P R O J E T O   E D I T O R I A L   B A N D A   L U S Ó F O N A

 

 

J O R N A L   D E   P O E S I A   |   F O R T A L E Z A l C E A R Á l B R A S I L
COORDENAÇÃO EDITORIAL   |   SOARES FEITOSA | FLORIANO MARTINS
2000-2010
 

 

 

 

BANDA LUSÓFONA | PORTUGAL

Jorge de Sena | (1919-1978)

Jorge de Sena: Um exílio em cólera

Júlio Conrado

Jorge de Sena (1920-1978), poeta, investigador, dramaturgo, contista, docente, romancista, engenheiro, antologista, epistológrafo, tradutor e prefaciador é um dos casos mais fascinantes de produção de uma literatura de exílio num país onde a legião de intelectuais “estrangeirados” é consequência da constância do Estado totalitarista ao longo dos séculos. Quando se fala de exílio de escritores, de literaturas de exílio ou de exílio tout court, os Portugueses sabem do que falam, tantos deles tiveram de abandonar o país para noutras paragens procurarem, em liberdade, o sustento do corpo e a ração do espírito. Mas também aqui, o affaire Jorge de Sena é paradigmático. Ele, Sena, não corresponde, em boa verdade, ao padrão geralmente aceite de exilado político. Corporizou, sim, antes de mais, o drama do emigrante económico cuja ambição maior era a de ser escritor e não engenheiro de pontes e calçadas, que em dado momento da vida se viu a braços com a mulher e sete filhos ( mais tarde a conta subiria para nove) para sustentar e o quase completo ostracismo votado pela crítica portuguesa à sua actividade literária.

Sena começa, pois, por ser um exilado no interior, condição à qual acrescenta a dimensão de “exílio no exterior” ao emigrar para o Brasil em 1959, deixando para trás um lugar de quadro da Junta Autónoma de Estradas e partindo com a alma a clamar vingança contra a    “conspiração”  (em não pequena medida por si acirrada), dos jornalistas e críticos “ignorantes” que com o silêncio lhe obstruiram o acesso à glória. A perseverança posta na desforra é qualquer coisa de gigantesco. A cólera com que zurziu os contemporâneos “cegos” à importância da sua obra atingiu patamares de truculência inimagináveis. Varreu a eito, implacável de rancor e raiva, alardeando uma capacidade invejável para exorbitar a malignidade dos fantasmas que levara de Portugal, tudo o que no país pudesse ter algum merecimento. Ninguém estava à altura do seu talento. Ninguém, de facto, parecia capaz de saber lidar com a mistura explosiva da incomensurável imodéstia e do inegável valor, um coktail Molotov sempre preparado para ser lançado sobre “essa gente”. Ninguém, a não ser ele mesmo.

Querendo contornar a alegada incapacidade da crítica para lhe analisar os escritos, Sena passou a interpretar os seus trabalhos de criação através de textos de natureza ensaística, os famosos prefácios. Colocado acima dos condutores de opinião - ultrapassados por tão desconcertantes incursões no seu perímetro de influência - por esses ensaios de “si sobre si mesmo” com que polemicamente adornou vários livros, teve o condão de com eles exasperar ainda mais os “visados” - raramente nomeados - alargando assim o fosso de silêncio que estava na génese dos seus irados queixumes. “Tenho horror da mediocridade que se compraz em escusar-se a reconhecer o que a excede”, disse, numa entrevista conduzida por Arnaldo Saraiva, respondendo à insinuação de que seria o maior admirador de si próprio. Sem deixar de referir: “A única razão pela qual parece que eu proclamo a cada instante o meu talento é porque, até muito recentemente, se eu não o fizesse, ninguém o faria. E, se eu sou agudamente sensível a todas as formas de injustiça, haveria de deixar que ela se exercesse impunemente comigo ? “

É errado pensar-se em Jorge de Sena como o provocador nato, o outsider que todo se joga no afrontamento ao sistema e se realiza hostilizando-o. Ele não ambiciona a destruição do sistema, quer a sua vénia. Aquilo a que profundamente aspira é tê-lo aos pés, rendido à sua arte e ao cabedal de erudição entretanto adquirido no contacto com modelos superiormente evoluídos de estudo das disciplinas literárias. Tarda o reconhecimento, multiplicam-se as manifestações de cólera do não-reconhecido contra os juízes-réus do adiado reconhecimento. Cresce o tom de desafio à pátria ingrata, cuja virtude soberana parece ser a de esquecer quem melhor a honra. A para muitos insuportável vaidade do Narciso a quem é negado o espelho através do qual pudesse saciar a auto-estima dá contornos diabólicos ao contencioso que infernizará para sempre a vida do escritor. A cruzada auto-interpretativa com que premeia “esses sujeitos” e o “país dos sacanas” que os sustenta é uma aventura sem regresso, uma luta sem fim à vista, um combate eterno. O centro geométrico do exilado no interior está no lugar do “eu” onde decisivamente pesa um egoísmo vital ferido pela ausência do eco social capaz de salvar a obra e o homem do ignominioso anonimato que é a causa do seu tormento. Apoiando-se em Scheler, Camus dirá que o “ressentimento, conforme surja numa alma forte ou fraca, converte-se em ambição de vencer ou em azedume”. O temperamento de Sena troça destas fronteiras: ele é forte na ambição de vencer e excessivo nas demonstrações de azedume - ele será um vencedor que morrerá em guerra com um mundo que apesar de tudo não o adulou como devia.

Há, no entanto, um momento de viragem, em Portugal, a partir do qual a obra de Sena começa a ser vista com outros olhos. O nº 59 da revista católica progressista O Tempo e o Modo, de Abril de 1968, é-lhe consagrado. Essa “consagração” reflecte a nova atitude das elites culturais portuguesas relativamente, sobretudo, aos feitos do investigador e do docente além-fronteiras. Não se estava mais em presença do engenheiro, com fumos de artista da palavra escrita, que colaborara no projecto da construção da ponte sobre o Tejo; estava-se em face de um homem que lograra chegar, como professor, às universidades brasileiras de S. Paulo e de Araquara e, nos Estados Unidos, à Universidade de Wiscosin, considerada uma das dez melhores do país e aquela onde os estudos das literaturas portuguesa e brasileira se encontravam mais adiantados, aí regendo cursos e dirigindo teses de doutoramento como “visiting professor”. Na mesma universidade, em 1967, seria nomeado catedrático do Departamento de Espanhol e Português e é já quando, portador destes galões académicos, sublinhados por intensa actividade de investigador e de teorizador, começa a ecoar no país o prestígio do mestre de Literatura e da Língua alcançado em tão selectos fóruns intelectuais, que a sua obra poética e de ficção é encarada com diferente recepticidade e, digamos, recuperada. O ensaísta e o professor “arrastam” consigo o escritor, que assim suscitam novos enfoques críticos à produção ficcional. De certo modo são-lhe, até, perdoados os “prefácios”.

Porque é que a homenagem de O Tempo e o Modo decepciona Jorge de Sena ? Não tem a “grandeza” justificada pela estatura intelectual do homenageado ? Não é um preito de vassalagem por parte daqueles a quem ele desejaria vergar com a pujança do seu saber e são “outros” aqueles que vêm oferecer-lhe o conforto da solidariedade e da admiração ?

São duas, quanto a mim, as razões do acolhimento céptico que faz a essa consagração para ele não suficientemente grande.

Em primeiro lugar, há um período de vinte e dois anos desde a edição do primeiro livro – e a consequente acumulação de azedumes vários – durante o qual são raras as referências nos jornais ao que publica. São duas décadas fatais, que geram um homem amargurado, que subiu a pulso, que nada ficou a dever aos seus contemporâneos, mas ao mesmo tempo um homem revoltado com o silêncio a que o votaram, irritado com os “medíocres” que o esquecem ( chega a pensar-se, lendo-lhe as diatribes, que o que apaziguaria seria a adulação desses “medíocres”) e magoado com a ausência das sempre reclamadas análises de fundo aos seus trabalhos. A recolha a que Eugénio Lisboa procedeu de textos publicados na imprensa é ilustrativa da travessia do deserto feita pelo criador de O Físico Prodigioso. Entre 1946 e 1968 tinha publicado oito livros de poemas, três peças de teatro, três livros de ficção, vinte e cinco estudos de crítica e investigação literárias e alguns prefácios, mas o que encontramos como retorno crítico dessa notável produtividade são meia dúzia de textos assinados por João Gaspar Simões (1946), Vasco Miranda (1951), David Mourão-Ferreira (1951), Adolfo Casais Monteiro (1955) e Mário Sacramento (1960 e 1967), bem escassa safra para um “egoísta” que tanto de si deu aos outros.

Foram vinte e dois anos anos de interiorização do rancor fermentados pela ausência de “eco”. A homenagem da prestigiada revista soube-lhe a pouco. Queria, porventura, lá ver outros, que não lhe proporcionaram, porém, o almejado comprazimento.

A segunda razão a que atribuo o relativo desdém de Jorge de Sena à consagração de O Tempo e o Modo resulta do facto de uma substancial percentagem dos homenageadores ser constituída por jovens escritores, muitos deles sem “nome” e sem “passado” nas Letras, mesmo se já vinham dando provas de que seriam o “futuro” da Literatura Portuguesa. Creio que Sena, numa primeira avaliação, subestimou a importância dos depoimentos desses jovens, tão ocupado andava com os fantasmas que lhe povoavam as insónias. É que, entre os tais jovens, estavam, nem mais nem menos, Almeida Faria, Ruy Belo, José Augusto Seabra, Casimiro de Brito, João Rui de Sousa, E. M. Melo e Castro, Armando da Silva Carvalho, Fernando Guimarães, Rebordão Navarro e José Fernandes Fafe (ao lado dos consagrados David Mourão-Ferreira, José-Augusto França, José Blanc de Portugal, Ruy Cinatti, Vergílio Ferreira e Eduardo Lourenço), todos figuras de primeira linha - sabêmo-lo hoje - da geração revelada na década de sessenta ou um pouco antes e que era então, sem que Sena disso talvez se apercebesse, tributária, à distância, do seu magistério e sensível às motivações do conflito com que, com insuperável frontalidade e um feitio intratável, o homem de cultura alimentava a combustão do seu exílio perturbado.

Há boas razões para admitir que a sobranceria de Sena continha algo de virtual. Ao manifestar menosprezo pela homenagem de O Tempo e o Modo ao seu compatriota e amigo Adolfo Casais Monteiro, também exilado, foi por este posto severamente no seu lugar, isto é, duramente admoestado em relação ao que se perfilava agora como um sentimento de ingratidão de todo injustificado. Casais Monteiro fez-lhe ver que o combóio da glória estava finalmente a passar por ele e que convinha apanhá-lo. E Sena não se fez rogado: meteu-se nele e desembarcou em Lisboa em 1969, onde foi alvo de uma recepção que qualquer grande vedeta não desdenharia para si.

Pode dizer-se que Jorge de Sena trincou então uma boa fatia do que sempre desejara: a glória. A glória física, a glória em vida, não a glória póstuma, que dizia repugnar-lhe. Em correspondência trocada com o seu amigo Adolfo Casais Monteiro, escreve, nomeadamente: “Os recortes de notícias e entrevistas são uma montanha impressionante... Com operação e tudo, e até por causa dela, a minha estadia foi comovente - mas eu só desejava ver-me dali para fora, apesar do prazer de rever os amigos e de ter feito uma espécie de reconciliação nacional à minha volta... Eu chegava a sonhar com a solidão sem telefone, sem acesso, sem amigos, conhecidos, desconhecidos ou ex-inimigos, e sem as casas deles aonde às vezes, para satisfazer as encomendas, tive de jantar duas vezes ao dia.” **

A partir desta altura o discurso de Sena, especialmente o discurso poético, ganha algumas surpreendentes inflexões. O povo português deixa de ser ridicularizado como anti-protagonista do seu destino ( Terra de escravos / cu pró ar ouvindo / ranger no nevoeiro a nau do Encoberto, 1961) para se tornar a vítima traída de “uns poucos” em 1971 e finalmente motor da revolução, em Abril de 1974, data que marca a sua reassunção como “português” orgulhoso do que acontece na pátria longínqua ( Chatins, ladrões e miseráveis fomos - mas fomos também grandes. Sêlo-emos / ainda desta vez, na casa lusitana... E que ninguém venha cuspir-nos, muito menos nós ). As nuances “fomos”, “sê-lo-emos” e “nós” introduzidas no discurso valem por uma reintegração completa - o poeta, inteligente e culto como é, sabe perfeitamente que “recados” está a enviar para o lado de cá do Atlântico. Labora, porém no equívoco de se pensar como imagina que os outros o pensam. Não é reintegrável em coisa nenhuma o que aos olhos de toda a gente jamais chegou a desintegrar-se e que nunca passou do espectáculo do filho que tudo fez para impressionar a mãe com a sua “fala” e se revolve de ira contra a constância da surdez materna. Desde que ela melhora as capacidades auditivas e consegue articular alguns dos sons da linguagem do amor, o gigante rebelde vacila, repensa-se, percebe-se que se comove. Cai depois em si: tem uma imagem a preservar, é preciso que o show da ingratidão continui até ao fim - mas já ninguém o leva mais a sério, incluindo ele próprio.

Objectivamente, Jorge de Sena produziu uma parte substancial da sua obra no estrangeiro em conflito afectivo frontal com a pátria. Nenhuma causa visível impede que essa obra possa ser considerada “literatura de exílio”. Enquanto criador literário, Sena seguiu o percurso tradicional dos exilados portugueses, jamais se expatriando da sua língua e da sua cultura. Não há em Portugal autores equivalentes a Nabokov ou Isaac Singer, homens de duas pátrias culturais - tão pouco o escritor português quis em circunstância alguma assemelhar-se-lhes. João Gaspar Simões, o crítico que mais acreditou nas qualidades do autor de O Reino da Estupidez, pôs o dedo nessa ferida em aberto: “Mas o que punge nas páginas quer poéticas quer prosaicas, críticas ou não críticas - de Jorge de Sena é o fragor do seu sarcasmo, a ferocidade do seu humor, tendo em vista a cultura que, de modo algum, renega, uma vez que, renegando-a, seria como renegar-se a si próprio. Também para ele a sua pátria era a língua portuguesa.”

O lugar de exílio de Jorge de Sena foi sempre Portugal, ainda que tenha encontrado a morte em Santa Bárbara, Estados Unidos, quando era possuidor de um passaporte que lhe conferia a nacionalidade brasileira.

[Comunicação ao Congresso da Associação Internacional dos Críticos Literários, Roma, 1997.]

 

O Projeto Editorial Banda Lusófona foi criado em janeiro de 2010, como complemento ao Projeto Editorial Banda Hispânica. Assim o Jornal de Poesia integra em sua plenitude a poesia de línguas portuguesa e espanhola. Aqui registraremos criação e reflexão, reunindo autores de distintas gerações e tendências, inclusive inéditos em termos de mercado editorial impresso. Aqueles poetas que desejem participar devem remeter à coordenação geral seus dados bibliográficos, seleção de 10 poemas e resposta ao seguinte questionário:

1. Quais são as tuas afinidades estéticas com outros poetas de língua portuguesa?
2. Quais são as contribuições essenciais que existem na poesia que se faz em teu país que deveriam ter repercussão ou reconhecimento internacional?
3. O que impede uma existência de relações mais estreitas entre os diversos países de língua portuguesa?

Todo este material deve ser encaminhado em um único arquivo em formato word, para o seguinte e-mail: agulha.floriano@gmail.com. Agradecemos também o envio de uma fotografia (jpg), assim como de textos críticos, livros de poesia e material jornalístico sobre o mesmo tema. O Projeto Editorial Banda Lusófona é uma fonte de informações que reflete, sobretudo, a ampla generosidade de todos aqueles que dele participam. O acesso a cada país deve ser feito através do selo correspondente.

 
JORNAL DE POESIA ACERVO GERAL BANDA LUSÓFONA EDIÇÕES CURURU

 

Jornal de Poesia (Brasil)

 

La Otra (México)

 

Matérika (Costa Rica)

 

Blanco Móvil (México)

 

Revista TriploV de Artes, Religiões e Ciências (Portugal, Brasil)

 

Agulha - Revista de Cultura (Brasil)

 

 
Ficha Técnica

Projeto Editorial Banda Lusófona
Janeiro de 2010 | Fortaleza, Ceará - Brasil
Coordenação geral & concepção gráfica: Floriano Martins.
Direção geral do Jornal de Poesia: Soares Feitosa.
Projetos associados: Revista La Otra (México) | Ediciones Andrómeda (Costa Rica) | Revista Blanco Móvil (México) | Triplov (Portugal).
Cumplicidade expressa: Alfonso Peña, Eduardo Mosches, Gladys Mendía, José Ángel Leyva, Maria Estela Guedes, Soares Feitosa e Socorro Nunes.
Contatos:
Floriano Martins bandahispanica@gmail.com | floriano.agulha@gmail.com.
Soares Feitosa: soaresfeitosa@secrel.com.br | soaresfeitosa@uol.com.br.
Agradecemos a todos pela presença diversa e ampla difusão.