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				À beira do mês de março - na morte de José Manuel Capêlo 
				
				
				
				Nicolau Saião 
				
				
				
				Conheci 
				José Manuel Capêlo na segunda metade dos idos de oitenta, numa 
				tarde em que por intermédio de José do Carmo Francisco nos 
				encontrámos ao pé da Estação do Rossio sob um sol quente de 
				Verão.  
				
				
				Combináramos de antemão por carta, pois nem sequer se sonhava 
				com telemóveis ou mensagens interactivas, essa jornada em que 
				iríamos passar uma considerável parte do resto do dia num 
				pequeno restaurante ao Bairro Alto, amparados por uns 
				comes-e-bebes de bom porte que foram uma espécie de 
				enquadramento para uma conversa algo rabelaisiana: gostava de 
				comer e de beber, o autor de “Fala do Homem Sozinho”, de “Rostos 
				e Sombras”, de “O incontável horizonte”, falava profusamente na 
				sua voz bem timbrada e era de simpatia rápida. Não estaria mal 
				entre goliardos, entre joviais companheiros num banquete onde 
				houvesse iguarias e poesia entremeadas. Complexo e claramente 
				fantasista, tinha projectos que uns se concretizariam e outros 
				ficariam apenas esboçados. O que, perante alguns menos 
				contentáveis o feriu frequentemente, pois o seu fundo 
				imaginativo era por vezes atraiçoado por uma veloz mudança de 
				cenários, que o metiam – soube-o depois -  em andanças um pouco 
				menos que rocambolescas. 
				
				
				Mas era aberto e comunicativo, expansivo e poeta bastante para 
				nos cativar e, mesmo, permitir-nos passar por alto certo pendor 
				baloiçante de alguma navegação sua.  
				
				
				Devido a essa simpatia mútua logo com generosidade me convidou a 
				participar na noite seguinte, para conversarmos e dizermos 
				poemas, num programa de rádio que tinha numa das localidades da 
				Grande Lisboa. Aboletou-me em sua casa e entre o petiscar afável 
				da cozinha britânica (estava consorciado, nessa época, com uma 
				senhora inglesa) em que nos compaginámos, contou-me estórias 
				movimentadas que colhera nos sete céus e nos catorze continentes 
				devido à sua profissão de comissário de bordo da TAP. Todo ele 
				esfuziava e, 
				si non è 
				vero è bene trovato, mostrou-me um filme bastante conhecido (O 
				Bom, o Mau e o Vilão de Sérgio Leone) em que entrara como 
				figurante (médico militar nas cenas após uma escaramuça da 
				Guerra da Secessão) junto a Clint Eastwood, Lee van Cleef e Eli 
				Walach.  
				
				
				
				O programa a que me levou estava bem estruturado, era aliciante 
				e ele conduziu a emissão de uma forma competente e que me 
				permitiu excursionar com certo desembaraço por coisas do 
				Alentejo, da noite circundante, da escrita e, em suma, da 
				aventura de viver.   
				
				
				
				Devido a isso, num repente e suscitado pela sua figura bem 
				recortada, criei a partir do seu aspecto físico (com a sua 
				agradada aquiescência) o meu personagem Doutor José Jagodes, o 
				misto de pensador-pirata que alguns dias depois apareceria em “O 
				Distrito de Portalegre” na sua primeira “aventura”, “O Jagodes 
				em Espanha”. 
				
				
				
				Em princípios de 88, telefonou-me e convidou-me a participar 
				numa antologia que teria o título de “Palavras – sete poetas 
				portugueses contemporâneos”. Como as coisas da edição, ontem 
				como hoje segundo julgo saber, não eram fáceis, o colectivo 
				acertara esportular uma quantia que minorasse os custos. Como eu 
				nessa época, devido a circunstâncias do meu erário de pai de 
				família andava ligeiramente descapitalizado, informei-o de que 
				não me seria possível abrir os cordões à bolsa, ficando com pena 
				minha fora das suas deles cogitações. Ele disse-me que iria ver… 
				
				
				
				E o livro veio de facto a lume, com um prefácio de João Rui de 
				Sousa - que na altura só conhecia de nome - que me era muito 
				favorável. Soube então que a minha parte a pagara ele do seu 
				bolso. 
				
				
				
				O lançamento foi numa conhecida livraria da capital, com galeria 
				de pintura anexa e chão de empedrado como nas ruas finas. E se 
				aludo a isto com pormenor é porque se verificou nesse evento uma 
				situação que tenho por razoavelmente curiosa, pouco abonatória 
				da minha proverbial distracção e que muito divertiu o nosso 
				Capêlo que com senso de humor me xingou cordialmente durante 
				todo o jantar que se seguiu, num entreposto do Bairro Alto em 
				que também me fizeram cantar para poderem aquilatar dos meus 
				hoje já diminuídos dotes vocais… 
				
				
				
				Sentados na mesa dos oradores, acompanhados do actor-declamador 
				João D’Ávila que iria ter o encargo de dizer o acervo de poemas 
				escolhidos, eu tive a sensação de que diversos membros da 
				assistência que enchia completamente o salão os conhecia de 
				algum lado que não divisei, a princípio, perfeitamente. 
				
				
				
				E o evento seguiu seu curso, com agrado geral e aplausos – e 
				recordo que no final e antes dos autógrafos um dos membros da 
				assistência, também ele poeta, me veio simpaticamente 
				cumprimentar e exprimir-me o seu apreço sincero. 
				
				
				
				E a dada altura, já o nosso Capêlo me propiciara a companhia de 
				um copo de tinto pundonoroso e aconselhara provasse uns 
				panadinhos muito salubres, aproximou-se de mim uma senhora alta, 
				com aspecto cordial e franco, que me disse: “Importa-se…? É para 
				mim e para o meu marido”. “Com todo o gosto minha Senhora – 
				retorqui eu imediatamente. E logo a seguir: “Pode fazer a fineza 
				de me dizer o seu nome e o de seu esposo?”. 
				
				
				
				A senhora olhou-me um pouco intrigada. Deve, acho eu, ter 
				pensado: “Estes poetas…são todos uns despassarados de marca…” ou 
				qualquer coisa pelo estilo. Mas, com delicadeza, acrescentou de 
				pronto: “Ora então ponha, faz favor: Maria e Aníbal…!”. 
				
				
				
				E foi então, estimulado por uma discreta cotoveladazinha nas 
				costas dada pelo Capêlo, que se me fez luz… 
				
				
				
				As pessoas que eu parecia conhecer de qualquer lado eram 
				políticos colunáveis: secretários de Estado, um que outro 
				ministro, deputados e membros de formações partidárias. E a 
				senhora…já adivinharam…era a Senhora de Cavaco Silva, que na 
				altura estava primeiro-ministro. E devia-se a presença, 
				solidária, de todos eles à circunstância de um dos antologiados 
				ser Fernando Tavares Rodrigues, na época director-geral da 
				Informação e figura destacada do PSD…! 
				
				
				
				Soube recentemente que JMC, numa sequência a que o seu interesse 
				pela História e o Mito o levava, escrevera uma obra que me dizem 
				de gabarito sobre o universo templário luso. A sua poesia, que 
				fui encontrando enquanto participante-conviva em diversas 
				publicações ou a constante em livros que ciclicamente me fazia 
				chegar, tem uma estrutura discursiva e apaixonada de bom 
				quilate. Ele era um intenso, mas caldeava essa característica 
				por uma feitura sabedora, o que lhe permitia fazer excursionar a 
				sua escrita de maneira consequente e muitas vezes com uma 
				indubitável alta qualidade. E se por vezes se deixava enredar 
				por uma certa deambulação declamatória, creio que o devia ao seu 
				excesso de vitalidade, pois naquela época era vigoroso e ainda 
				não tivera de abandonar, por mando dos esculápios, conforme me 
				foi dito, as saborosas refeições e o corolário de um cigarro ou 
				um charuto reconfortante. 
				
				
				
				À beira do mês de Março, quase no fim de Fevereiro, um AVC 
				fulminante levou-o para outros espaços aos 64 anos, ao José 
				Manuel Capelo, poeta, viajante dos céus, albicastrense de gema e 
				sonhador de inspirações várias.  
				
				
				
				Saúdo-o com um evohé fraternal e sentido.   |