreal-satírico distante dos belos propósitos 
				da sua fase neo-realista (Musa Irregular, 1996); e Manuel 
				Alegre, cuja vasta obra se distribui pela condenação da guerra, 
				o protesto cívico e um “mergulho” afectuoso no património lírico 
				português (de Camões a Bernardim Ribeiro, dos trovadores a 
				Fernando Pessoa), tendo a pátria como instância mítica central, 
				trata, ora com fervor épico, ora com delicada sensibilidade, 
				factos históricos erigidos em temas nucleares sem nunca 
				prescindir dos recursos rítmicos e de musicalidade da melhor 
				poesia tradicional.
				 
				
				
				Organizados em torno das páginas literárias dos jornais da 
				província, alguns poetas de diversas proveniências (na maioria 
				neo-realistas ou aparentados mas igualmente surrealistas como 
				Carlos Loures e Fernando Grade) realizaram “encontros” cuja 
				periodicidade se quis anual mas que em boa verdade se realizaram 
				somente quando foi possível, com a finalidade de se darem a 
				conhecer uns aos outros e incomodarem a ditadura, o que, até 
				certo ponto, conseguiram. António Augusto Menano, um poeta da 
				Figueira da Foz, e Santos Simões, professor em Guimarães, 
				lograram dinamizar, confrontados com dificuldades enormes, esses 
				encontros, sendo que no seguimento de um deles (Cascais, 1964), 
				embora não como sua consequência directa, foi preso pela polícia 
				política o poeta Carlos Loures. José Ferraz Diogo, Daniel 
				Filipe, Idalécio Cação, Manuel Amaral e António Augusto Sales, 
				além dos já citados, entre outros, pontificaram nesse movimento. 
				Com exepção de Fernando Grade, que não “saíu” da poesia, as 
				restantes figuras ou “desapareceram” na voragem da militância 
				política, ou se “perderam” para profissões mais estimulantes ou, 
				enfim, cederam, como tantos outros, à atracção da prosa. António 
				Augusto Menano tem-se feito notar ultimamente por 
				romances-crónicas fixados na sua experiência de Macau, onde 
				viveu alguns anos (embora com poesia aí localizada: Poemas do 
				Oriente, 1990) e Carlos Loures ficciona preferencialmente 
				episódios da luta contra o salazarismo. Luís de Miranda Rocha – 
				cujo primeiro livro data de 1968 (O Corpo e o Muro) – um 
				poeta contemporâneo deste grupo mas que vem percorrendo um 
				caminho próprio de indagação existencial a partir de textos de 
				complexa estrutura semântica, continua a fazer prova da sua 
				coerência relativamente à opção tomada (obras mais recentes: 
				Os Arredores do Mar, 1993, Vagas, Artifícios,1995) . 
				
				
				Em 1964 apareceu o primeiro caderno de publicação antológica 
				Poesia Experimental, que congregou nomes revelados no 
				último quartel da década anterior, com vista à abertura de uma 
				frente de “desconstrução do discurso” que “suportava 
				ideologicamente” uma sociedade “traumatizada e eivada de 
				contradições internas e externas… uma sociedade provinciana 
				oprimida e fechada como a nossa”. 
				A poesia experimental, voltada para a exploração de recursos não 
				especificamente literários, como o visual e o objectual, colidia 
				frontalmente com os valores que sustentavam a crítica literária 
				mais influente da altura, a crítica jornalística, ao favorecer 
				“valores mais pragmáticos, objectivos e construtivistas, tais 
				como a estrutura da construção do texto, quer visual, quer 
				fonética, quer morfológica, ou a transgressão produtora da 
				própria autonomia textual, ou o isomorfismo conceptual-visual do 
				poema concreto.” António Aragão, António Ramos Rosa, António 
				Barahona, E. M. de Melo e Castro, Herberto Helder e Salette 
				Tavares figuram na rampa de lançamento de Poesia Experimental 
				. A maioria destes poetas viria a perseguir interesses próprios, 
				nem sempre coincidentes com a natureza fundadora do movimento. 
				E. M. de Melo e Castro, principal teorizador e divulgador das 
				acções do grupo, Ana Hatherly, Salette Tavares (1922-1995) e 
				José Alberto Marques, a que depois veio juntar-se um poeta 
				iconoclasta como Alberto Pimenta, identificado com as posições 
				de Adorno, 
				são os vultos mais insinuantes, em Portugal, da poesia de 
				vanguarda tal como ela era praticada e divulgada nos seus 
				fundamentos e propósitos, nos anos sessenta e que na década 
				precedente tivera no Brasil percursores da envergadura de Décio 
				Pigmatari e Haroldo e Augusto de Campos.  
				
				
				A década de sessenta (cujos autores nesse período revelados ou 
				em início de carreira têm larga repercussão desde o 25 de Abril 
				até aos nossos dias), é, no entanto, quanto a performances 
				individuais, dominada por dois poetas de proveniências 
				diferentes: Herberto Helder, 
				estreado no decénio anterior (O Amor em Visita, 1958) 
				companheiro de cruzada dos mentores da Poesia Experimental, faz 
				desde logo alarde de frontal recusa dos dispositivos culturais 
				dominantes, e Ruy Belo (1933-1978) – cujo livro de estreia, 
				Aquele Grande Rio Eufrates, é de 1961- oriundo da área 
				espiritualista afecta à Igreja Católica, “obriga” a sua poesia a 
				um movimento deslizante, ao encontro das preocupações da 
				sociedade “laica”, acabando por veicular dilacerantes 
				contradições de cariz ontológico, que constituem, para muitos, a 
				sua principal riqueza, através da atitude neo-romântica que 
				passou a impregnar a sua escrita, até aí voltada para os grandes 
				feitos históricos e para o elogio da pátria como universo mítico 
				tutelar. “Não renego um passado conhecido de muitos, susceptível 
				de ser conhecido por quem o quiser conhecer. Apesar disso sofri 
				alguma coisa, numa sociedade e num país onde se sofre muito. No 
				termo de dez anos de uma aventura mística que terminou há dez 
				anos, eu saí para a rua e para o dia-a-dia com este punhado de 
				poemas, com estas palavras que me consentiram escrever nos 
				breves intervalos de um silêncio durante muitos anos imposto, a 
				pretexto de que, de contrário, a minha alma correria perigo, 
				como se eu tivesse uma coisa como alma, como se correr perigo 
				não fosse talvez a minha mais profunda razão de vida.” São 
				premonitórios estes versos de 1976 extraídos do poema Uma 
				Forma de me Despedir: 
				
				
				
				Nos fins de setembro quando eu partir 
				
				
				
				de uma cidade seja ela qual for 
				
				
				
				quando eu pressentir que alguém morre 
				
				
				
				que alguma coisa fica para sempre nos dias 
				
				
				
				e ou nuns olhos ou numa água 
				
				
				
				num pouco de água ou em muita água 
				
				
				
				onda do mar lágrima ou brilho do olhar 
				
				
				
				eu recear seriamente vir-me a submergir 
				
				
				
				direi alto ou baixo conforme puder 
				
				
				
				com a boca toda ou já a custar-me a engolir 
				
				
				
				as palavras mar ou mulher 
				
				
				
				com certo vagar e cada vez mais devagar 
				
				
				
				mulher mar 
				
				
				
				depois quase já só a pensar 
				
				
				
				o mar a mulher 
				
				
				
				Não sei mas será 
				
				
				
				talvez mais que outra coisa qualquer 
				
				
				
				uma forma de me despedir
				 
				
				
				De Herberto Helder dirá Fernando J. B. Martinho tratar-se de um 
				“Poeta indelevelmente marcado pelo Surrealismo” que fez de 
				elementos como o “excesso”, a “graça furiosa”, a “vertigem”, a 
				“febre”, os fundamentos do seu processo criativo” 
				enquanto que Maria Estela Guedes, num extenso e informado 
				trabalho de interpretação da obra deste autor 
				destrói logo à partida eventuais reservas dos receptores mais 
				cépticos: “Herberto Helder é um dos poetas mais fascinantes que 
				me foi dado ler, e aquele cujo poder encantatório mais me 
				deslumbrou. Este livro representa o tributo que ao fim da 
				estrada o viajante paga por a ter percorrido, sendo também o 
				resultado de quatro anos de convivência assídua com a obra 
				herbertiana.”  
				
				
				Ruy Belo e Herberto Helder contrariam, não de modo deliberado 
				mas tão só porque são intrinsecamente avessos à economia de 
				linguagem que consubstanciava a proposta de Poesia 61, 
				todo e qualquer obstáculo ao curso da palavra, não reconhecendo 
				limites técnicos à expansão desta, e se o primeiro, não 
				obstante, ainda respeita os pressupostos do comunicado clássico, 
				o segundo subverte-os em deslumbrantes jogos de espelhos 
				estilhaçados, numa exuberante reivindicação de liberdade para o 
				texto poético de alguma maneira contrastante com a discrição que 
				pauta o seu comportamento social. Herberto não aceita prémios, 
				não dá entrevistas, repele sistematicamente homenagens e 
				prebendas, não tem visibilidade mediática, vivendo 
				exclusivamente para a Poesia numa entrega de si a si e de si a 
				ela, Poesia, sem outros mediadores que não sejam os editores que 
				lhe publicam os livros, os leitores, alguns amigos. Personagem
				estranhíssima no mundo das pequenas vaidades e dos 
				pequenos vedetismos dos artistas das Letras, Herberto Helder 
				distingue-se sem dúvida como uma das mais fortes personalidades 
				literárias do século que certamente muita tinta ainda fará 
				correr: além de que não esgotou o seu invejável gosto de 
				experimentador nem exauriu o seu fabuloso arsenal linguístico , 
				a “obra feita” do ilustre poeta madeirense – a que ele costuma 
				chamar “Poesia Toda” – é já suficiente para alimentar o 
				interesse de várias gerações de estudiosos que sobre ela venham 
				a debruçar-se criticamente. 
				
				
				Outro dos poetas que marcou presença significativa foi Armando 
				Silva Carvalho, cujo ano de estreia foi o de 1965 com Lírica 
				Consumível . Escritor plurifacetado, que tanto em poesia 
				como em prosa tem patenteado um apreciável arcaboiço satítiro na 
				crítica à sociedade do seu tempo, ora censurando com grande à 
				vontade as dialécticas do consumo e os ritos da publicidade, ora 
				ironizando o processo de realização e produção do texto, ora 
				refinando a acentuação no erotismo, tudo isto na óptica do 
				desgaste de uma visão do social urbano potencialmente geradora 
				de mal-estar civilizacional , Armando Silva Carvalho é um dos 
				bons valores da sua geração que ainda recentemente mereceu, de 
				parceria com Egito Gonçalves, o prémio do Pen pelo seu livro 
				Canis Dei, 1995. 
				Vasco Graça Moura, estreado em 1963 com Modo mudando, 
				seguido de Semana Inglesa (1965) e de Quatro Sextinas 
				(1973) em edições de autor, só depois do 25 de Abril vem a 
				conhecer grande notoriedade pública, quer pelo ritmo de produção 
				e de publicação imprimido à sua obra desde então, quer porque se 
				desdobrou em mútiplas actividades com afirmação mediática 
				garantida, sobretudo as relacionadas com a sua postura cívica de 
				“reserva intelectual” do cavaquismo. Embora tendo experimentado, 
				com discretos resultados, a ficção romanesca, na poesia – uma 
				poesia inicialmente próxima do surrealismo que depois derivou 
				para uma estilização classizante do seu discurso, suportada, por 
				um lado, pela vasta cultura de V.G.M., por outro, pelo apelo dos 
				temas “eternos” (o amor, a morte, o tempo), tratados com 
				torrencialidade, exigência estética e ambição humoral – mais e 
				melhor se exprimem as suas faculdades de escritor. Escritor 
				multifacetado: aos vinte e dois títulos que leva publicados em 
				poesia, há a juntar treze livros de ensaio, três romances, duas 
				peças de teatro, crónica, diário e uma antologia. Em 1996 sairam 
				os Poemas Escolhidos (1963-1995), Bertrand, uma boa 
				plataforma para quem pretenda lançar-se no estudo da obra 
				acompanhado de um estudo interpretativo do autor. Liberto Cruz 
				que, para lá da sua já referida intervenção como testemunha da 
				guerra colonial, tem uma obra diversificada que inclui, até, uma 
				passagem pela poesia experimental (sob o pseudónimo de Álvaro 
				Neto) e que teria dado ao movimento a dimensão paródica que ele 
				não “explorara suficientemente”. 
				Ao início “barroquizante”, seguido da fase “experimentalista” – 
				com numerosos trabalhos de índole ensaística pelo meio – Liberto 
				Cruz chega ao Caderno de Encargos, de 1994, onde ele 
				próprio se define como homo viator. 
				Eduardo Guerra Carneiro, estreado em 1961 com O Perfil da 
				Estátua, é mais um poeta de “extracção” surrealista, que fez 
				um percurso sincopado mas em ascenso, com pontos altos nos anos 
				sessenta: Corpo da Terra (1966), Algumas Palavras 
				(1969) e nos anos setenta: Isto Anda Tudo Ligado (1970);
				É Assim que se Faz a História (1973) e Como Quem Não 
				Quer a Coisa (1978). Mais espaçada é a produção na década de 
				oitenta, apenas dois títulos: Dama de Copas (1981) e 
				Contra a Corrente (1989), conhecendo ritmo idêntico nos 
				“noventas”: Profissão de Fé, (1990), Lixo, 1993 . 
				De idêntica “raiz” é José Viale Moutinho, um poeta madeirense 
				radicado no Porto, autor de um punhado de livros de versos de 
				grande qualidade, de que elegemos Correm Turvas as Águas 
				deste Rio, 1982 Piano Bar, 1986 e Máscaras 
				Venezianas, 1987; Fernando Alvarenga, poeta estreado em 1966 
				com Poemas para a Distância Quebrada, a que se 
				seguiram Hoje na Madrugada, 1972, Meus Cantos de Ainda,1982,
				A Mãe por um Menino, 1994 e O Iris da Cinza, 1994, 
				livros em alguns dos quais versos de ressonância africana 
				indiciam a passagem do poeta por Angola, é uma personalidade 
				também com presença marcante no ensaísmo literário que consegue 
				harmonizar o que para muitos é inconciliável: sendo um pessoano 
				de reconhecido valor (A Socialização da Arte em 
				Fernando Pessoa, 1984) é igualmente um escrupuloso estudioso 
				do neo-realismo (Afluentes Teórico-Estéticos do Neo-Realismo 
				Visual Português, 1989); Orlando Neves, cujo livro de 
				estreia foi publicado em 1959 (Sopapo para a Destruição da
				Felicidade) é um dos autores prolíficos do seu tempo, com 
				larga intervenção nos domínios da crónica, da literatura 
				infanto-juvenil, do teatro e da ficção romanesca, além da 
				lírica. Esta última está reunida no volume Poesia, 1995, 
				no qual figuram catorze dos seus vinte e dois títulos em poesia 
				e J. O. Travanca-Rego, também poeta 
				e analista atento da poética de O. N., refere-se-lhe nestes 
				termos em amplo ensaio “aproximativo”: “Através da concitação de 
				múltiplas, diversas e contraditórias lactências existenciais, de 
				um rebuscar num arquivo de experiências, memórias, intenções, o 
				'eu' rebusca aí também a sua tensa unidade numa contida 
				repercussão de 'tudo': o eu, os outros, a História, a presença e 
				a ausência do tempo vivido… representificado, desejado, 
				irrecuperável, imparável.” Mendes de Carvalho (1927-1988), na 
				linha de O'Neill, mas de veia satírica mais mordaz, menos 
				polida, tem em Camaleões & Altifalantes, 1963, Poemas 
				de Ponta e Mola, 1975 e Experiência de Liberdade, 
				1976, três das suas obras fundamentais. Outros nomes importantes 
				dos “sessentas”, ainda activos: Arnaldo Saraiva, José Augusto 
				Seabra, Yvette Centeno, A. M. Pires Cabral, Dórdio Guimarães, M. 
				S. Lourenço e Maria Amélia Neto.
				 
				
				
				  
				
				
				
				Pessoa e Cesário: as sombras tutelares 
				
				
				O cinquentenário da morte de Fernando Pessoa (1985) e o 
				centenário do seu nascimento (1988), sobre serem pretexto para o 
				relançamento da obra e da biografia do poeta, deram origem a que 
				a influência deste último se revelasse, num cenário 
				comemorativista e concelebratório, nos mais inesperados e 
				controversos quadrantes da “inteligentzia” literária 
				(recorde-se, a título de exemplo, que o romance O Ano da 
				Morte de Ricardo Reis, foi o livro que consagrou José 
				Saramago na Europa e na América do Sul). Já antes, porém, 
				Fernando J. B. Martinho vinha indagando da “presença” do autor 
				de Mensagem nas obras das gerações posteriores, num 
				processo inter e transtextual clara ou discretamente assumido 
				por essas mesmas gerações. Num livro hoje esgotado (espera-se a 
				sua reedição para breve) que constitui trabalho de referência 
				para se aquilatar da extensão da influência de Pessoa na 
				produção dos poetas que lhe sucederam – Pessoa e a Moderna 
				Poesia Portuguesa, do “Orpheu” a 1960, 1983 – são 
				exaustivamente examinados os entrelaces textuais que denunciam 
				as subjectividades cúmplices do forte ascendente exercido nos 
				que chegaram depois pela arte do mestre heteronimista, “uma das 
				grandes vozes do modernismo, à escala internacional”. Aquilo que 
				Martinho definiu então como “invasão” (e outros como “inflacção 
				fernandina”) 
				é associado a um conjunto de iniciativas de sentido elogiativo 
				tendentes a manter vivo o interesse pela herança pessoana, 
				nomeadamente: a publicação da revista Persona, dedicada 
				ao poeta e ao modernismo português; a actuação do Centro de 
				Estudos Pessoanos, no Porto; filme e adadptação televisiva; o 
				aparecimento de “abundante iconografia”; a organização de 
				Congressos Internacionais de Estudos Pessoanos, em Portugal e no 
				estrangeiro; a representação da peça de Jaime Salazar Sampaio,
				Fernando (Talvez) Pessoa, no Teatro Nacional, 
				entre outros importantes contributos que viriam a ser alargados 
				nos anos correspondentes às datas aniversariantes atrás 
				referidas e mesmo depois (atente-se nos soberbos trabalhos de 
				Tereza Rita Lopes Pessoa por Conhecer, Roteiro para 
				uma Expedição, 1990, e Fotobibliografia, 1988, org. 
				por João Rui de Sousa). Neste domínio da “inflação 
				fernandina” o ensaísta Eduardo Lourenço, num texto célebre, 
				ironizava assim premonitoriamente o fenómeno: “A terra inteira 
				está povoada de anacoretas pessoanos dedicados noite e dia à sua 
				glosa antropofágica, consumindo na mesma adorante devo(ra)ção a 
				poesia de Pessoa e a glosa dos outros glosadores. A exegese 
				pessoana é hoje uma selva luminosa onde ninguém está disposto a 
				reconhecer pai e mãe. Na verdade um contacto “inocente” ou 
				acintosamente ingénuo (livre) com a obra de Pessoa tornou-se 
				impraticável. Nenhum deus escapa à perversão do ritual inventado 
				para o tornar presente. Chega sempre um dia em que é necessário 
				negá-lo para o sentir ainda vivo.” 
				Mas o que aqui mais nos importa sublinhar é o vasto espectro dos 
				poetas “irmãos” do autor de Ode Marítima, dos aparentados 
				ou tão só daqueles cuja poética, tendo divergido no estilo e nos 
				propósitos, comporta de alguma maneira o “diálogo” com o genial 
				predecessor. Segundo Fernando Martinho, teriam sido “tocados”, 
				de perto ou de longe, pela labareda do poeta, artistas da 
				palavra como Pedro Echevarría, Pedro Tamen, Ana Hatherly, 
				Salette Tavares, João Rui de Sousa, Luís Amaro, José Carlos 
				Gonzalez, Casimiro de Brito, Fiama Brandão, Herberto Helder, Rui 
				Knopfli, Sophia de Melo Andersen, Alexandre O'Neill, Luís Veiga 
				Leitão, Natália Correia, António Ramos Rosa, Couto Viana, 
				Cesariny, Raul de Carvalho, Arnaldo Saraiva, Eugénio de Andrade, 
				Egito Gonçalves, Alfredo Margarido, Jorge de Sena, Rui Cinatti, 
				Helder Macedo e José Blanc de Portugal, para só citar os vivos 
				ou aqueles que desaparceram fisicamente já depois da Revolução, 
				o que vale por dizer que praticamente a todos os criadores de um 
				certo quadro geracional que puseram em causa o discurso poético 
				positivista, fosse por via da fragmentação versilibrista mais 
				extrema, fosse por via da exploração transfiguradora dos 
				complexos caminhos do sentido, não foi alheia a lição do criador 
				dos heterónimos, que nele viram o guia incontestável, uns, o 
				“esotérico” ou o “obscuro”, outros, mas estes últimos sempre 
				atentos à proximidade dos sinais do seu fogo, mesmo quando a 
				querela da arte pela arte radicalizou posições entre os 
				defensores da poesia como veículo de intervenção social, 
				necessariamente limitado por espartilhos normativos, e os da 
				poesia encarada como território de liberdade total do texto, do 
				desassossego significante às osmoses da significação. 
				
				
				A herança naturalista de Cesário Verde (1855-1886) interessou 
				mais os “materialistas”, mas ela é omnipresente em poetas de 
				outros quadrantes estéticos, como bem o revela um inquérito 
				promovido pela revista Colóquio Letras em 1986 (nº 93). 
				Aí, Armando Silva Carvalho não hesita em considerar o 
				neo-realismo como “um seu descendente”; Armindo Rodrigues 
				louva-lhe a “ternura pelos pobres, pelos desprotegidos, como o 
				amor do campo” porque é “puramente natural e naturalmente se 
				exprime”; Fernando Martinho considera-o essencial aos que “têm 
				feito a aprendizagem do olhar, do olhar para fora de si” 
				elegendo-o como um antecessor “à altura das poéticas de maior 
				exigência do lirismo nacional da hora presente.”; para António 
				Barahona, Cesário é o poeta da “descoberta e exaltação dos 
				objectos quotidianos e da vida prática”; Albano Martins vê o 
				trabalho poético do comerciante da Rua dos Fanqueiros como 
				cingido ao real – “o real observável, o real quotidiano” ; Nuno 
				Júdice e Fernando Echevarria entendem, o primeiro , que alguns 
				dos seus poemas se filiam “na luminosa dureza do ritmo de 
				Cesário” e o segundo vai mesmo ao ponto de defender que Cesário 
				contribuiu, à posteriori, para o óbito do Neo-Realismo 
				português; e Pedro da Silveira escreve: “Agora é que estamos em 
				jeito de claramente ver como a sua obra tão exígua deu o tom 
				certo àqueles anos que vão mais ou menos de 1876 a 1886”. 
				
				
				Sem esquecer Ressentimento dum Ocidental (197O) de 
				Henrique Segurado, são O Ressentimento de um Ocidental 
				(1981), de Alexandre Pinheiro Torres e Cesário: 
				Instantes da Fala (1989), de José Jorge Letria, as obras que 
				melhor traduzem a influência de Cesário no nosso tempo. Letria, 
				num processo mediúnico que vai muito para além da “ansiedade das 
				influências” e tem mesmo a ambição de dar a Cesário a biografia 
				que lhe falta, mete-se na pele do autor fisicamente 
				desaparecido, fala por ele, vive virtualmente por ele, com 
				extrapolações espaciotemporais que pulverizam o tempo 
				cronológico, tornando objectual no texto o universo fantasmático 
				em que múltiplas referências se cruzam: “ Dizes tu, O'Neill, que 
				querias que eu / aqui estivesse e eu não posso estar, / ou não 
				posso estar e estou, e no que / há nisto de contraditório e 
				inexplicável / reside uma verdade clara e de ofuscante 
				evidência: / perfilo-me na paisagem dos olhos, abrasado / por um 
				lume que nasce da lembrança das casas / e se propaga aos quartos 
				e à música / de opereta das mansardas do ciúme e do tédio.” 
				Alexandre Pinheiro Torres () explica ele próprio na citada 
				Colóquio Letras de que modo convive, no seu livro, 
				intertextualmente, com Cesário: “ Diga-se quanto ao meu livro 
				que ele tomou sempre os escritos de Cesário como praticamente a 
				única fonte tópica, mas num tom mais apelativo, às vezes 
				declamatório, e, em dois ou três casos, propositadamente 
				panfletário, o que nunca sucede com o Mestre, que evita estas 
				tentações, nem sempre, em teoria, negativas.” José do Carmo 
				Francisco, pela atenção que dedica ao pulsar da vida quotidiana 
				numa cidade ainda em muitos aspectos “cesarista” como Lisboa, 
				parece-nos ser o poeta actual que, sem explicitamente o 
				reclamar, mais perto está do olhar humanizado e humanizador do 
				antecessor ilustre. Tansporte Sentimental (1987), por 
				exemplo, é um livro muito próximo do que se presume seria a 
				visão de Cesário de uma urbe cheia de carácter e de 
				potencialidades referenciadoras neste final de século XX – a 
				capital portuguesa.  
				
				
				  
				
				
				
				Presente e futuro 
				
				
				Uma das singularidades da poesia portuguesa prende-se com a não 
				existência de um elenco de críticos e ensaístas exclusivamente 
				votados ao trato da disciplina, do que resulta serem muitas 
				vezes os poetas a desdobrarem-se nessas funções, se bem que um 
				crítico como Fernando J. B. Martinho possa constituir a mais 
				ilustrativa excepção a esta “regra”, ele que abdicou de publicar 
				poesia de forma continuada para mobilizar os seus esforços no 
				rastreio iluminador da produção do último meio século. Todavia, 
				esta “concentração de poderes”, que com o avanço e a 
				generalização dos estudos literários acentua a 
				institucionalização da poesia e os consequentes reflexos 
				corporativos da crítica que a sublinha, está a contribuir para 
				relativizar o prestígio de arma de ruptura, transgressão 
				e anti-poder que durante decénios caracterizou a arte 
				lírica. A esta contemporânea hegemonização da poesia no seio da 
				instituição universitária, não é estranho o seu estatuto de 
				disciplina de programa escolar, que traz como consequência maior 
				a rarefacção do mundo da experiência vivida na sua vertente 
				efabulatória em proveito de intensos movimentos exploratórios em 
				torno e sobre os recursos do texto. A Universidade já não estuda 
				o que os poetas fazem: quer que os poetas escrevam poesia como 
				ela própria ensina. Talvez por isso não pareça despiciendo 
				constatar serem professores universitários alguns dos poetas que 
				mais insistentemente têm vindo a cortejar o universo crepuscular 
				das representações e a “autonomia” das linguagens. Mas é também, 
				curiosamente, de dentro da Universidade que têm brotado alguns 
				apelos visando a necessidade de um “regresso” ao realismo 
				seja porque a vaga de fundo do texto pelo texto de certa maneira 
				exponencializada em três figuras nucleares (Ramos Rosa, Herberto 
				Helder e Nuno Júdice) pouca margem de manobra deixe aos seus “continuadores”, 
				instaurando, por conseguinte, o mal-estar e a crise como estado 
				de coisas permanente, seja porque a vida flui fora das 
				Faculdades de Letras a ritmos mais velozes do que os seus por 
				forma a justificar se não, já, os exercícios de mimese da poesia 
				“útil” que prevaleceu durante décadas de realismo 
				socio-literário, decerto modelos de intervenção “racionalista” 
				na marcha das sociedades capazes de alimentarem um projecto no 
				qual estas reconheçam os seus desígnios substantivos. 
				
				
				Na predisposição académica para sublimar a produção dos 
				escritores que nos dois últimos decénios e meio se bateram pela 
				poesia enquanto pulsão de desobediência às coordenadas 
				lógico-simbólicas, em detrimento de algumas vozes que 
				legitimamente reivindicam o estatuto “realista” contrário aos 
				rituais celebratórios da “estetização da utopia”, 
				vemos que um professor de literatura, João Barrento, elege hoje 
				um poeta que por sinal ensina literatura, Fernando Pinto do 
				Amaral (dois ensaístas de cujo eficiente labor este texto é, em 
				boa medida, tributário) como um dos vultos mais representativos 
				da novíssima poesia portuguesa, ao consagrar nos seus versos um 
				estado de espírito melancólico, decadentista, com tendência para 
				o esvaziamento do tempo e propenso à exaltação das “paisagens da 
				alma” em lugares do “nosso mundo, do nosso tempo e dos lugares 
				simbólicos da sua precaridade (esplanadas e cafés, por 
				exemplo)”, 
				de algum modo a foz do “realismo” contemporâneo posto a correr 
				vinte anos antes por um outro professor universitário, poeta, 
				Joaquim Manuel Magalhães, proponente do que julgamos ser um 
				realismo céptico. Sobre Magalhães escreve Barrento: “É 
				praticamente impossível ler a poesia de um Joaquim Manuel 
				Magalhães, de há vinte anos a esta parte, sem nos darmos conta 
				de que ela é, insistentemente, isto mesmo: um terreno marcado 
				por essa consciência do mesmo, atravessado por uma nostalgia 
				à rebours, ou malgré soi, todo feito de pequenas 
				alegorias de um quotidiano banal, sem “heroísmos”, como eram 
				ainda os de Baudelaire ou de Eliot… 
				Entre Magalhães e Pinto do Amaral há toda uma elite de poetas da 
				“recusa”, da “ausência” e da “perda” que em diferentes registos 
				e em discrepância com o passado “épico” do sujeito diluído em 
				grandes operações de resgate social, valoriza agora o papel 
				desse mesmo sujeito ocupado com aquilo que num livro de Manuel 
				Frias Martins é descrito como estética do detalhe. 
				A poesia minimalista de Helder Moura Pereira será a que melhor 
				ilustra o conceito mas torna-se necessário recuar a 1971 para se 
				detectar o início do percurso de João Miguel Fernando Jorge, 
				aquele que, segundo o mesmo Frias Martins, “oferece cada poema 
				por um acto de comprometimento com os valores canónicos 
				inscritos no significado de cada vocábulo”. 
				
				
				
				Parti para o movimento da água 
				
				
				
				para o nome deste barco 
				
				
				
				premeditado incêndio de um corpo 
				
				
				
				de vigília e festas. 
				
				
				
				  
				
				
				
				A aspereza é o nome 
				
				
				
				o acordado corpo 
				
				
				
				a incerteza o escreve. 
				
				
				
				À Beira do Mar de Junho,1982 
				
				
				Nomes como os de António Franco Alexandre, Al Berto, Luís Miguel 
				Nava (1957- 1995) – falecido em Bruxelas, em condições trágicas- 
				e Paulo Teixeira 
				estão na primeira linha da vanguarda melancólica, seja por 
				cicios, silêncios, lamúrias ou educados protestos anti-Europa, 
				destoando talvez deste desencantado panorama “pós-moderno” 
				eivado de angústia conformada, uma poética como a de José 
				Agostinho Baptista cujo pessimismo com o seu quê de mágico e 
				profético não exclui a conotação com o real objectivo nos 
				deslocamentos temáticos que o levam, por exemplo, a inspirar-se 
				na cultura mexicana para assinar alguns dos seus textos. 
				António Torrado, cujo trabalho poético se anunciava promissor (Do 
				Agregado Sentimental, 1970 e Dos Simples e das Casas 
				Interiores, 1976) fez agulha para a literatura 
				infanto-juvenil, modalidade na qual “construíu” obra notável, 
				publicando esporadicamente poesia. José Jorge Letria, poeta 
				igualmente revelado nos anos setenta, só na década seguinte se 
				demarcará decisivamente de uma escrita de génese sociológica, 
				passando a privilegiar preocupações ontológicas sempre, em todo 
				o caso, ligadas à “realidade”. A facilidade com que se “move” no 
				mundo espectral e a hábil gestão que faz dos ruídos e das vozes, 
				das esperanças e das decepções, dos perigos e dos prazeres, 
				levam a que a sua escrita seja atravessada por uma espécie de 
				melancolia “activa” na altercação constante com os fantasmas 
				ruins que lhe povoam as insónias mas como que empolgada com a 
				memória do vivido de maneira a não se deixar cair numa 
				analgesiante litania do pesar, do luto ou da indiferença que 
				conduza à desistência. A “explicação” que o poeta dá da sua 
				própria alteridade torna clara a dialéctica existencial do 
				discurso, que assim submete à encenação por vezes atroz do 
				remorso a confusa auto-estima do sujeito da escrita e a ampla 
				generosidade dos afectos (físicos, míticos e anímicos) em poesia 
				de sonoridades e ritmos que coerentemente lhe conferem um tom de 
				sugestiva musicalidade. O essencial da poesia de José Jorge 
				Letria está recolhido em O Fantasma da Obra (1993), 
				colectânea que tem sido merecedora de rasgados encómios pela 
				unidade que transmite da escrita de um poeta até aí considerado 
				excessivamente “fragmentário”. Wanda Ramos é outra voz dos 
				“setentas” cuja poesia, não enjeitando a herança surrealista, 
				antes dela se reclamando afim, conforma a um estilo 
				barroquizante um entendimento da vida em que as vibrações 
				eróticas e os insolidários silêncios se aliam por vezes a uma 
				certa fúria de viver assinalada pela palavra poética nos seus 
				ciclos de crise, desejo e dádiva. 
				Ernesto José Rodrigues é mais um dos poetas-prosadores em que a 
				literatura portuguesa é fértil, com o coração repartido entre os 
				penhascos transmontanos e a Hungria danubiana, estreado em 1973. 
				Uma recolha de 1981 – Para Ortense: Variantes, dá conta 
				de um humor com forte carga sarcástica e de uma ainda assaz 
				contundente crítica social indissociada de um pendor 
				versilibrista que toca mesmo, em vários momentos, as raias do 
				prosaico. Amadurecida e codificada é a linguagem dos poemas mais 
				recentes de Sobre o Danúbio (edição bilingue, Budapeste, 
				1996), pequena casa antológica que poeta e prosador partilham 
				sem conflito. João Camilo, autor de verso livre, solto, atento 
				ao quotidiano, tem o melhor da sua obra reunido em Nunca Mais 
				se Apagam as Imagens, 1996. Paulo da Costa Domingos, 
				truculento e iconoclasta, reuniu em Vaga, 1990, a sua 
				obra poética. António Quadros, aliás Frei Johannes Garabatus, 
				aliás Mutimati Barnabé João, aliás João Pedro Grabato Dias – um 
				luso-moçambicano que foi das vozes mais activas da fase 
				pré-independência do seu novo país foi também uma das figuras 
				mais perturbadoras da sua geração. O Povo é Nós, 1979, é 
				uma obra de afirmação revolucionária, já distante de 
				Quybyrycas (1972), uma lúcida e bem humorada paródia ao 
				desastre de Alcácer-Quibir e a outras vicissitudes históricas de 
				má lembrança. António Osório é um caso de revelação tardia mas 
				nem por isso é menos significativo o lugar que ocupa no panorama 
				da nossa poesia: não obstante ter sido co-fundador e director da 
				revista Anteu na primeira metade da década de cinquenta, 
				onde “apareceu” ao lado de Pedro Tamen e Cristóvam Pavia, só em 
				1972 publicou A Raiz Afectuosa, a que se seguiram A 
				Ignorância da Morte (1978), O Lugar do Amor 
				(1981) e Décima Aurora (1982), livros que definitivamente 
				o consagraram como uma das vozes mais autênticas no domínio da 
				poesia amorosa confessional, de modo lapidar sinalizada por 
				Eugénio Lisboa no prefácio à segunda daquelas obras: “… A 
				Ignorância da Morte, é, no seu modo mansamente 
				inovador, apetecidamente lento e meticuloso, no seu progredir 
				musicalmente inventariante, no seu fascinante realismo mítico, 
				aladamente terrestre e distanciadamente afectuoso, uma das vozes 
				mais fortes, mais isoladas, mais inquietantemente pessoais e 
				mais complicadamente directas que nos tem sido dado conhecer, de 
				há alguns anos a esta parte.” O eco da poesia de António Osório 
				nas gerações mais novas é já patente no modo como sobre ela se 
				pronuncia um Fernando Pinto do Amaral: “Pelo retorno a uma 
				expressão classizante, por um gosto confessional eivado de 
				pudor, pelo reequilíbrio entre o coração e os sentidos, pela 
				fidelidade a um universo em que a linguagem da experiência é 
				sempre mais decisiva do que a experiência da linguagem – por 
				tudo isso, mesmo os que esteticamente a ela não aderem serão 
				obrigados a reconhecer que esta obra tem representado um meio 
				eficaz de resistir, com discreta perseverança, à barbárie 
				maioritária que tantas vezes nos cerca e agride. Quem pode 
				exigir mais a um poeta?” E, enfim, figura revelada nos anos 
				setenta, há que falar de Nuno Júdice, um dos mais enigmáticos 
				poetas do nosso tempo. Tendo brotado de uma conjuntura pouco 
				favorável a manifestações poéticas de matriz individualista 
				(1972), quando as tensões sociais em Portugal eram já portadoras 
				do germen da mudança que viria a manifestar-se dois anos depois 
				e as preocupações do país estavam centradas na crise de 
				confiança nas instituições decorrente da erosão do regime, 
				sobretudo pelo beco sem saída a que conduzira a guerra colonial, 
				Nuno Júdice “aventurou-se” a encetar um caminho original de 
				pesquisa, se assim se pode dizer de um trabalho marcado pela 
				persistente exploração das virtualidades da palavra que vai da 
				subversão do sentido lógico do discurso ao sentido emergente do 
				tráfico de informação verbal e cultural organizando-se em 
				equívocas metáforas da própria significação do que escreve. A 
				obra de Nuno Júdice, vista no seu todo, revela coerência 
				estrutural, um inegável apuro formal e uma ambiguidade semântica 
				em que é “legível” a consciência dessa mesma ambiguidade e o 
				torna, pelo engenho com que consegue harmonizar estas três 
				vertentes, um dos vultos em foco na poesia portuguesa actual.
				 
				
				
				Seria injusto omitir deste texto alguns nomes de poetas que, ou 
				porque tivessem publicado irregularmente, ou porque a sua 
				progressão esteja ainda em curso e seja prematuro emitir 
				considerações de natureza judicativa sobre as suas obras, ou 
				porque a dispersão por outras áreas do saber literário os 
				“fixou” nessas áreas em detrimento da Poesia (casos de Maria 
				Alzira Seixo, notável ensaísta, autora de Letra da Terra, 
				1983; de Fernando J. B. Martinho, historiador da Poesia, autor 
				de Resposta a Rorschach, 1970, Razão Sombria, 
				1980; de Eugénio Lisboa, vigoroso e estilisticamente brilhante 
				crítico e ensaísta, autor de A Matéria Intensa, 
				1985; ou de Joaquim Manuel Magalhães, em igual medida poeta e 
				teórico da literatura). Se escritores como Olga Gonçalves, Mário 
				Cláudio ou Maria Estela Guedes parecem ter passado pela Poesia 
				sem nela se demorarem, já que as suas faculdades se adaptarão 
				talvez melhor à novelística e ao ensaio, poetas como António 
				Cândido Franco, Manuel Gusmão, Luís Filipe Castro Mendes, Manuel 
				António Pina, Helena Buescu, Joana Varela, Ana Mafalda Leite, 
				Rosa Alice Branco, José Guardado Moreira, Ana Luísa Amaral e 
				Tolentino Mendonça, sendo poetas do “futuro”, porque a 
				experiência e as vivências não deixarão mais tarde de completar 
				percursos longe ainda do fim, são-no também do “presente” porque 
				a obra feita torna desde já inequívoco que se trata de poetas de 
				valor consolidado cujo reconhecimento dispensaria outras 
				“provas”.  
				
				
				Além destes, nomes estimáveis como os de Luís Filipe Sarmento, 
				Mário Máximo, João Candeias, Artur Lucena, Graça Pires, Mário 
				Machado Fraião, Miguel Barbosa, Jaime Rocha, Henrique Madeira, 
				Eduardo Pitta, Francisco José Viegas, Fátima Maldonado, Amadeu 
				Baptista, José Emídio-Nelson, Raúl Malaquias Marques, Cristino 
				Cortes, Amélia Vieira, Graciete Besse e Isabel de Sá, entre 
				vários outros, representam modos diversos de encarar o fenómeno 
				poético e merecem integrar o vasto elenco dos homens e das 
				mulheres que generosamente contribuem para que Portugal seja 
				considerado um país de poetas. 
				
				
				Presentemente – depreende-se do que ficou dito – a poesia “nova” 
				que se faz em Portugal cinge-se à tradição elegíaca. Se poemas 
				de combate como os de José Carlos Ary dos Santos (1937-1984), 
				Joaquim Pessoa ou José Correia Tavares 
				parecem hoje “elementares” face aos níveis de complexidade 
				estilística e efabulatória logrados pelos seus pares da 
				“estrutura”, do “código”, da “desconstrução” e da “reconstrução” 
				do texto e do aprofundamento do eu subjectivo-melancólico num 
				grau de excesso niilista virtualmente suicida, é, por outro 
				lado, já uma necessidade dos tempos avaliar de novo o regresso 
				ao realismo não-disfórico no qual a poesia se reaproxime do 
				mundo da experiência com confiança criadora, mesmo em cenários 
				de crise em que a ausência de uma épica da vida dificulte a 
				eclosão de um surto épico na arte poética. A rotação ideológica, 
				o advento de grandes causas e a aspiração das pessoas à clareza 
				poderão talvez reorientar o dizer dos poetas, no próximo século, 
				para objectivos menos elucubrantes e pessimistas do que aqueles 
				hoje em dia se tomam por “inevitáveis”, e mais consentâneos com 
				a felicidade humana enquanto utopia mas também como aspiração 
				colectiva materializável através de graduais superações do 
				aparentemente impossível. Isto não passa de futurologia precária 
				e as coisas tanto se podem passar assim como exactamente ao 
				contrário ? Naturalmente. Mas não era isto mesmo que há dezena e 
				meia de anos atrás preconizava Joaquim Manuel Magalhães no 
				último texto do seu livro Os Dois Crepúsculos (A Regra do 
				Jogo, 1981) ? Atente-se no que escrevia, então, Magalhães: “Em 
				Portugal, como nos países atingidos pelas reformas capitalistas, 
				a palavra dos poetas precisa de reocupar o sentido das coisas 
				que se perdem e das coisas que tardam a vir. Sabe-se que a 
				espera da poesia é como a da própria história: sem impaciência. 
				Mas pertencemos a uma geração dessatisfeita. Culturalmente, 
				nenhum lado faz sentido, ou fez um sentido novo. Politicamente, 
				nada esteve interessado na criação cultural fosse do que fosse. 
				Apenas se conseguiu atingir o coração do nada com este vazio. 
				Quando é cada vez mais preciso que a nossa colectividade adquira 
				um coração singular e crescente para poder criar uma plenitude 
				cantável. E aí têm os poetas um dos seus mais radicais 
				desígnios.” 
				
				
				Palavras válidas para os dias de hoje, obviamente.  
				
				
				  
				
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