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COORDENAÇÃO EDITORIAL   |   SOARES FEITOSA | FLORIANO MARTINS
2000-2010
 

 

 

BANDA LUSÓFONA | BRASIL

José Alcides Pinto | (1923-2008)

Caos e utopia em José Alcides Pinto

Floriano Martins

Segundo o poeta e compositor estadunidense John Cage, o fim de toda e qualquer utopia estaria na raiz do envolvimento do ser humano com aquilo que está realizando. Não haverá mais utopias se acaso as pessoas não mais se encontrem dentro daquilo que fazem.

Já o búlgaro Elias Canetti nos lembra que “para dizer algo sobre este mundo que tenha algum valor, o poeta não pode afastá-lo de si ou evitá-lo”. O caráter definitivo de toda e qualquer escritura poética, assim, estará irretorquivelmente pautado pela intensidade da relação entre a aventura e a invenção. Diz ainda Canetti: “o poeta está mais próximo do mundo quando carrega em seu íntimo um caos”.

Caos e utopia. Estas sempre me pareceram duas versões de um mesmo problema, questão essencial que move os destinos de toda escritura poética. A palavra chave então seria pura e simplesmente envolvimento. Não tratamos aqui diretamente das relações estéticas entre ser e linguagem, posto que seu território é de tal maneira indispensável que enfocá-lo soaria como grosseira obviedade. Todo e qualquer poeta sabe que não pode iniciar-se em seu próprio caos, em sua própria utopia, sem os necessários apetrechos da linguagem, sem um mínimo de convicção estética acerca de suas idéias.

Neste sentido, um grave padecimento da poesia brasileira contemporânea, em suas linhas gerais, é uma habitual constância na utilização de certo devaneio da linguagem, de certo grau de futilidade, um pouco próximo da coloquialidade inconsistente dos dias de hoje, fartamente procriada pela retórica dos meios de comunicação; há também, funcionando quase como contraponto, uma espécie de estranhamento da aventura humana a nível da linguagem, espécie de anulação do princípio básico da comunicação poética.

A meu ver, a soma desses dois fatores representa aquilo que chamo de intoxicação da linguagem poética, um tipo de enfraquecimento gradual e quase letal de nossos recursos estilísticos até então alcançados. A título de exemplo, valem as referências à chamada “geração mimeógrafo” dos anos 70 e aos herdeiros diretos/diletos do concretismo.

Contudo, retomemos a idéia central destas páginas: as relações entre aventura e invenção na obra de um de nossos importantes poetas, o cearense José Alcides Pinto (1923). Julgo procedente aqui definir uma espécie de antes de tudo, de maneira a não haver, por quem quer que seja, um tipo de jogatina vulgar em torno de minhas palavras. Considero a discordância um recurso essencial a todo diálogo, e não um mero artifício da mídia para render novas edições. Desta forma, assim estabeleçamos minha posição em relação à poesia de José Alcides Pinto: suas proezas verbais jamais conseguiram ir além de seu real envolvimento com o mundo.

Quando me refiro a proezas verbais, faço-o sobretudo em duas instâncias: sua própria defesa de um excessivo rigor consigo mesmo (“em matéria de arte, nada pode (nem deve) ser improvisado”, disse-me certa vez) e o inquestionável fato de que este poeta erigiu, até a publicação, pelas Edições GRD (Rio de Janeiro, 1966) de sua obra poética reunida (1952-1964), uma poesia digna de uma cuidadosa avaliação crítica, empenhada na verificação de seus recursos, na particularíssima modulação de sua voz, em sua estranheza imagética e no diálogo singular que mantinha com a modernidade. Lamentavelmente esta leitura crítica de sua poesia nunca existiu. Alguns escritores se aproximaram, a exemplo de Gilberto Amado, Fausto Cunha e Cassiano Ricardo, de um diálogo crítico com este poeta.

Neste sentido, lhe foram concedidos alguns atestados poéticos. Aqueles firmados à pressa comentam sua marcada aproximação com o discurso poético de Antonin Artaud, colocação que soa como insustentável lugar comum, posto que toda a miséria da poesia parece remeter unicamente ao poeta francês; há aqueles mais polidos, que tratam de salientar a destreza verbal do poeta, seus recursos às redondilhas de extração popular, a predominância dos decassílabos, destacando por vezes a precisão dos versos livres; cheguei a ler comentários acerca da estranheza temperamental do poeta, um tipo vampiresco, possivelmente da mesma escola do velho e cansado Dalton Trevisan.

Cassiano Ricardo fez uma observação de grande interesse, ao salientar que o poeta “integra em si os próprios momentos em que andou, demoniacamente, fora de si”. Trata-se de uma passagem do prefácio da mencionada reunião de sua obra poética, edição cujo título é o mesmo de seu livro mais essencial: Cantos de Lúcifer. Este volume representa uma espécie de divisor de águas na produção poética de José Alcides Pinto. A nosso ver, após a publicação deste Cantos de Lúcifer (reunião de seus livros publicados até então e mais a inclusão do inédito Cenas), nosso poeta iria perdendo seus principais sinais de vida, sua tessitura poética originalíssima, salientada por recursos múltiplos e intensamente comprometidos com a modernidade, onde destacamos a utilização do poema em prosa, sem dúvida seu grande contributo para a poesia brasileira.

Em contrapartida, o período marcado pelos livros seguintes inicia uma fase que podemos distribuir em duas instâncias: os equívocos tradicionais de nossa poesia engajada (quando o poeta claramente se mostra um instrumento - no mínimo risível - do poder) e a conversão (de um moralismo inconsistente) do insólito em agressividade banal, recorrendo, em seu caso específico, à máscara desgastada da sexualidade, do atributo fugaz de nossos complexos freudianos. De um lado a excrescência de livros como Ordem e desordem (1982) e O sol nasce no Acre (1991), enquanto que de outro a moralidade folhetinesca no tocante à escritura de livros como Relicário Pornô (1982) e Poeta fui (Ora direis) (1993).

Sua publicação mais recente, Os cantos tristes da morte (1994), reproduz iguais equívocos, então acrescidos de uma outra perspectiva do mesmo problema: a acomodação crítica por parte de outros poetas. Reúne a edição deste mencionado livro dois comentários acerca de seu livro imediatamente anterior, Poeta fui (Ora direis), textos firmados por Carlos Augusto Viana e Adriano Espínola. O primeiro não vê mais que uma óbvia revelação de temas recorrentes, plenamente incapacitado o crítico de questionar os indicativos poéticos de José Alcides Pinto; já o segundo, poeta por sua vez experiente no trato do elegíaco, não consegue ir além da identificação enumerativa dos atributos formais do autor em referência.

Retornemos, no entanto, à raiz do problema: caos e utopia, como salientado no início destas breves notas críticas. Me parece que aquilo que Cassiano Ricardo situa como “demoniacamente fora de si”, é o ponto de partida para elucidar a questão seguinte: teria cessado em Alcides Pinto o envolvimento com o mundo ou simplesmente o poeta teria banalizado a relação entre aventura e invenção? Abre-se ainda uma outra indagação: quando não carrega mais em si nenhum caos, como pode cumprir então o poeta sua principal função: a de resguardar a linguagem? Que pode a linguagem, vale insistir, quando cessa toda utopia?

Em alguns momentos de uma antiga conversa nossa, o poeta me falou das circunstâncias que o envolviam quando da escritura de alguns de seus principais livros. Acerca de seu primeiro poemário, Noções de poesia e arte (1952), disse-me que o livro foi marcado pela morte de sua irmã Gerci: “Essa dor ainda me persegue (…) Talvez tenha sido sua morte, em plena mocidade, que abriu esse vazio dentro de mim. (…) …sua imagem fixou-se em minha retina com obsessão. Ela está presente, de uma forma ou de outra, em toda a minha obra, principalmente na poesia”.

Comentando acerca de Cantos de Lúcifer, refere-se José Alcides Pinto à “consciência de uma dimensão nova, de uma inventiva poética” que já vinha perseguindo com sofreguidão. Assim define o livro, por sinal um dos poemas mais misteriosa e verdadeiramente malditos (linhagem tão perseguida e raramente alcançada) da poesia brasileira: “a redenção de uma alma perdida e que, de repente, ressurge de seu próprio caos”.

Suponho que o acertado no caso de José Alcides Pinto seja a afirmação de sua gradual banalização de todo e qualquer tipo de transcendência poética, uma espécie de vulgarização do exercício poético, dessa aventura que melhor corporifica a relação entre ser e linguagem. É absolutamente indiscutível o acentuado empobrecimento poético da obra do autor cearense nas últimas três décadas, hoje em completo estado de negação de tudo aquilo que notavelmente atingiu até a publicação de sua obra reunida em 1966. O mais curioso, embora o presente artigo não comporte o tema, é que o mesmo não se verifica no tocante à sua obra de ficção.

Por último confirmo minha defesa acerca daquilo que chamo de envolvimento. As revelações de José Alcides Pinto, em torno dos efeitos provocados pela morte de sua irmã, bem o atestam. Não devemos, por extensão, esquecer que a noção de cultura que hoje conhecemos nasceu exatamente com o culto dos mortos. Neste sentido, uma irmã morta pode muito bem render seis décadas de excelente produção poética, restando, no entanto, uma avaliação mais severa acerca do gradual abandono do humano em nós, deplorável estado que atravessa a humanidade neste final de século. Recordemos ainda que, antes de discutirmos, em volta do fogo, se o poema estava bem ao gosto da linguagem de turno, considerávamos sobretudo o abraço poético do homem com sua própria vertigem. Bem o sabemos: assim nasceu a poesia.

Que nossa inquestionável decadência cultural não consiga estabelecer a diferença entre um livro e outro de um determinado poeta, isto não é razão para que se eleve o mesmo à categoria de master ou que seja indiscriminadamente detratado. É igualmente lamentável que as relações humanas tenham atingido o presente estágio de vulgarização do indivíduo. José Alcides Pinto, contudo, mesmo diante dos problemas aqui apontados, representa um dos momentos de grande vitalidade da poesia brasileira, merecendo ainda hoje uma revisão crítica de sua obra poética, de maneira a situá-lo como presença fundamental no cenário da poesia brasileira deste século.

[Publicação original no suplemento Sábado, do jornal O Povo. Fortaleza. 22/07/95.]

 

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