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				José Correia Tavares: Quadras na funda 
				
				
				
				Júlio Conrado 
				
				
				
				Liga-me 
				a José Correia Tavares uma amizade de vinte e cinco anos que tem 
				por referência axial a solidariedade literária. Não partilhamos 
				o mesmo espaço político-ideológico, não somos sequer amigos 
				íntimos, naquela medida em que o pragmatismo da visita e a 
				proximidade afectiva dos que nos são próximos sustentariam um 
				colateral reforço da nossa amizade, temos porventura nas nossas 
				respectivas cabeças soluções diferentes para os desconcertos do 
				mundo – ele é um homem de fé na bondade de uma sociedade melhor, 
				eu sou um céptico estrutural que desconfia de todas as 
				engrenagens criadas e postas em funcionamento em nome da 
				felicidade humana mas raramente ao seu serviço. A noção de 
				amizade comporta, no que me diz respeito, um distanciamento 
				semântico relativamente, por exemplo, a um certo conceito de 
				camaradagem; mas passa, no que a ambos concerne, por uma atitude 
				de tolerância face às opções que cada um julga serem as melhores 
				para que no corpo do universo – não fazemos a coisa por menos 
				–não se abram feridas insuturáveis. Atitude que ajudou a tornar 
				duradouros os equilíbrios, isentos de mácula, de todos estes 
				anos de convivência salutar.  
				
				
				Ao falar de convivência, já se percebeu, falo necessariamente 
				mais de convivência intelectual do que de convivência no 
				dia-a-dia. Ao falar de convivência falo necessariamente de 
				admiração. Admiração por alguém que participou na guerra 
				colonial, num quadro de risco físico extremo; que sobreviveu a 
				um acidente de viação dramático; que assumiu o desconforto de 
				uma situação profissional adversa por não pactuar com os 
				esquemas de corrupção que à sua roda se organizavam; que 
				enfrentou uma campanha jornalística malévola, desproporcionada, 
				infundada e, o que é pior, conduzida por processos 
				deontologicamente equívocos; e que, enquanto dirigente da 
				Associação Portuguesa de Escritores, vem desenvolvendo a acção 
				extraordinariamente meritória de incrementar a criação e a 
				manutenção dos prémios literários, contribuindo, à custa de 
				muito sacrifício pessoal, para dar lugar ao que muito boa gente 
				chama a “inflacção dos prémios” esquecida de que ainda há uma 
				vintena de anos se entoavam pungentes lamentações pela escassez 
				desses mesmos prémios. Não há fome que não dê em fartura ? Pois 
				ainda bem que já não é preciso lamentarmo-nos por causa da 
				inexistência de prémios literários em Portugal. Isso em larga 
				medida se deve à tenacidade e ao brio com que pessoas como o 
				José Correia Tavares atacaram o problema - e permitam-me que 
				recorde a actuação de uma sua grande predecessora, nessa área, a 
				malograda e sempre presente Wanda Ramos.  
				
				
				Caracterizadas assim, a traço muito largo, as causas que 
				justificam a minha presença aqui, no que respeita ao Amigo e ao 
				Homem, falta falar do primeiro pressuposto da amizade que 
				invoquei: a solidariedade literária. Foi-me pedido que hoje, dia 
				do lançamento oficial do novo livro de José Correia Tavares, 
				dissesse algumas palavras alusivas à obra, ao que de pronto 
				anui, liberto do ónus da análise crítica de fundo - quem quiser 
				ler crítica literária que se debruce sobre o elaborado prefácio 
				de Silvina Rodrigues Lopes a Leitura dos Actos – e 
				suficientemente couraçado contra a obrigação de “dizer bem” de 
				algo que me cativou, que me divertiu e que, em determinados 
				lances, me surpreendeu deveras. Como o que vou dizer não é 
				nenhuma obrigação - é o que realmente sinto – também desse ónus 
				me considero totalmente desonerado. Vou, então dizer desta obra 
				o que realmente me apetece, dado o grande espaço de manobra de 
				que dispõe o curso do minha fala: a montante, está o José Manuel 
				Mendes preparado para todas as eventualidades com todo o peso 
				das instituições que representa; a jusante está a Silvina, 
				impossibilitada já de escapar ao facto incontroverso de ter 
				escrito um belíssimo ensaio para o livro. Estes dois pilares 
				desencorajariam o mais pintado de vir intrometer-se entre eles. 
				Porque arrisquei então ? Bom, o livro está bonito, os editores 
				são simpáticos, o Luís Machado é um excelente actor e um 
				reputado animador cultural, o José Manuel Mendes é um autor de 
				referência - grande poeta, sobretudo - estando pois criadas as 
				condições para que sejamos por uma tarde gente cordial, feliz e 
				reconciliada com a vida. Afinal sempre sou um apreciador antigo 
				da arte do autor em infernizar os dias daqueles que, com registo 
				de culpas no cartório, têm a desgraça de ficar ao alcance da 
				malícia das suas quadras. Para quê, então, ficar de fora de um 
				momento destes ?  
				
				
				Também já se deve ter percebido que não vou dizer bem por dizer 
				bem, só porque a hora é de festa. Dizer bem por dizer bem pode 
				parecer insuportável tautologia que nem a amizade justificará, e 
				apesar do profissionalíssimo prefácio de Silvina Rodrigues Lopes 
				já conter todas as pistas técnicas que verdadeiramente importam 
				à compreensão da obra e ao respectivo enquadramento literário, 
				procurarei demonstrar o porquê da minha opção de gosto, 
				rastreando alguns aspectos que possam constituir indicadores 
				seguros do que no livro vivamente me interessou. É que, sendo a 
				quadra uma modalidade versificatória eminentemente popular e o 
				veio satírico um dos seus recursos porventura mais 
				insistentemente aproveitados, o posicionamento do autor face a 
				estas duas especificidades de recorrente utilidade faz com que a 
				sua intervenção cultural suporte com êxito o desafio do tempo, 
				tornando actuais e visíveis os contornos do seu recado, que, 
				como veremos adiante, tem muito que se lhe diga.  
				
				
				Senão, vejamos: esta obra configura um aparatoso ajuste de 
				contas de José Correia Tavares com o seu tempo. Cauciona-o um 
				discurso repleto de sarcasmos, de ironia cortante, de raides 
				fulminantes visando as debilidades do quotidiano 
				mais-que-imperfeito em que lhe coube crescer e multiplicar-se. 
				Danificados, não obstante, alguns bastiões do escândalo, da 
				corrupção e da ambiguidade cívica, esse quotidiano sinistro 
				obviamente oscila mas não cai. Pensar-se que uma quadra bem 
				ajustada na funda do poeta e a pontaria correcta do arremesso 
				podem alterar o equilíbrio dos desequilíbrios estruturais do 
				mundo é puro desperdício de imaginação, mau-grado o gozo que dá 
				acertar em cheio no toutiço do vilão – ou no de alguma vilona 
				a subir na carreira a poder de testes de cama com o chefe (se 
				alguém tem dúvidas, consulte no livro a página sessenta e nove). 
				
				
				No plano mais ambicioso da equação das diferenças primordiais, o 
				que acaba por estar em processo no livro é a eterna querela do 
				Bem contra o Mal. O poeta toma partido pelos humilhados. Ao lado 
				destes, assume a luta aos corruptos, aos videirinhos, aos 
				vira-casacas, aos falhos de verticalidade, mas também aos 
				“grandes cães” de que fala uma das quadras. A sensação de ataque 
				continuado ao que, sendo obscuro, é ainda assim tangível, 
				decorre essencialmente do recurso insistente à segunda pessoa do 
				singular, ao “tu”. O tratamento por tu, em Leitura dos Actos, 
				é altamente pejorativo. O “tu”, revelador da proximidade do 
				adversário, traduz o envolvimento do sujeito do poema nas 
				incidências do conflito bipolar. Entre o “eu”, porta-voz do Bem, 
				e o “tu”, portador de todas as ignomínias e desonras da condição 
				humana, há um mano-a-mano feroz em que o perdedor é o “tu”, 
				impiedosamente sovado pelo Bem no corpo da letra que o designa. 
				De uma maneira jocosa, assassina, divertida ? É verdade. Uma 
				sova e peras.  
				
				
				Ao consubstanciar no “tu” a maldade universal o emissor desta 
				fala, o “eu”, torna claro ser ele fiel guardião da instância 
				fiscalizadora e de castigo, enquanto ser moral casto e sem 
				mancha; o outro, o “tu” perverso e venal, merece, 
				indiscutivelmente, levar com o calhau na cabeça. No domínio do 
				real, ou seja, dos valores, a vitória do Bem não se discute. Ela 
				é absoluta, terrível, demolidora. Mas no plano da realidade 
				concreta, comezinha, terra-a- terra, dos ganhos no terreno ? 
				Terá o “eu”, proprietário legítimo da razão moral, força para 
				castigar o “tu” a-moral, imoral ? Terá o “eu” ao seu serviço 
				meios de acção para impor a educação severa de quantos se 
				perfilam num largo painel de “vampiros”, “sacanas”, “papalvos”, 
				“burros”, “mafarricos”, “safados”, “capados”, “ursos”, “abutres 
				de belzebu”, “grandes cães”, “grandes ratos”, “filhos da curta”, 
				etc. ? Como procederia o “eu” para endireitar a sociedade dos 
				pecadores e dos pescadores em águas turvas, se tivesse a faca e 
				o queijo na mão para o fazer? 
				
				
				Não vale realmente a pena entrar nesse tipo de especulação. O 
				que se passa é que o “eu”, forte na razão, apenas da sua funda 
				dispõe para a acção. A consciência dessa razão e, 
				simultaneamente, da falta de força para conduzir os seus 
				próprios actos – que também estão em leitura – às últimas 
				consequências, remete-o para o exercício pleno do direito à 
				indignação. E, aí, ele está como peixe na água. Acha assim uma 
				saída para o desespero a que essa como que esquizofrenia social 
				e existencial dramaticamente dá lugar. Compraz-se em alimentar a 
				este nível uma luta completa. O ultimato ao vilão, isto é, o 
				“tu” , para que se renda, contorcendo-se de remorso, arrependido 
				das suas práticas de lesa-sociedade, não se inscreve no quadro 
				da boa acção diária do escoteiro nem na cruzada de boa vontade 
				do exército de salvação. O que se suspeita é que, mesmo que o 
				vilão deite por terra o lenço branco, o gesto magnânimo do 
				perdão venha a estar fora das cogitações profundas do “eu”.
				 
				
				
				José Correia Tavares coloca-se, portanto, numa primeira linha de 
				censura dos “tus” mal comportados, reactivando a tradição do 
				“escarnho” que vem, como bem sabemos, dos trovadores medievais, 
				que tão bem se harmoniza com o nosso temperamento meridional e 
				em que a quadra se apresenta como um dos instrumentos mais 
				fiáveis para o fim em causa. A sociedade questionada sobreviverá 
				– ela pode bem com umas quantas pedradas infalíveis. Mas 
				pequenos ou grandes que sejam os danos provocados, eles serão 
				sempre morais e ajudarão a trazer o homem que os provoca à 
				dimensão pública da sua vital seriedade, apesar da amplitude do 
				sarcasmo, da volúpia da ira, da irredutibilidade do juízo, da 
				perícia no manejo da funda, da violência da diatribe, da 
				superação da angústia pela ferocidade do verbo, da magnitude do 
				desprezo... 
				
				
				Se, com estas palavras talvez pouco convencionais numa homenagem 
				a um Amigo, ajudei a despertar o interesse por um livro 
				inquestionavelmente polémico, cáustico e intratável, na linha do 
				já conhecido Beijos e Pedradas – agora mais pedradas que 
				beijos, a verdade se diga – terei justificado a presença nesta 
				sessão. Embora lamente que o José Correia Tavares insista em 
				publicar a sua poesia cronologicamente – os versos de Leitura 
				dos Actos são de 1983 – o que sobremaneira dificulta a 
				localização dos alvos, há nesta escrita méritos cristalizados 
				que nada têm a ver com o tempo da sua elaboração – a expressão 
				depurada, o léxico rico, as variantes sonoras na unidade rítmica 
				do discurso e, enfim a recuperação de um tipo de poesia que, 
				para aquilo para que o poeta a quer, não tem rival no elenco de 
				outras soluções que se lhe apresentem à escolha.   |